25.9.12

Tropicália - por entre fotos, nomes e músicas

Numa época de grande efervescência cultural e política em vários cantos do mundo, seria natural que surgissem divisões, sectarismos e posicionamentos antagônicos, sem meios-termos. Foi nesse clima que surgiu o tropicalismo, um movimento contra movimentos – políticos, sociais, culturais -, não por querer manter o status quo ou promover a estagnação, mas por seguir a cartilha cultural antropofágica e ser contra a uniformidade, o empunhar de uma única bandeira, o rótulo (justamente num período em que a música passava a ser rotulada e surgia o termo Música Popular Brasileira, representado pela sigla MPB).

Quase cinco décadas depois, o movimento tropicalista volta, agora, a ser discutido, com a percepção superior que o distanciamento temporal permite. Está sendo reestudado por um de seus principais representantes, o cantor e compositor Tom Zé, em seu novo disco, Tropicália lixo lógico e, no cinema, é tema de dois documentários: Futuro do pretérito: Tropicalismo Now! (Ninho Moraes e Francisco César Filho) e Tropicália (Marcelo Machado).

Nessa reanálise, Tom Zé imagina um elo entre o tropicalismo e a cultura árabe, desembocando no sertão nordestino que, segundo ele, convive com o “efeito residual de oito séculos de dominação árabe na Península Ibérica”, a qual “recebia uma sofisticada educação, com a cultura moçárabe”, que se refletiu na cultura do sertanejo analfabeto. Tal constatação e a identificação de Tom Zé com a cultura sertaneja, por sua vez, são citadas por Caetano Veloso em artigo publicado em O Globo, sobre o tropicalismo e o novo disco do colega: “... há uma identificação sertaneja que Gil (em larga medida) pode partilhar com Tom Zé, mas Bethânia, Gal e eu, meninos da área da Baía de Todos os Santos, vimos de outro ambiente mental”. Caetano completa que, nesse ambiente, “as formas mentais sertanejas eram remotas. Não tínhamos o repentista, o cordelista ou o aboiador em voz de alcance”.

Toda essa (pro ou con)fusão de ideias e ideais ajuda a explicar como o movimento tropicalista absorveu influências tão dessemelhantes quanto, por exemplo, a Banda de Pífanos de Caruaru e Roberto Carlos.

Fruto de um apurado trabalho de pesquisa, Tropicália, o filme, traz depoimentos, fotos e apresentações da época, numa certa ordem cronológica, em raras e expressivas imagens de arquivo, em que figuram a maior parte dos expoentes tropicalistas, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa e Os Mutantes, na música, o artista plástico Hélio Oiticica, criador da obra que inspirou o nome do movimento e aqueles que tinham alguma ligação com sua filosofia, como Gláuber Rocha, no cinema e José Celso Martinez, no teatro.

Entre as raras imagens exibidas, estão a cerimônia de casamento hippie entre Caetano e Dedé, o lançamento do disco símbolo do movimento, Tropicália* ou Panis at circensis, a parada de Gil e Caetano em Lisboa, a caminho do exílio em Londres e uma linda foto de Gal, de cabelos curtos, deitada no colo de Caetano. Outros momentos marcantes exibidos são uma interpretação impecável deste para Asa branca e a participação de Gil na terceira edição do festival da ilha de Wight (Inglaterra, 1970), em que o locutor, ao apresentar os tropicalistas para o grande público, afirma que “a política não permite que eles façam sua música no Brasil”, mas que lá, sim, eles podiam fazê-lo (Depois das três primeiras edições, o festival voltou apenas em 2002 e é realizado até hoje).

O tropicalismo durou quase que apenas um verão, entre 1967 e 1968. Começou com a alegria, alegria dos festivais e findou com os tristes ais da repressão, entre os quais o ai-5 e as posteriores prisão e exílio de Gil e Caetano na Europa, longe dos trópicos. Os preceitos tropicalistas de tolerância às diversas formas de expressão, misturando novo e antigo, rural e urbano, erudito e popular, nacional e estrangeiro, porém, deixaram raízes e frutificaram. Viva a bossa e viva a palhoça, viva Ipanema e viva Iracema, por que não? O mundo é complexo e não se resume a sim ou não, certo ou errado. Como diria Adoniran, além disso, mulher, tem outra coisa. Entre a banda de pífanos de Caruaru e uma banda de rock, tem a banda de Chico, cantando coisas de amor. Nem tudo é bem ou mal, Ben ou Mautner.




Sobre o tropicalismo, leia também: Choque cultural.


* Tropicália (Caetano Veloso)

Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz

Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país

Viva a Bossa, sa, sa
Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça
Viva a Bossa, sa, sa
Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça

O monumento é de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão

O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga, estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente, feia e morta
Estende a mão

Viva a mata, ta, ta
Viva a mulata, ta, ta, ta, ta
Viva a mata, ta, ta
Viva a mulata, ta, ta, ta, ta

No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina
E faróis

Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira entre os girassóis

Viva Maria, ia, ia
Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia
Viva Maria, ia, ia
Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia

No pulso esquerdo o bang-bang
Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança um samba de tamborim

Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores
Ele põe os olhos grandes sobre mim

Viva Iracema, ma, ma
Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma
Viva Iracema, ma, ma
Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma

Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém...

O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem

Viva a banda, da, da
Carmem Miranda, da, da, da, da
Viva a banda, da, da
Carmem Miranda, da, da, da, da

10.9.12

Até que a música os separe

Ao longo do tempo, a música passou por várias transformações, desde o modo de interpretação ao surgimento de novos ritmos. A temática predominante, porém, ainda que expressa de diferentes formas, pouco mudou e muitas relações amorosas foram formadas e desfeitas no compasso das canções. Amores de bolero, exacerbados, amores bossa-nova, contidos, todos casam bem com o despertar de emoções que nos provoca a união entre letra e música.

Dentre as composições musicais que tratam do tema das separações e desencontros amorosos, é mais frequente a descrição de um amor que resta unilateral, em que o amante lamenta a ausência da pessoa amada e sonha com um reencontro, indesejado pela outra parte. Ou ainda, de amores que nunca se concretizaram, impossíveis, platônicos. Uma terceira variante vislumbra a separação do ponto de vista da parte que, ainda que a custo, já a assimilou, ou como algo já aceito por ambas as partes, com o grau de desarmonia resultante a definir a trilha sonora dos “ex my loves”, em alto e bom som ou não, como veremos a seguir, numa pequena amostra.

Pode-se considerar como limites desse último e específico espectro musical, de um lado, Vingança*, de Lupicínio Rodrigues (“Mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada / Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar”), do outro, Drão, de Gilberto Gil (“Não há o que perdoar, por isso mesmo é que há de haver mais compaixão”). Creio que não se pode ser mais e menos tolerante do que, respectivamente, os personagens de uma e outra música, a segunda inspirada em separação real de Gil, de sua terceira esposa Sandra, a quem chamava Drão. Segundo ele, a canção foi das mais difíceis de compor, justamente por tratar, ao mesmo tempo, de amor e desamor, bem como por seu envolvimento pessoal no caso.

O mundo é um moinho (“De cada amor tu herdarás só o cinismo / Quando notares estás a beira do abismo / Abismo que cavaste com teus pés”) seria páreo para Vingança (pelo que sei, é incerta a versão de que Cartola a teria composto para uma filha ou enteada, o que a excluiria do escopo desta análise), mas, enquanto uma pragueja ferozmente contra o ser (des)amado, a outra “apenas” lhe prevê um futuro sombrio. Seguindo a linha gradativa de conflito, em ordem decrescente de intensidade, perto de Vingança estaria Fracassos, de Fagner (“Não chore se eu disser que já vou / Você quem quis assim, vai sofrer / … / Você tem que chorar se eu sofrer / Você tem que pagar se eu morrer”).

Um pouco mais sutil, mas com doses de rancor e inteligentes pitadas de ironia e sarcasmo, Olhos nos olhos**, de Chico Buarque, é primorosa e tem também seu lugar de destaque na parte de cima da lista. A alusão à obediência, na letra, é formidável (“Quando você me deixou, meu bem / Me disse pra ser feliz e passar bem / Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci / Mas depois, como era de costume, obedeci”). São de Chico, também, outros clássicos do tema, de versos menos ou mais pacíficos, como Trocando em miúdos, com Francis Hime (“Mas devo dizer que não vou lhe dar / O enorme prazer de me ver chorar / Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago / Meu peito tão dilacerado”) e Quem te viu, quem te vê (“Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua”).

No extremo mais amigável do espectro da separação, Drão vem acompanhada de Sonhos, de Peninha (“Não tem desespero não / Você me ensinou milhões de coisas / Tenho um sonho em minhas mãos / Amanhã será um novo dia / Certamente eu vou ser mais feliz”). De mesmo estilo harmonizador, também pode ser posta ao lado das duas a recente Depois, de Marisa Monte, com Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes (“Depois de sonhar tantos anos / De fazer tantos planos / De um futuro pra nós / Depois de tantos desenganos / Nós nos abandonamos / Como tantos casais / Quero que você seja feliz / Hei de ser feliz também”).

Numa posição intermediária, em que, se não há motivo para vingança, também não o há para sonhos, Ivan Lins e Vítor Martins contribuem para o ranking com Saindo de mim (“Você foi saindo de mim / Devagar e pra sempre / De uma forma sincera / Definitivamente”), Bilhete (“E por fim nosso caso acabou, está morto / Jogue a cópia das chaves / Por debaixo da porta / Que é pra não ter motivos / De pensar numa volta / Fique junto dos seus / Boa sorte, adeus”) e Começar de novo (“Começar de novo / E contar comigo / Vai valer a pena / Já ter te esquecido”), mais um clássico do tema. Por fim, para tornar a análise menos excludente quanto a estilo musical, nessa mesma posição da escala, poderia entrar Baba, de Kelly Key, que, apesar do cruel “Isso é pra você aprender a nunca mais me esnobar”, tem o atenuante “e pra não dizer que eu sou ruim...”.


* Vingança (Lupicínio Rodrigues)

 Eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que lhe encontraram
Bebendo e chorando
Na mesa de um bar

E que quando os amigos do peito
Por mim perguntaram
Um soluço cortou sua voz
Não lhe deixou falar

Eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que tive mesmo de fazer esforço
Prá ninguém notar

O remorso talvez seja a causa
Do seu desespero
Ela deve estar bem consciente
Do que praticou

Me fazer passar esta vergonha
Com um companheiro
E a vergonha
É a herança maior que meu pai me deixou

Mas, enquanto houver força em meu peito
Eu nao quero mais nada
E pra todos os santos vingança (Só vingança, vingança, vingança)
Vingança clamar (Aos santos clamar)

Ela há de rolar qual as pedras
Que rolam na estrada
Sem ter nunca um cantinho de seu
Pra poder descansar



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