25.5.07

O homem velho


Caetano Veloso pode ser classificado de diversas maneiras, segundo diversos critérios, muitas vezes situando-se em mais de uma categoria ou em todas elas. O certo é que ele está sempre se reinventando, ousando, polemizando, desafiando rótulos e definições, fugindo aos padrões, abrindo caminhos alternativos, coerente apenas consigo mesmo e é isso que o torna tão bom. Numa análise simplista, particular e sem pretensões acadêmicas, diria que uma das diferenças entre ele e Chico Buarque, quanto às composições, é que deste, Maria Bethânia gravaria tudo, dele, nem tudo, o que pode ser enxergado como mérito ou não.

Seguindo esse raciocínio, as canções do novo disco de Caetano, Cê (como de outros também), poderiam ser divididas entre aquelas que Bethânia gravaria e as que ela não gravaria. Gosto de ambas porque gosto de ambos, mas prefiro as primeiras. É inimaginável vê-la cantando, por exemplo, “Rocks”, de um linguajar jovem demais para seu gosto (mas cê foi mesmo rata demais... você foi mor rata comigo), ou “Outro”, “Deusa urbana” e “Homem”, explícitas demais para ele. Por outro lado, a dramaticidade de “Não me arrependo” (nada, nem que a gente morra, desmente o que agora chega à minha voz) e “Minhas lágrimas” (... nada serve de chão onde caiam minhas lágrimas) cairia bem na sua voz.

Devido ao estilo mais roqueiro das músicas e dos arranjos de Cê, algo que o próprio cantor tem afirmado, alguns críticos têm-no comparado com Velô, seu disco lançado em 1984. Há semelhanças nos títulos dos dois discos. Cê tanto pode ser uma abreviatura do pronome você, usada, inclusive, em algumas letras das faixas do disco, como também uma referência à letra inicial de seu nome. Velô, por sua vez, pode ser uma abreviatura de velocidade (A letra de “Língua”, desse disco, inclusive, traz o termo neste sentido: “Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmen Miranda”), mas também do seu sobrenome, Veloso.

Os primeiros significados, de abreviaturas de palavras, denotam uma linguagem coloquial, uma forma jovial de expressão, que se alinha com o estilo mais jovem dos discos, enquanto os que se referem ao seu nome dão-lhes um caráter mais pessoal. Todas as canções de Cê, e quase todas de Velô, são de autoria de Caetano, que parece ter brincado com esses dois significados dos títulos, em sintonia com as semelhanças entre os dois trabalhos.

Outra semelhança é a nova banda que o acompanha em Cê, formada por jovens e competentes músicos, assim como era a Banda Nova, que o acompanhava em Velô. Tais escolhas, porém, parecem ser apenas conseqüência do espírito inovador que sempre o norteou, bem como da sonoridade que o cantor almejava com ambos os trabalhos, o que, no fundo, remete à semelhança anterior.

A comparação entre os dois discos deve ser considerada elogiosa, pois Velô, de 1984, foi um de seus melhores trabalhos, de canções marcantes como “Podres poderes”, “O quereres”, a citada “Língua” e “Shy moon”, em que ele interagia com o rock brasileiro que assolava o país, ao dividir os vocais com o cantor Ritchie. Nesse disco, também, ele regravou “Nine out of ten”, do álbum Transa, de sua fase pós-exílio na Inglaterra e inovou ao musicar o poema “Pulsar”, de Augusto de Campos, com uma melodia que varia entre tons graves e agudos, de acordo com o som das vogais que formam as sílabas de seus versos, ora abertas, ora fechadas, num ritmo constante, pulsante. Melodia concreta para um poema concreto.

É de Velô, também, uma das mais bonitas canções de Caetano, “O homem velho”*, não muito conhecida, mas à altura dos homenageados a quem ele a dedicou, com as seguintes palavras, no encarte do disco: “À memória do meu pai, a Mick Jagger e a Chico Buarque, que agora tem 40 anos, mas aos 20 fez uma canção lindíssima sobre o tema”, numa referência a não menos bonita “O velho”**, do álbum Chico Buarque de Hollanda – Vol. 3, de 1968. A música de Caetano traduz o pesar e o prazer do que significa ser um homem velho, numa descrição que bem pode, agora, ser aplicada ao próprio autor.

Voltando ao Cê da questão, o repertório do show oscila entre as músicas desse novo disco e outras de várias fases de sua carreira, com arranjos adaptados ao acompanhamento enxuto de guitarra, baixo e bateria, como “Sampa” e “Cajuína”. Entre as novas canções, dois bons momentos da apresentação são as interpretações de “Odeio”, que Caetano canta duas vezes, e “O herói”, de letra panfletária, no estilo de “Haiti” e “Podres poderes” (nasci num lugar que virou favela, cresci num lugar que já era ... por um triz não sou bandido).

A iluminação, nos momentos mais agitados do show, faz o palco parecer uma pista de dança, contagiando a platéia. Também visível, e bonito de se ver, é a integração deste grande homem velho com os jovens músicos que o acompanham, Pedro Sá na guitarra, Ricardo Dias Gomes no baixo e Marcelo Callado na bateria.

Entre as músicas que não fazem parte do novo CD, além de “O homem velho”, Caetano interpreta outra de suas melhores composições: “Desde que o samba é samba”, digna de Pixinguinha, Cartola ou qualquer dos grandes compositores do nosso país. Depois de ter feito músicas como essas, e tantas outras, Caetano pode tudo. E Cê não é tudo.

P.S.: Parabéns a uma das mães mais eficientes para a MPB, e das suas principais credoras, dona Canô, que em 2007 completa 100 anos (Cê, em romanos).

Leia também: Paul McCartney & Chico Buarque: sonhos sonhos são (Mário Montaut)



* O homem velho (Caetano Veloso)

O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais

A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock’n’roll
As coisas migram e ele serve de farol

A carne, a arte arde, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve traz o olor fugaz
Do sexo das meninas

Luz fria, seus cabelos têm tristeza de néon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom

Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal


** O velho (Chico Buarque)

O velho sem conselhos
De joelhos
De partida
Carrega com certeza
Todo o peso
Da sua vida
Então eu lhe pergunto pelo amor
A vida inteira, diz que se guardou
Do carnaval, da brincadeira
Que ele não brincou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nada
Só a caminhada
Longa, pra nenhum lugar

O velho de partida
Deixa a vida
Sem saudades
Sem dívida, sem saldo
Sem rival
Ou amizade
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me diz que sempre se escondeu
Não se comprometeu
Nem nunca se entregou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nada
Eu vejo a triste estrada
Onde um dia eu vou parar

O velho vai-se agora
Vai-se embora
Sem bagagem
Não sabe pra que veio
Foi passeio
Foi passagem
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me é franco
Mostra um verso manco
De um caderno em branco
Que já se fechou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Não
Foi tudo escrito em vão
Eu lhe peço perdão
Mas não vou lastimar

14.5.07

Nação nordestina - Parte II


Sendo a Paraíba um dos estados que produz mais cantores e compositores por metro quadrado, era natural que não ficasse de fora quando os ventos do mercado voltaram-se para o nordeste.

Zé Ramalho chegou com estilo, com letras complexas, enigmáticas, de tom profético, apocalíptico, psicodélico. Segundo ele, “música é para botar as pessoas para viajar” e seus discos, realmente, poderiam muito bem ser chamados de “discos voadores”. Como seu primeiro trabalho, um disco experimental em parceria com Lula Côrtes, Paêbirú, de pouca divulgação (escutando-o no escuro, voa-se melhor). Zé tornou-se mais conhecido do público em 1977, quando lançou um disco que trazia uma versão instrumental de “Bicho de sete cabeças” e as canções “Avôhai”* (com Patrick Moraz, do grupo inglês Yes, nos teclados), “Chão de giz” e “Vila do sossego”, alguns de seus maiores sucessos até hoje, que têm histórias interessantes, por ele reveladas em alguns depoimentos, que nos ajudam a entendê-las um pouco melhor.

“Chão de giz” foi feita para um amor platônico dele por uma mulher casada e rica, enquanto “Vila do Sossego” era a casa de praia de uma tia, em João Pessoa. “Em 73, essa casa tornou-se um ponto de encontro de artistas de João Pessoa que se reuniam para fumar um baseado, tomar umas, conversar sobre arte e outros rumos. ... O que aparece na música são citações desses encontros.” (tá explicado!), afirmou o cantor em depoimento ao poeta Jorge Salomão, em 1998. “Avôhai”, por sua vez, ele fez em homenagem ao avô que o criou, o “velho e invisível Avôhai”. Se eu tivesse ido à Vila do Sossego, gostaria de discutir com ele a letra de “Pelo vinho e pelo pão”. Seria uma metamorfose kafkaniana?

Compositor de excelentes trabalhos autorais, Zé Ramalho foi um dos compositores mais gravados por essa geração, com destaque para as interpretações marcantes de Elba Ramalho. Em um de seus melhores discos, o excelente álbum duplo “Nação Nordestina”, lançado em 2000, porém, ele assina apenas seis das vinte faixas. Nas demais, uma gama de compositores nordestinos: Luiz Gonzaga, João do Vale, Geraldo Vandré, Dominguinhos e Gilberto Gil, entre outros. Destaque para a criativa capa, inspirada em “Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, e para o encarte, com belos desenhos e todas as faixas comentadas. Produção de Robertinho do Recife.

A também paraibana Elba Ramalho começou cantando e atuando nas peças musicais “Morte e Vida Severina” e “Ópera do Malandro”, experiência que lhe proporcionou uma excelente presença de palco. Sempre identificada com suas raízes, gravou canções de vários compositores nordestinos, às vezes discos inteiros, como “Leão do Norte”, “Flor da Paraíba” (com exceção de uma faixa) e “Baioque” (deste, apenas a canção-título, de Chico Buarque, não tinha, entre os compositores, alguém da região).

Em 1984, Elba gravou a polêmica canção “Nordeste independente” (Bráulio Tavares / Ivanildo Vila Nova), uma crítica ao descaso e à discriminação sofrida pela região que, naqueles tempos, viveu o auge do coronelismo, do clientelismo, do voto de cabresto. “Já que existe no sul esse conceito / Que o nordeste é ruim, seco e ingrato / Já que existe a separação de fato / É preciso torná-la de direito”, dizia a primeira estrofe da canção, que tinha como refrão: “Imagine o Brasil ser dividido e o nordeste ficar independente”.

O baiano Moraes Moreira começou como integrante do grupo Novos Baianos, cujo primeiro disco foi lançado em 1969, partindo para carreira-solo em 1975. Nessa mesma época, conheceu Armandinho, filho de Osmar Macedo, um dos criadores do trio-elétrico, invenção que completava, então, 25 anos, “desde os tempos da velha fubica”. Este encontro foi fundamental para a definição do estilo musical de Moraes, que se tornou um exímio compositor de músicas carnavalescas, sendo seu primeiro grande sucesso a música “Pombo-correio”, feita em parceria com Dodô e Osmar.

A partir de 1978, continuou a compor belas marchinhas, afoxés e frevos, em parcerias com Fausto Nilo (“Chão da praça”, “Bloco do prazer”, “De noite e de dia”), Capinan (“Cidadão”) e Abel Silva (“Festa do interior”), carnavalizando essa turma que, com Fagner, por exemplo, compunha canções mais intimistas. Em 1981, apresentou-se no festival de Montreux, na Suíça, com Toquinho e Elba Ramalho, o que resultou num disco ao vivo. Outras belas canções suas são “Meninas do Brasil”, com Fausto Nilo, do LP “Bazar brasileiro”, de 1980 e “Lá vem o Brasil descendo a ladeira”, com Pepeu Gomes, do disco de mesmo nome, de 1979.

O ano de 1979, aliás, foi prodigioso com essa turma, todos no auge do reconhecimento artístico, lançando alguns de seus melhores trabalhos. “A Peleja do diabo com o dono do céu”, de Zé Ramalho, por exemplo, contou com acompanhamentos instrumentais de Geraldo Azevedo, Jorge Mautner, Pepeu Gomes e de sua conterrânea Cátia de França. Todas as canções eram de sua autoria, entre elas várias de suas melhores músicas: além da faixa-título, destaque para “Admirável gado novo”, “Beira-mar”, “Garoto de aluguel”, “Pelo vinho e pelo pão” e a instrumental “Agônico”, em que Zé Ramalho toca todos os instrumentos. Merece destaque também a capa, com Zé do Caixão e a atriz Xuxa Lopes.

“Frevo Mulher”, de Amelinha, contou com o mesmo respeitável elenco de compositores, em sua maioria nordestinos, em outras tantas belas canções: “Santa Tereza” (Fagner e Abel Silva), “Galope Rasante” (Zé Ramalho), “Coito das Araras” (Cátia de França) e a melhor gravação de “Dia Branco” (Geraldo Azevedo e Rocha). O mesmo pode-se dizer de “Ave de Prata”, primeiro disco de Elba Ramalho, que tinha, entre as canções, marcantes interpretações de “Não Sonho Mais”, de Chico Buarque, e “Ave de Prata”, de Zé Ramalho. Dois excelentes LP’s, que ainda não foram relançados em formato de CD.

Em “Beleza”, Fagner contou com seus parceiros e compositores habituais e com excelentes arranjos de João Donato. Sua melancolia característica permaneceu presente neste trabalho, através de sua voz, dos arranjos, das melodias e sobretudo dos versos de belas canções, como “Noturno”**, “Asas” e “Beleza”, três de seus maiores sucessos, carregadas de uma tristeza que chegava ao ápice na última faixa do disco, “Elizete”, que ele fez para sua irmã, falecida num acidente de automóvel, naquele ano.

Tantos talentos indiscutíveis, surgidos em condições as mais adversas (parafraseando Belchior, sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindos do interior), servem-nos de orgulho, ao mesmo tempo em que nos fazem refletir e questionar quantos tantos outros são desperdiçados, por falta de oportunidade, até que a gente aprenda que “ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer desse lugar um bom país” (Milton Nascimento).



* Avôhai (Zé Ramalho)

Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas, de ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde coarava sua camisa e seu alforje de caçador
Oh meu velho e invisível Avôhai
Oh meu velho e indivisível Avôhai
Neblina turva e brilhante em meu cérebro, coágulos de sol
Amanita matutina e que transparente cortina ao meu redor
Se eu disser que é meio sabido você diz que é meio pior
É pior do que planeta quando perde o girassol
É o terço de brilhante nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo da porteira
Nem também da companheira que nunca dormia só, Avôhai

O brejo cruza a poeira
De fato existe um tom mais leve na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos que amargam as pessoas que fitar
Mas que bebem sua vida sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas, cabelos de Avôhai
Na pedra de turmalina e no terreiro da usina eu me criei
Voava de madrugada e na cratera condenada eu me calei
Se eu calei foi de tristeza, você cala por calar
E calado vai ficando só fala quando eu mandar
Rebuscando a consciência com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando a carrapeta no jogo de improvisar
Entrecortando eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa pra doutor não reclamar
Avôhai, Avôhai, Avôhai


** Noturno (Graco-Caio Sílvio)

O aço dos meus olhos
E o fel das minhas palavras
Acalmaram meu silêncio
Mas deixaram suas marcas
Se hoje sou deserto
É que eu não sabia
Que as flores com o tempo
Perdem a força
E a ventania vem mais forte
Hoje só acredito
No pulsar das minhas veias
E aquela luz que havia
Em cada ponto de partida
Há muito me deixou, há muito me deixou...
Ai, coração alado
Desfolharei meus olhos
Neste escuro véu
Não acredito mais
No fogo ingênuo da paixão
São tantas ilusões
Perdidas na lembrança
Nesta estrada
Só quem pode me seguir sou eu
Sou eu, sou eu, sou eu...

3.5.07

Nação nordestina – Parte I


Sempre foi difícil para um artista nordestino, ou de qualquer outro lugar do país que não o eixo Rio-São Paulo, conseguir espaço para seu trabalho. Nos anos 70, porém, um grupo de cantores e compositores da região, oriundos em sua maioria do sertão, enfrentou o desafio de sair de sua terra natal para tentar a sorte por lá, seguindo os passos e exemplos dos mestres e conterrâneos Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, mas levando no matulão, também, a guitarra e abrindo portas para outros, que viriam depois.

Assumiram o estereótipo do nordestino, de feições agrestes, sem maquiagens nem embelezamentos artificiais, com sotaque, vozes melancólicas, fortes, ásperas, lembrando a paisagem crua e seca do sertão. Tais características marcantes, aliadas a uma notável qualidade musical, chamou a atenção da mídia e do público.

Oe elementos do grupo, apesar de dispersos geograficamente por entre os estados nordestinos, tinham forte ligação entre si. A cantora cearense Amelinha, por exemplo, começou com o conterrâneo Fagner e foi casada com Zé Ramalho. Este, por sua vez, tinha algum parentesco com Elba Ramalho e começou tocando na banda de Alceu Valença, que era amigo de Geraldo Azevedo e junto com ele iniciou a carreira. Essa união, que persistiu ao longo dos anos, produzindo importantes trabalhos, resultou, em 1996, em mais um excelente disco, "O Grande Encontro", gravado ao vivo, que reuniu Alceu, Geraldo, Elba e Zé. Em 1997 e 2000, mais dois volumes de "O Grande Encontro" foram lançados, sem a participação de Alceu Valença.

Do Ceará, Raimundo Fagner e Belchior foram os que mais conseguiram destaque, tendo recebido, no início de suas carreiras, fundamental apoio de Elis Regina que, em 1972, gravou em seu disco a canção Mucuripe, dos dois compositores, também gravada por Roberto Carlos, em 1975. Bem antes de se tornar conhecido pelo grande público em 1978, com o disco "Quem viver chorará" e a música "Revelação" (Clodô/Clésio), Fagner já havia feito excelentes trabalhos, como o disco de estréia, "O último pau-de-arara", de 1973, que contava com a participação de Nara Leão e Naná Vasconcelos, produção de Roberto Menescal e Paulinho Tapajós e arranjos de Ivan Lins.

É deste disco a música "Canteiros", feita por Fagner, baseada em poesia de Cecília Meireles (Marcha), que o tornou réu em processo movido pelas filhas da poetisa. Por decisão da justiça, o disco teve que ser relançado, com a substituição de "Canteiros" por "Cavalo ferro" (Fagner/Ricardo Bezerra) e apenas em 2000 o músico pôde regravar a canção, num álbum duplo, gravado ao vivo. O processo envolvia, também, outra canção, "Motivo", também baseada em poema de Cecília Meireles, de mesmo nome, gravada por Fagner, em 1978. Novamente, o disco foi recolhido e relançado, com a faixa "Quem me levará sou eu" (Dominguinhos/Manduka), que acabara de vencer um festival da Rede Tupi de Televisão, em substituição a "Motivo".

Fagner musicou, também, outros poemas, como "Traduzir-se", de Ferreira Gullar, "Fanatismo" e "Fumo", da poetisa portuguesa Florbela Espanca, entre outros. Desde seus primeiros trabalhos, contou com parcerias freqüentes e de qualidade com o compositor baiano Capinan ("Pavor dos paraísos", "Natureza noturna"), os cearenses Fausto Nilo ("O astro vagabundo", "Calma violência"), Brandão ("Dois querer", "Beleza"*) e Belchior ("Mucuripe", "Moto I"), além do carioca Abel Silva ("Asa partida", "Sangue e pudins", "Asas"). Contou, também, com a qualidade dos arranjos de nomes como Hermeto Paschoal, João Donato, Wagner Tiso, Robertinho do Recife e o já citado Ivan Lins, um time de primeira.

A maioria de suas canções traziam, em comum, versos plangentes (e pungentes), em tom de lamento, desesperança, pessimismo e desilusão, que combinavam bem com sua voz melancólica e agradaram em cheio à juventude, geralmente perdida. Em meados da década de 80, seguiu em uma linha romântica, porém de letras mais fáceis, menos elaboradas, numa trajetória que poderíamos chamar "De Revelação a Deslizes".

Amelinha teve quase todos os seus discos concentrados entre 1977 e 1987, sendo o primeiro deles produzido por Fagner, que também produziu trabalhos de vários outros cantores.
Sua voz bonita e agradável foi logo enaltecida, bem como seu repertório. Ednardo, mais conhecido como o autor de "Pavão misterioso" e "Enquanto engomo a calça", foi outro destaque cearense surgido na época.

Os pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo começaram a carreira um pouco antes, em 1972, quando lançaram um disco juntos. São deles as canções "Caravana" e "Táxi Lunar", esta última em parceria com Zé Ramalho. Em 1984, Geraldo lançou mais um trabalho em grupo, com o paraibano Vital Farias e os baianos Elomar e Xangai, a partir de um show gravado ao vivo, o LP "Cantoria", aclamado pela crítica. Compositor de estilo romântico, embora tenha composto, também, em outros estilos, teve como principal intérprete de suas canções a cantora Elba Ramalho.

De estilo inovador, Alceu foi um dos pioneiros, em Pernambuco, a misturar ritmos regionais com solos de guitarra, tendo parte dos créditos pelo surgimento, na década de 90, do manguebeat. Lançou seu primeiro trabalho individual em 1974, o conceituado "Molhado de suor", recentemente relançado em CD, e alcançou maior sucesso junto ao público no início da década de 80, com as canções "Coração bobo", "Pelas ruas que andei" e "Tropicana".



* Beleza (Raimundo Fagner - Brandão)

Beleza só se tem quando se acende a lamparina
Iluminando a alma se entende a própria sina
E quando se vê o arame que amarra toda gente
Pendendo das estacas sob um sol indiferente
Beleza só depois de uma sangria desatada
Aberta na ferida dos perigos do amor
E quando se afasta a sombra triste do remorso
Que faz olhar pra dentro para enfrentar a dor
Repara este silêncio que se estende da janela
Repassa o teu passado e come o lixo que ele encerra
Vagar sem remissão é também parte da questão
Juntar estas migalhas para refazer o pão
Não é da natureza que ele surge confeitado
Mas é desta tristeza, deste adubo de rancor
Beleza é o temporal que suja e corta uma visão
E esmaga qualquer sonho com um grito de pavor