3.5.07

Nação nordestina – Parte I


Sempre foi difícil para um artista nordestino, ou de qualquer outro lugar do país que não o eixo Rio-São Paulo, conseguir espaço para seu trabalho. Nos anos 70, porém, um grupo de cantores e compositores da região, oriundos em sua maioria do sertão, enfrentou o desafio de sair de sua terra natal para tentar a sorte por lá, seguindo os passos e exemplos dos mestres e conterrâneos Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, mas levando no matulão, também, a guitarra e abrindo portas para outros, que viriam depois.

Assumiram o estereótipo do nordestino, de feições agrestes, sem maquiagens nem embelezamentos artificiais, com sotaque, vozes melancólicas, fortes, ásperas, lembrando a paisagem crua e seca do sertão. Tais características marcantes, aliadas a uma notável qualidade musical, chamou a atenção da mídia e do público.

Oe elementos do grupo, apesar de dispersos geograficamente por entre os estados nordestinos, tinham forte ligação entre si. A cantora cearense Amelinha, por exemplo, começou com o conterrâneo Fagner e foi casada com Zé Ramalho. Este, por sua vez, tinha algum parentesco com Elba Ramalho e começou tocando na banda de Alceu Valença, que era amigo de Geraldo Azevedo e junto com ele iniciou a carreira. Essa união, que persistiu ao longo dos anos, produzindo importantes trabalhos, resultou, em 1996, em mais um excelente disco, "O Grande Encontro", gravado ao vivo, que reuniu Alceu, Geraldo, Elba e Zé. Em 1997 e 2000, mais dois volumes de "O Grande Encontro" foram lançados, sem a participação de Alceu Valença.

Do Ceará, Raimundo Fagner e Belchior foram os que mais conseguiram destaque, tendo recebido, no início de suas carreiras, fundamental apoio de Elis Regina que, em 1972, gravou em seu disco a canção Mucuripe, dos dois compositores, também gravada por Roberto Carlos, em 1975. Bem antes de se tornar conhecido pelo grande público em 1978, com o disco "Quem viver chorará" e a música "Revelação" (Clodô/Clésio), Fagner já havia feito excelentes trabalhos, como o disco de estréia, "O último pau-de-arara", de 1973, que contava com a participação de Nara Leão e Naná Vasconcelos, produção de Roberto Menescal e Paulinho Tapajós e arranjos de Ivan Lins.

É deste disco a música "Canteiros", feita por Fagner, baseada em poesia de Cecília Meireles (Marcha), que o tornou réu em processo movido pelas filhas da poetisa. Por decisão da justiça, o disco teve que ser relançado, com a substituição de "Canteiros" por "Cavalo ferro" (Fagner/Ricardo Bezerra) e apenas em 2000 o músico pôde regravar a canção, num álbum duplo, gravado ao vivo. O processo envolvia, também, outra canção, "Motivo", também baseada em poema de Cecília Meireles, de mesmo nome, gravada por Fagner, em 1978. Novamente, o disco foi recolhido e relançado, com a faixa "Quem me levará sou eu" (Dominguinhos/Manduka), que acabara de vencer um festival da Rede Tupi de Televisão, em substituição a "Motivo".

Fagner musicou, também, outros poemas, como "Traduzir-se", de Ferreira Gullar, "Fanatismo" e "Fumo", da poetisa portuguesa Florbela Espanca, entre outros. Desde seus primeiros trabalhos, contou com parcerias freqüentes e de qualidade com o compositor baiano Capinan ("Pavor dos paraísos", "Natureza noturna"), os cearenses Fausto Nilo ("O astro vagabundo", "Calma violência"), Brandão ("Dois querer", "Beleza"*) e Belchior ("Mucuripe", "Moto I"), além do carioca Abel Silva ("Asa partida", "Sangue e pudins", "Asas"). Contou, também, com a qualidade dos arranjos de nomes como Hermeto Paschoal, João Donato, Wagner Tiso, Robertinho do Recife e o já citado Ivan Lins, um time de primeira.

A maioria de suas canções traziam, em comum, versos plangentes (e pungentes), em tom de lamento, desesperança, pessimismo e desilusão, que combinavam bem com sua voz melancólica e agradaram em cheio à juventude, geralmente perdida. Em meados da década de 80, seguiu em uma linha romântica, porém de letras mais fáceis, menos elaboradas, numa trajetória que poderíamos chamar "De Revelação a Deslizes".

Amelinha teve quase todos os seus discos concentrados entre 1977 e 1987, sendo o primeiro deles produzido por Fagner, que também produziu trabalhos de vários outros cantores.
Sua voz bonita e agradável foi logo enaltecida, bem como seu repertório. Ednardo, mais conhecido como o autor de "Pavão misterioso" e "Enquanto engomo a calça", foi outro destaque cearense surgido na época.

Os pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo começaram a carreira um pouco antes, em 1972, quando lançaram um disco juntos. São deles as canções "Caravana" e "Táxi Lunar", esta última em parceria com Zé Ramalho. Em 1984, Geraldo lançou mais um trabalho em grupo, com o paraibano Vital Farias e os baianos Elomar e Xangai, a partir de um show gravado ao vivo, o LP "Cantoria", aclamado pela crítica. Compositor de estilo romântico, embora tenha composto, também, em outros estilos, teve como principal intérprete de suas canções a cantora Elba Ramalho.

De estilo inovador, Alceu foi um dos pioneiros, em Pernambuco, a misturar ritmos regionais com solos de guitarra, tendo parte dos créditos pelo surgimento, na década de 90, do manguebeat. Lançou seu primeiro trabalho individual em 1974, o conceituado "Molhado de suor", recentemente relançado em CD, e alcançou maior sucesso junto ao público no início da década de 80, com as canções "Coração bobo", "Pelas ruas que andei" e "Tropicana".



* Beleza (Raimundo Fagner - Brandão)

Beleza só se tem quando se acende a lamparina
Iluminando a alma se entende a própria sina
E quando se vê o arame que amarra toda gente
Pendendo das estacas sob um sol indiferente
Beleza só depois de uma sangria desatada
Aberta na ferida dos perigos do amor
E quando se afasta a sombra triste do remorso
Que faz olhar pra dentro para enfrentar a dor
Repara este silêncio que se estende da janela
Repassa o teu passado e come o lixo que ele encerra
Vagar sem remissão é também parte da questão
Juntar estas migalhas para refazer o pão
Não é da natureza que ele surge confeitado
Mas é desta tristeza, deste adubo de rancor
Beleza é o temporal que suja e corta uma visão
E esmaga qualquer sonho com um grito de pavor

7 comentários:

Anônimo disse...

Ei de divulgar o blog para as revistas e jornais, talento desse jeito não se encontra fácil.

Felipe Leal disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Felipe Leal disse...

Como sempre, muito bom o texto!

Anônimo disse...

Paulo

Que coincidência! BELEZA foi exatamente a música que pensei em escrever no comentário, logo que iniciei a leitura do texto.
"iluminando a alma se entende a própria sina".

Anônimo disse...

Lembrei de um trecho, acho que é de Sangue e Pudins: "não guardo segredo mas sou bem secreto,é que eu mesmo não acho a chave de mim".
Haja psi...

Anônimo disse...

Bah...

"(...)CD de estréia, "O último pau-de-arara", de 1973(...)"


CD em 1973???

hehehe :-D

Paulo Bap disse...

Ôps... Corrigido, obrigado.