29.11.09

Os noventistas (ou os últimos poetas musicais do século XX)

Depois de duas décadas de ouro para a música brasileira, período em que surgiu com força a chamada MPB, o pop-rock deu as cartas nos anos 80. Trouxe talentos e méritos, mas também coisas de menor qualidade, como tudo que vem em excesso. Conquistou a preferência do público e uma quase exclusividade dos meios de comunicação, necessariamente nessa desordem, o que diminuiu bastante o espaço para outras boas novidades. Tudo isso, aliado ao peso de suceder a uma penca de cantores e compositores magníficos, fez com que uma certa geração pós-ditadura da MPB demorasse mais a pôr as manguinhas de fora e mostrasse sua cara apenas na década seguinte.

Do meu lado, em parte por decorrência natural do amadurecimento (vá lá, da idade), em parte por ter tido o privilégio de acompanhar, em tempo real, grandes lançamentos da nossa música, de tão preenchido, passei a fechar mais os tímpanos para novidades e, em consequência, demorar mais a assimilá-las. Com atenções merecidamente voltadas a esse museu de grandes novidades, do qual os grandes compositores da primeira geração da MPB eram peças principais, não foi de imediato que passei a apreciar novos talentos que surgiam.

Falo da turma de Cássia Eller, Moska, Lenine, Chico César, Zeca Baleiro, Zélia Duncan e, não tão integrados a estes, mas contemporâneos e também desenvolvendo trabalhos de qualidade, Marisa Monte e Adriana Calcanhotto. Alguns deles foram bastante ligados à turma dos anos 80 e, de certa forma, supriram lacuna deixada por Cazuza e Renato Russo. Como Cássia Eller, que gravou várias canções de Nando Reis (ex-Titãs) e Cazuza – é dele e Frejat sua interpretação de maior sucesso, Malandragem – e Moska, que à época fez parte do grupo Inimigos do Rei. Marisa Monte, que tem parcerias com Nando Reis e Arnaldo Antunes, mereceu destaque imediato em parte por também – e tão bem - romper a barreira entre MPB e pop-rock, entre Rosa de Pixinguinha e Comida dos Titãs.

Uma característica frequente nas composições desses noventistas, sobretudo de sua ala masculina, é o uso criativo do jogo de palavras, do qual são exemplos os seguintes versos: “Ah, Caicó arcaico / Em meu peito catolaico / Tudo é descrença e fé”, “Respeitem meus cabelos, brancos” (atenção para a vírgula), “Lágrimas de diamantes / à noite, lágrimas de diamantes / de dia lágrimas, à noite amantes”, “Gastei minha sandália havaiana / andando atrás dessa baiana / mas a baiana me vaiou / … / eu disse que vim do Cabo Verde / mas ela me achou imaturo / … / mand'ela vir, mand'ela aqui, mand'ela cá”, “Minha diva, meu divã / Minha manha, meu amanhã / Meu lá, minha lã / Minha paga, minha pagã / Meu velar, meu avelã”*.

Vozes femininas costumam falar de sentimentos com propriedade e, na geração que aflorou nos anos 90, elas vieram de mulheres que eram, também, compositoras, as quais conquistaram importante espaço ao colocarem em versos tanta sensibilidade: “Meu coração toda vez que te vê / quer gritar, se arriscar, sair cantando / me delatando pra todo mundo / pensa que está fora do alcance / ... / mas fecho os olhos então / e ele fica mudo / meu escuro é meu escudo / e silencioso é meu coração”, “Entre por essa porta agora / e diga que me adora / você tem meia hora / pra mudar a minha vida”, “Deixa eu dizer que te amo / deixa eu pensar em você / isso me acalma / me acolhe a alma / isso me ajuda a viver”**.

Entre Cássia Eller, Zélia Duncan, Adriana Calcanhotto e Marisa Monte, apenas a primeira não compunha com assiduidade. Claro que as gerações anteriores, de época tão rica e fértil para a nossa música, já traziam um toque feminino nas composições (Rita Lee, Ângela Rô Rô, Marina Lima, Joyce, entre outras, para citar apenas as de duplo ofício), mas grandes cantoras, como Maria Bethânia, Elis Regina, Gal Costa, Elba Ramalho e Zizi Possi, eram, sobretudo, intérpretes.

Esta fusão de tendências das duas décadas anteriores representa bem o amadurecimento de uma geração que, nascida ou crescida durante a ditadura militar, desestimulada a pensar, expressar-se, a participar de movimentos e discussões por tantos anos, viu-se perdida quando, enfim, conquistou a liberdade, numa década que começou quando um sonho acabou – a morte de John Lennon - e acabou quando outro começou – a queda do muro de Berlim. Geração perdida e década perdida, por sinal, são designações recorrentes quando se fala dessa época, mas, parafraseando Gilberto Gil, uma semente de ilusão tem que morrer pra germinar. Estamos no tempo de colher os frutos.


* Trechos das canções: A prosa impúrpura do Caicó, Respeitem meus cabelos, brancos (Chico César), Lágrimas de diamantes (Moska), Mand'ela (Chico César e Zeca Baleiro) e Meu amanhã (Lenine).

** Trechos das canções: Toda vez (Zélia Duncan e Christian Oyens), Vambora (Adriana Calcanhotto) e Amor I love you (Marisa Monte e Carlinhos Brown)


Mais pérolas em vídeo: Zélia Duncan - Me revelar (Zélia Duncan e Christian Oyens), Chico César - À primeira vista (Chico César), Moska - Pensando em você (Moska), Adriana Calcanhotto - Mentiras (Adriana Calcanhotto), Marisa Monte - Paradeiro (Marisa Monte e Arnaldo Antunes), Cássia Eller - Por enquanto (Renato Russo), Zeca Baleiro - Quase nada (Zeca Baleiro e Alice Ruiz) e Lenine - Paciência (Lenine e Dudu Falcão).