Destacar algum disco ou canção da obra de Chico Buarque de Hollanda é de uma enorme injustiça com os demais. Entre Madalena ir pro mar e Renata Maria sair dele, muitas águas rolaram e o garoto que viu a banda passar cantando coisas de amor está, agora, completando 63 anos de vida, não apenas de idade. Aos oito, de partida para a Itália com a família, em carta a sua avó, previu o futuro que o destino lhe reservava, com as seguintes palavras: “Vovó, você já está muito velha e quando eu voltar eu não vou ver você mais, mas eu vou ser cantor de rádio e você poderá ligar o rádio do Céu, se sentir saudades”.
Como querendo demarcar espaço, seu primeiro disco tinha como título seu próprio nome, assim como os que se seguiram, os volumes 2, 3 e 4. Trabalhos de alto nível, dignos de compositores experientes, mas impressionantemente saídos de uma cabeça de vinte e poucos anos, com várias músicas que viraram clássicos da MPB. Se apenas esses seus quatro primeiros discos já o credenciavam como um dos melhores compositores brasileiros, sua obra ao longo de quatro décadas consolidou uma carreira impecável, que sempre transitou, com a mesma perfeição, tanto por canções de cunho político e social, quanto por canções românticas e líricas.
Ao mesmo tempo em que lançou esses discos no início da carreira, participou de vários festivais de música popular, freqüentes à época, vencendo, em 1966, com a canção “A banda”, e em 1968, com “Sabiá”, ironicamente (em se tratando de Chico) consideradas bem comportadas pelo público, que preferiu “Disparada” e “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, não menos belas e mais politizadas, digamos assim. Também nessa época, iniciou sua parceria com os já consagrados Tom Jobim e Vinícius de Moraes, amigos de seu pai, o historiador Sérgio Buarque: “Sabiá”, “Retrato em branco e preto” e “Pois é” (Tom Jobim – Chico Buarque) são de 1968, Gente humilde (Garoto – Vinícius de Moraes – Chico Buarque), de 1969.
Nos anos 70, suas músicas passaram a apresentar um perfil mais contundente. “Apesar de você”, lançada em um compacto simples juntamente com “Desalento” em 1970, marcou o agravamento de seus problemas com a censura, tendo sua execução proibida nas rádios. Também são dessa década os álbuns “Construção”, “Calabar”, que teve a capa censurada e o título alterado para “Chico canta”, “Sinal fechado”, de título sugestivo, que contava com apenas uma música de sua autoria, disfarçada por pseudônimos e “Meus caros amigos”, além de “Quando o carnaval chegar”, com a trilha sonora do filme homônimo, “Caetano e Chico juntos e ao vivo” e “Chico Buarque e Maria Bethânia ao vivo”.
Também dessa década, fechando-a com chave de ouro, mais um disco com seu nome no título, e digno dele, que antecipava músicas que faziam parte da trilha sonora da peça “Ópera do malandro”, lançada em álbum duplo no ano seguinte, entre outras inéditas, inclusive “Cálice”, de 1973, censurada à época. Também foram liberadas pela censura e gravadas nesse disco “Apesar de você” e “Tanto mar”, que até então ele havia gravado apenas em versão instrumental, no impecável LP “Chico Buarque e Maria Bethânia ao vivo” (esqueci que não deveria destacar, os outros também são impecáveis).
Ao longo da carreira, compôs várias canções ou mesmo trilhas musicais inteiras para peças de teatro e filmes, de sua autoria ou não: “Morte e vida Severina”, “Quando o carnaval chegar”, “Roda-viva”, “Calabar”, “Gota d’água”, “Os saltimbancos”, “Ópera do malandro”, “O grande circo místico”, “Cambaio”, entre outros. Fez músicas sobre mulher, para mulher, mas sobretudo como mulher. Com açúcar, com afeto, sem açúcar, sem fantasia... Maria Bethânia conta que Mãe Menininha do Gantois ficou perplexa ao saber que um homem havia composto “Olhos nos olhos”*.
Se nos anos 70 lutou contra a ditadura, nos 80 vestiu a blusa amarela das diretas pra ver passar a evolução da liberdade, na festa do povo. A partir da década de 90, passou a alternar trabalhos como compositor e escritor, tendo lançado, desde então, os livros “Estorvo”, “Benjamim” e “Budapeste”. Em 2006, lançou o CD “Carioca”, seguido do show, que lotou os teatros por onde passou, comprovando o apreço incondicional que o cantor desperta, ainda que não tenha se rendido, nesse show, a um repertório centrado em suas músicas mais consagradas, mas sim nas composições feitas dos anos 80 em diante, incluindo todas do novo trabalho.
Chico Buarque é, realmente, um fenômeno a ser estudado. Dado o seu total domínio da arte de compor, é possível que sua cadeia de DNA seja um pentagrama, com suas canções em partituras e seu genoma esteja refletido em sua obra, clone de nossos sentimentos.
* Olhos nos olhos (Chico Buarque)
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mas nem porque
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
'Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz