Numa época de grande
efervescência cultural e política em vários cantos do mundo, seria
natural que surgissem divisões, sectarismos e posicionamentos
antagônicos, sem meios-termos. Foi nesse clima que surgiu o
tropicalismo, um movimento contra movimentos – políticos,
sociais, culturais -, não por querer manter o status quo ou
promover a estagnação, mas por seguir a cartilha cultural
antropofágica e ser contra a uniformidade, o empunhar de uma única
bandeira, o rótulo (justamente num período em que a música passava
a ser rotulada e surgia o termo Música Popular Brasileira,
representado pela sigla MPB).
Quase cinco décadas
depois, o movimento tropicalista volta, agora, a ser discutido, com a
percepção superior que o distanciamento temporal permite. Está
sendo reestudado por um de seus principais representantes, o cantor e
compositor Tom Zé, em seu novo disco, Tropicália lixo
lógico e, no cinema, é tema de dois documentários: Futuro
do pretérito: Tropicalismo Now! (Ninho Moraes e Francisco César
Filho) e Tropicália (Marcelo Machado).
Nessa
reanálise, Tom Zé imagina um elo entre o tropicalismo e a cultura árabe, desembocando no sertão nordestino que, segundo
ele, convive com o “efeito
residual de oito séculos de dominação árabe na Península
Ibérica”,
a qual “recebia
uma sofisticada educação, com a cultura moçárabe”,
que se refletiu na cultura do sertanejo analfabeto. Tal constatação
e a identificação de Tom Zé com a cultura sertaneja, por sua vez,
são citadas por Caetano Veloso em artigo publicado em O Globo,
sobre o tropicalismo
e o novo disco do colega: “...
há uma identificação sertaneja que Gil (em larga medida) pode
partilhar com Tom Zé, mas Bethânia, Gal e eu, meninos da área da
Baía de Todos os Santos, vimos de outro ambiente mental”.
Caetano completa que, nesse ambiente, “as
formas mentais sertanejas eram remotas. Não tínhamos o repentista,
o cordelista ou o aboiador em voz de alcance”.
Toda
essa (pro ou con)fusão de ideias e ideais ajuda a explicar como o
movimento tropicalista absorveu influências tão dessemelhantes
quanto, por exemplo, a Banda de Pífanos de Caruaru e Roberto
Carlos.
Fruto de um apurado
trabalho de pesquisa, Tropicália,
o filme, traz depoimentos, fotos e apresentações da época, numa
certa ordem cronológica, em raras e expressivas imagens de arquivo,
em que figuram a maior parte dos expoentes tropicalistas, como
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa e Os Mutantes,
na música, o artista plástico Hélio Oiticica, criador da obra que
inspirou o nome do movimento e aqueles que tinham alguma ligação
com sua filosofia, como Gláuber Rocha, no cinema e José Celso
Martinez, no teatro.
Entre as raras imagens
exibidas, estão a cerimônia de casamento hippie entre
Caetano e Dedé, o lançamento do disco símbolo do movimento,
Tropicália* ou Panis at circensis, a parada de Gil e Caetano
em Lisboa, a caminho do exílio em Londres e uma linda foto de Gal,
de cabelos curtos, deitada no colo de Caetano. Outros momentos
marcantes exibidos são uma interpretação impecável deste para Asa
branca e a participação de Gil na terceira edição do festival da ilha de Wight (Inglaterra, 1970), em que
o locutor, ao apresentar os tropicalistas para o grande público,
afirma que “a política não permite que eles façam sua música
no Brasil”, mas que lá, sim, eles podiam fazê-lo (Depois das
três primeiras edições, o festival voltou apenas em 2002 e é
realizado até hoje).
O tropicalismo
durou quase que apenas um verão, entre 1967 e 1968. Começou com a
alegria, alegria dos festivais e findou com os tristes ais da
repressão, entre os quais o ai-5 e as posteriores prisão e exílio
de Gil e Caetano na Europa, longe dos trópicos. Os preceitos
tropicalistas de tolerância às diversas formas de expressão,
misturando novo e antigo, rural e urbano, erudito e popular, nacional
e estrangeiro, porém, deixaram raízes e frutificaram. Viva a bossa
e viva a palhoça, viva Ipanema e viva Iracema, por que não? O mundo
é complexo e não se resume a sim ou não, certo ou errado. Como
diria Adoniran, além disso, mulher, tem outra coisa. Entre a banda
de pífanos de Caruaru e uma banda de rock, tem a banda de Chico,
cantando coisas de amor. Nem tudo é bem ou mal, Ben ou Mautner.
Sobre o tropicalismo, leia também: Choque cultural.
* Tropicália (Caetano Veloso)
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país
Viva a Bossa, sa, sa
Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça
Viva a Bossa, sa, sa
Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça
O monumento é de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga, estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente, feia e morta
Estende a mão
Viva a mata, ta, ta
Viva a mulata, ta, ta, ta, ta
Viva a mata, ta, ta
Viva a mulata, ta, ta, ta, ta
No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina
E faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira entre os girassóis
Viva Maria, ia, ia
Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia
Viva Maria, ia, ia
Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia
No pulso esquerdo o bang-bang
Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores
Ele põe os olhos grandes sobre mim
Viva Iracema, ma, ma
Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma
Viva Iracema, ma, ma
Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma
Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém...
O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem
Viva a banda, da, da
Carmem Miranda, da, da, da, da
Viva a banda, da, da
Carmem Miranda, da, da, da, da
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