25.6.12

Retirantes de corpo e alma


No litoral ou no sertão, a realidade pode ser dura ou não. Seja onde e como for, a música é uma das melhores formas de mitigar tristezas e catalisar alegrias. Acolhe nas horas tristes, contagia nos momentos alegres. E em se tratando de música do interior (do ser e do estar), poucos músicos conseguiram ser tão igualmente proficientes quanto o mestre Luiz Gonzaga e seus parceiros. Neste ano em que se comemora o centenário de seu nascimento, ele tem sido, merecidamente, lembrado e reverenciado. Desafortunadamente, o ano coincide com a maior seca das últimas décadas no nordeste do país e, ainda que nesse aspecto de forma triste, a desdita da seca faz-nos, uma vez mais, lembrar das canções do rei do baião e de outros compositores nordestinos.

Patativa do Assaré narrou o drama do sertanejo, o exílio forçado e a saudade da terra natal de forma comovente em canções como Vaca Estrela e boi Fubá: “Hoje nas terra do sul, longe do torrão natá / Quando eu vejo em minha frente uma boiada passar / As água corre dos óio, começo logo a chorar / Lembro minha vaca Estrela e o meu lindo boi Fubá / Com saudade do Nordeste, dá vontade de aboiar” e Triste partida*: “Se arguma notícia das banda do norte / Tem ele por sorte o gosto de ouvir / Lhe bate no peito saudade de móio / E as água nos óio começa a cair”.

A fé está presente em algumas canções, de temas igualmente associados aos infortúnios que assolam o sertão: Meu Cariri (Rosil Cavalcanti / Dilu Melo) - “No meu Cariri / Quando a chuva não vem / Não fica lá ninguém / Somente Deus ajuda”, Último pau-de-arara (Venâncio / Corumba / José Guimarães) - “Enquanto a minha vaquinha / Tiver o couro e o osso / E puder com o chocalho / Pendurado no pescoço / Eu vou ficando por aqui / Que Deus do céu me ajude / Quem sai da terra natal / Em outros cantos não para / Só deixo o meu Cariri / No último pau-de-arara” - e Súplica cearense (Gordurinha / Nelinho) - “Senhor, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho / Pedi pra chover, mas chover de mansinho / Pra ver se nascia uma planta no chão / Oh! Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe / Eu acho que a culpa foi / Desse pobre que nem sabe fazer oração”.

Dentre as letras de canções que narram o martírio do sertanejo diante da seca, há aquelas que, mesmo retratando de forma fiel o drama, encerram mensagens de esperança e otimismo, muitas delas compostas por Gonzaga e seus parceiros. É o caso dos versos finais da pungente Asa branca (com Humberto Teixeira) - “Quando o verde dos teus olhos / Se espalhar na plantação / Eu te asseguro não chore não, viu / Que eu voltarei, viu, meu coração” -, os quais sugerem a esperança do retorno (à terra natal e aos braços da amada), concretizada em A volta da asa branca** (com Zé Dantas).

Os brasileiros do litoral, nordestinos em particular, ao mesmo tempo em que possuem uma visão distanciada e vivem realidade distinta daquela encontrada no sertão, tem laços afetivos que os unem àquela região, reforçados por meio da música (e da literatura), a qual externa tanto o fascínio pela beleza do lugar ou o jeito de sua gente, quanto a identificação com suas dificuldades. Seguindo uma trilha sonora, as coisas do sertão correm pro mar, assim como o riacho do navio.

O poeta português Fernando Pessoa, um retirante de alma, em um de seus poemas, fala da necessidade de estar fora de si: “Sou um evadido. Logo que nasci, fecharam-me em mim. Ah, mas eu fugi”. Esse mesmo espírito, essa fuga do interior (do ser) – afora as ligações afetivas - é o que conduz o peixe urbano nordestino pela trilha contrária, rumo ao interior (do estar), saindo do mar pro riacho do navio.

É assim que nós, meros habitantes das cidades grandes, retirantes de alma, ficamos aparvalhados e embevecidos com comparações, analogias e metáforas dignas de mestre, que ninguém das terras civilizadas faria com tanta perfeição, simplicidade e precisão, como: “Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó, a malota era um saco e o cadeado era um nó”, “Automóvel lá nem se sabe se é homem ou se é mulher”, “Tua saia, Bastiana, termina muito cedo, tua blusa, Bastiana, começa muito tarde”. É isso, falar mais o quê?


* Triste partida (Patativa do Assaré)



** A volta da asa branca (Luiz Gonzaga / Zé Dantas)

Já faz três noites que pro norte relampeia
E a asa branca ouvindo o ronco do trovão
Já bateu asas e voltou pro meu sertão
Ai, ai, eu vou me embora, vou cuidar da prantação

A seca fez eu desertar da minha terra
Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva pr'esse sertão sofredor
Sertão das muié séria, dos home trabaiador

Rios correndo as cachoeira tão zoando
Terra moiada, mato verde, que riqueza
E a asa branca tarde canta, que beleza
Ai, ai, o povo alegre, mais alegre a natureza

Sentindo a chuva, me arrecordo de Rosinha
A linda flor do meu sertão pernambucano
E se a safra não atrapaiá meus prano
Que é que há, oh seu vigário, vou casar no fim do ano