23.1.07

Monte de sucesso


O ecletismo da produção musical de Marisa Monte reflete bem a trajetória de quem começou a carreira estudando canto lírico para, em seguida, aparecer ao público como revelação da música popular brasileira. Reflete, também, não apenas suas influências, mas suas amizades, seus amores, suas fases, sua vida pessoal.

De seu pai, ex-diretor-cultural da escola de samba carioca Portela, vieram os sambistas da Velha Guarda e com eles, Paulinho da Viola. De Nando Reis, vieram os Titãs e entre eles, Arnaldo Antunes (ou o contrário). De Davi Moraes, vieram os Novos Baianos e entre eles, Moraes Moreira, Pedro Baby e Dadi. Noves fora, Carlinhos Brown.

Finalmente, do seu filho, veio uma pausa de cerca de cinco anos nas apresentações em palco, que possibilitou o trabalho de pesquisa e a preparação de seus dois novos trabalhos, "Infinito particular" e "Universo ao meu redor", os quais melhoraram sua média anterior de cinco cd’s em 16 anos de carreira. Este maior espaçamento entre discos lançados e descompromisso de lançar um por ano são, em parte, responsáveis pela manutenção da qualidade em seu trabalho.

Em seu álbum preto, "Infinito particular", considerado por um crítico do jornal The New York Times o segundo melhor disco de 2006 em todo o mundo, todo o repertório é composto de canções suas, em diversas parcerias. Além da já habitual, com o concreto Arnaldo Antunes e o abstrato Carlinhos Brown, da qual ela tornou-se o equilíbrio, ela compôs, também, com Adriana Calcanhoto, Seu Jorge e Marcelo Yuka, entre outros.

Embora seja uma das cantoras que menos se expõe na mídia, sempre preservando seu infinito particular do universo ao seu redor (mesmo os discos são separados), Marisa vem mantendo uma boa parceria público-privada ao longo de sua carreira, preferindo mostrar suas caras na música, aos caros ouvintes, e não em revistas Caras, fúteis. "Gerânio", por exemplo, foi feita a partir de uma carta em que sua prima a descreve. Na canção que dá nome ao disco e é sua primeira faixa, por sua vez, a descrição pode se aplicar a ela mesma ou a sua música: "Eis o melhor e o pior de mim / O meu termômetro, o meu quilate / Vem, cara, me retrate / Não é impossível / Eu não sou difícil de ler / ... / Só não se perca ao entrar / No meu infinito particular".

"O rio" é uma bela e singela cantiga de ninar criança e gente grande também: "Quando amanhã por acaso faltar / Uma alegria no seu coração / Lembra do som dessas águas de lá / Faz desse rio a sua oração / Lembra, meu filho, passou, passará / Essa certeza a ciência nos dá / Que vai chover quando o sol se cansar / Para que flores não faltem".

Embora algumas de suas músicas, de estilo mais comercial, como "Já sei namorar", façam parte da sua cota "o pior de mim" (nesse caso, o termo privada, da PPP mencionada acima, pode, para alguns, assumir um outro significado), ela, de um modo geral, é competente nisso também (vide "Até parece" e "Pra ser sincero"). Ademais, sabe que tem um público diversificado e que a sociedade deformadora de opinião é bem mais condescendente com "pequenos deslizes" de cantores como ela que, embora definidos como de música popular brasileira, são tratados como genuínos representantes de uma música não-popular brasileira, na acepção elitista do termo.

"Pernambucobucolismo", idealizada durante um trajeto por entre plantações de cana-de-açúcar do interior de Pernambuco, remete-nos, realmente, ao doce silêncio e à leveza dos canaviais. Apenas baixo, percussão e sua voz, num arranjo puro, simples, bucólico, que tem como resultado uma revolução do interior (da pessoa e do lugar), não-praieira, pacífica, um movimento silencioso, um barulhinho bom. Para ouvir em silêncio absoluto. Também bucólica é "Vilarejo", que descreve um lugar onde o mundo tem razão e onde portas e janelas ficam sempre abertas pra sorte entrar. Peitos fartos, filhos fortes e em todas as mesas pão.

Dispondo de grande quantidade de material, após intensa pesquisa que contou com a ajuda de antigos compositores, Marisa, que já vinha gravando sambas em trabalhos anteriores, lançou, também, o álbum "Universo ao meu redor", só com músicas deste ritmo, entre composições antigas, mas ainda inéditas e outras mais recentes. Paulinho da Viola, de quem ela já gravara "Dança da solidão" e "Para ver as meninas", está muito bem representado nesse novo disco com "Para mais ninguém".

Ao ser indagada, em entrevista a uma revista, sobre novos talentos da música brasileira, Marisa Monte afirmou que, enquanto as pessoas estão sempre à procura do novo na juventude, ela busca o novo nas gerações anteriores. De fato, algumas músicas de "Universo ao meu redor" foram compostas há mais de cinqüenta anos e nunca haviam sido gravadas, entre elas "Meu canário" (Piu-piu, piu-piu, piu-piu, canta, meu canarinho, para amenizar a minha dor), do mesmo autor de "O pato" (O pato vinha cantando alegremente, quém, quém), o onomatopéico compositor Jayme Silva. A música estava registrada apenas no HD (head-disk) de Monarco, sambista da Portela.

Outro destaque da velha guarda é a canção "Lágrimas e tormentos", mas, como novo e antigo são adjetivos que denotam condição e não qualidade, sambistas mais novos como Adriana Calcanhoto e o trio Marisa, Brown e Arnaldo, atendem satisfatoriamente ao pedido final dos mais velhos, de não deixar o samba morrer, com suas canções "Vai saber" e "Universo ao meu redor", respectivamente.

Os arranjos, de Eumir Deodato, João Donato e Philip Glass, conseguem manter a atmosfera de simplicidade das canções, sem perderem o esmero e o apuro. Nos acompanhamentos, na bateria, Pupilo (Nação Zumbi) e em instrumentos de corda, Jacques Morelenbaum, Nicolas Krassik, Pedro Baby e o inseparável Dadi (A Cor do Som), entre outros. Toda essa mistura, meio bossa nova e rock’n roll, talvez revele o segredo de seu sucesso, a abrangência de seu público e sua percepção de que o Brasil não é só verde, anil e amarelo, o Brasil também é cor de rosa e carvão.