29.9.06

Beleza pura

Pouco antes e ainda durante a renovação, para o bem ou para o mal, da música brasileira, proporcionada pelo chamado BRock e de seu monopólio na indústria fonográfica nacional, um grupo dava um novo tom, uma nova cor ao som monocromático da música brasileira de então. Com seu embrião formado no grupo Novos Baianos, do qual fazia parte o baixista Dadi, e contando com dois baianos entre seus integrantes, este novo grupo daria seqüência à boa e constante influência dos mesmos na MPB, com o mesmo charme bonito que o santo lhes deu.

Com a saída de Moraes Moreira dos Novos Baianos para seguir carreira-solo, Dadi passou a acompanhá-lo em shows para, em seguida, dar vida própria a esse novo grupo ao qual Caetano Veloso, que já homenageara o baixista com a canção "Leãozinho", sugeriu o nome de "A Cor do Som".

Para compor a aquarela musical da banda, Dadi convidou seu irmão Mu Carvalho, pianista. Ambos vêm de uma família bastante ligada à música e também são irmãos de Sérgio Carvalho, produtor musical e de Heloísa Tapajós, socióloga e pesquisadora de MPB. Heloísa, por sua vez, é casada com o compositor Paulinho Tapajós, autor de clássicos da nossa música, como "Andança" (com Edmundo Souto e Danilo Caymmi) e "Cantiga por Luciana" (com Edmundo Souto). Numa parceria em família, Mu e Paulinho Tapajós, juntamente com Cláudio Nucci, integrante do grupo Boca Livre, compuseram a bela canção "Sapato velho", que veio a se tornar um grande sucesso na interpretação do grupo Roupa Nova.

Outro integrante de "A Cor do Som" foi o principal responsável por dar ao grupo um perfil e uma identidade instrumental peculiar, bastante elogiados à época: Armandinho, filho de Osmar Macedo, inventor do trio elétrico junto com Dodô (completava o trio, o músico Temístocles Aragão). No início da década de 60, aos nove anos de idade, em Salvador, ele já tocava guitarra no grupo do pai que, a partir de 1974, passou a ser conhecido como "Trio Elétrico Armandinho, Dodô e Osmar". Hoje, é considerado um dos maiores instrumentistas do país e o danado é bom como quê, mesmo.

Completaram a formação original do grupo o baterista Gustavo Schröeter, que também acompanhara Moraes no início de sua carreira-solo e o percussionista Ary Dias.

O grupo lançou dez trabalhos, entre 1977 e 1987, e foi convidado, em 1979, a participar do disco "A Ópera do Malandro", de Chico Buarque, a quem acompanharam na faixa "Hino de Duran". Reuniram-se em 1996 para a gravação de um CD ao vivo e novamente em 2006, com "A Cor do Som Acústico", com o qual ganharam o prêmio Tim de melhor grupo, na categoria canção popular.

Este novo CD/DVD mostra bem a diversidade de ritmos e sons que sempre caracterizou a banda, indo do chorinho instrumental de "Noites cariocas" (Jacob do Bandolim) ao samba-reggae de "Amor inteiro" (Armandinho e Fausto Nilo). Contém algumas músicas inéditas, como "O dia de amanhã" (Dadi e Arnaldo Antunes) e antigos sucessos do grupo, com destaque para "Abri a porta", de Gilberto Gil e Dominguinhos, "Beleza Pura", de Caetano Veloso, com participação especial de Daniella Mercury e "Menino Deus", também de Caetano, com quem eles cantam na faixa.

Uma curiosidade sobre Menino Deus* é que a canção homenageia, com poesia, singeleza e ternura, um bairro antigo da cidade de Porto Alegre, de mesmo nome, que Caetano descobriu em uma viagem àquela cidade (Também foi assim que descobri tal homenagem, em passagem pelo bairro, por meio de uma guia de turismo).

Outra participação especial no CD foi a de Moraes Moreira em "Davilicença", composta por ele (em parceria com Armandinho) em homenagem ao então pequenino filho, Davi Moraes, o qual participa do DVD, tocando guitarra no frevo Taiane, de Osmar Macedo.

Atualmente, além do trabalho com "A Cor do Som", seus integrantes trabalham com outros projetos e músicos. Dadi faz parte da banda que acompanha a cantora Marisa Monte e possui composições em parceria com ela, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes (é quase, digamos assim, um quarto tribalista). Armandinho continuou o trabalho de seu pai, já falecido, no trio elétrico e vem fazendo um trabalho instrumental em conjunto com o violonista Yamandú Costa.



Menino Deus (Caetano Veloso)

Menino Deus, um corpo azul dourado
Um porto alegre é bem mais que um seguro
Na rota das nossas viagens no escuro

Menino Deus, quando tua luz se acenda
A minha voz comporá tua lenda
E por um momento haverá mais futuro
Do que jamais houve

Mas ouve a nossa harmonia,
A eletricidade ligada no dia
Em que brilharias por sobre a cidade

Menino Deus, quando a flor do teu sexo
Abrir as pétalas para o universo
E então, por um lapso, se encontrar anexo

Ligando os breus, dando sentido aos mundos
E aos corações sentimentos profundos
De terna alegria no dia
Do menino Deus
No dia do menino Deus

19.9.06

Um jornal brilhante


Na segunda metade da década de 60, após o golpe militar e antes do AI-5, enquanto as pessoas na sala de jantar eram ocupadas em nascer e morrer, o Sol despontava do lado de fora de suas janelas, antes que a definitiva noite se espalhasse.

O jornal alternativo "O Sol" surgiu como um encarte diário do Jornal dos Sports e logo ganhou luz própria. A idéia de seu idealizador e criador, o jornalista Reynaldo Jardim, era que fosse um jornal-escola, em que editores como ele, Zuenir Ventura, Carlos Heitor Cony e Ziraldo assumiriam o papel de professores, e novos jornalistas, atuando como repórteres e colaboradores, seriam os alunos. Entre os alunos de destaque estavam Daniel Azulay, Dedé Gadelha, primeira esposa de Caetano Veloso e Luiz Carlos Sá, que depois viria a compor o trio Sá, Rodrix e Guarabira, autor de belas canções como "Caçador de mim" e "Sobradinho" ("o sertão vai virar mar, dá no coração o medo que algum dia o mar também vire sertão"), em parceria com Guarabira, além de um dos jingles mais duradouros e famosos do nosso país ("Vem pra Caixa você também").

Como se quisesse acompanhar a temporada anual do seu homônimo astro-rei no hemisfério sul, o Sol durou apenas seis meses, começando na primavera e terminando no verão, entre 1967 e 1968. É sobre ele, os fatos que noticiava e as pessoas que faziam ou eram notícia na época que versa o documentário "O Sol – Caminhando contra o vento", dirigido por Tetê Moraes, com roteiro dela e de Martha Alencar, as quais faziam parte da equipe do periódico. A maior parte dos depoimentos foram colhidos durante uma reunião de confraternização organizada pela produção do filme, alguns deles sem acrescentar muito ao seu resultado final, como se a diretora tivesse filmado tudo e esquecido de cortar os excessos. Em certos momentos, também, sente-se falta de uma narrativa que o conduza e explique melhor a história do jornal.

O filme situa bem a história de "O Sol" no contexto político e cultural da época, mostrando cenas de acontecimentos contemporâneos marcantes, tanto no âmbito nacional quanto em outros países, como a passeata dos cem mil, o AI-5, a primavera de Praga e a morte de Che Guevara. Tendo surgido em meio a toda essa efervescência política, o jornal destacava-se nessa área, com matérias provocadoras e manchetes criativas como "CPI PARA CIA" e "FMI É O FIM".

Participam com vários depoimentos ao longo do documentário, além daquelas que trabalhavam no jornal, pessoas que viveram ou, de alguma maneira, influenciaram os acontecimentos da época e viram o Sol nascer (alguns deles, quadrado também), como Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso, Fernando Gabeira, Ruy Castro e Vladimir Palmeira.

Na área cultural, o país vivia o auge dos festivais de música, com inúmeros talentos surgindo e o filme mostra cenas de alguns desses festivais, como o de 1967, de um nível tal que teve como primeiros colocados os compositores Edu Lobo (Ponteio), Gilberto Gil (Domingo no Parque), Chico Buarque (Roda Viva) e Caetano Veloso (Alegria, Alegria). Este último, em um de seus depoimentos, esclarece a dúvida sobre sua suposta referência ao jornal, em trecho da letra dessa canção ("O sol nas bancas de revista me enche de alegria e preguiça"). Também são exibidas cenas do festival de 1968, que teve a polêmica disputa do primeiro lugar entre "Pra não dizer que não falei das flores", de Geraldo Vandré, a preferida do público, e "Sabiá", de Chico Buarque e Tom Jobim, que venceu sob protestos e vaias, embora também trouxesse em sua letra alguma mensagem política, ainda que de uma forma bem mais sutil e leve em comparação com sua concorrente. *

Ao final, uma frase muito repetida à época (não apenas por padeiros) é colocada como pergunta a alguns dos entrevistados que a respondem de uma maneira que logo associamos ao contexto político atual e à chegada da esquerda ao poder no Brasil: o sonho acabou? Caetano diz que sim, mas que isso pode não ser ruim. Gabeira diz que não, que ele apenas está se modificando e tem que se renovar sempre. Que a gente possa, então, seguir vivendo. Por que não? Por que não?

Página oficial do filme: http://www.osolfilme.com



* Com exceção de "Ponteio", as demais músicas citadas neste parágrafo, bem como "Panis et circenses" (Gilberto Gil e Caetano Veloso) e "Soy loco por ti America" (Gilberto Gil e Capinam), também referenciadas no texto, constam da trilha sonora do filme, disponível em CD.

4.9.06

Meia-verdade

Em tempos de vacas magras na seleção brasileira de futebol, lembremos do episódio ocorrido nas quartas-de-final da copa do mundo 2006, época em que as vacas começaram o regime: o momento do gol que eliminou o Brasil, na derrota para a França. Tal episódio motivou, à época, desabafo (não a música) de Roberto Carlos (não o cantor), em que ele afirmava entender a revolta das pessoas, mas que os jogadores deviam ser respeitados e dizia também: “Chega de tentar achar culpados, vamos pelo menos uma vez entender que futebol é assim, nem sempre se pode vencer”. Apenas para relembrar os fatos, na hora do gol, Roberto Carlos estava ajeitando a meia.

Em meio a tanta confusão, apesar de concordar em parte com a reação meio irada de boa parte dos torcedores e não negar que o Brasil jogou um futebol de meia-tigela nessa copa, venho, por meio deste texto, buscar um meio-termo e defender o nosso jogador de camisa meia-dúzia, que estava, realmente, meio devagar, e de tão lento, quase não passou do meio-de-campo, mas que, em outros torneios, deu aos amantes do futebol, principalmente ao povo mais sofrido, meios de levar a vida com um pouco mais de alegria e por isso não deve ter seu passado esquecido ao ir pro meio da rua.

Em nosso país, há mesmo uma certa vocação para a caprinocultura expiatória, seja no campo dos esportes (incluindo o meio-campo do futebol), da política, das artes ou em outro qualquer. Sendo ou não cabras (ou bodes) safados, os bodes expiatórios são comuns no nosso meio ambiente, aparecendo sempre que algo deu bode, muitas vezes por incentivo dos meios de comunicação, querendo embolar o meio-de-campo. O técnico zangado, anterior a Dunga, não estava de todo errado quando afirmou que os torcedores eram “caixas de ressonância” da imprensa. Quem assistiu à Rede Globo achincalhando o nosso lateral de meia-idade ou execrando e decretando o fim do francês Zidane e como isso repercutiu na opinião de meio mundo de gente sabe disso.

Temos vários exemplos de bodes expiatórios que, de todos os bodes (ou “everybode”), são os únicos penalizados. No futebol, Roberto Carlos tem, entre outras, a companhia de Toninho Cerezzo, a ovelha negra, ou o bode da vez da copa do mundo de 82 (uma copa não se perde por causa de meio minuto, uma reputação, sim). Como esse meio não é privilégio dos brasileiros, na música, Yoko Ono também possui o título, em reconhecimento a serviços prestados em favor do fim da carreira dos Beatles, do ponto de vista dos fãs, para quem, ao casar-se com John Lennon, ela, literalmente, passou a ter culpa no cartório.

Dando meia-volta e retornando ao futebol brasileiro, percebe-se que os mais jovens, por acompanharem os jogos com mais fervor, por não terem presenciado outros fracassos da nossa seleção, como em 66 e 90 - entre outras tantas conquistas e boas participações - e não conhecerem, até 2006, uma seleção brasileira que não tivesse ido a uma final de copa, foram os mais indignados e, em conseqüência, mais suscetíveis a interpretações precipitadas. Talvez, a geração no entremeio de dois títulos, que não acompanhou a copa de 70 e só viu o Brasil ser campeão em 94, já na idade adulta, mais calejada por tantos percalços futebolísticos, seja mais conformada e transigente com tais fracassos.

Depois de 1986, 1998 e 2006, francamente, o Brasil já é freguês da França. Na última encomenda desse freguês, o tal lance fortuito do gol que nos fez cantar em outra freguesia, foi a linha de impedimento da defesa brasileira que falhou (se os demais jogadores da nossa seleção tivessem arrumado a meia também, em vez de correrem em direção à bola, talvez tivesse sido melhor). Ademais, o Brasil não perdeu a copa porque Roberto Carlos arrumou a meia, o zangado Parreira é que não arrumou um meio de o Brasil ganhar a copa. E em vez de colocar outro meia em seu lugar, apenas amarrou o bode...