5.12.11

Marisa de verdade

Desde seu primeiro trabalho, que misturava rock, samba, xote e MPB, Marisa Monte recebeu o rótulo elogioso de cantora eclética. Como a primeira impressão é a que fica, vem daí as expectativas da crítica especializada e de parte de seu público por trabalhos diferenciados e longe do óbvio. A partir do segundo disco, Mais, a cantora foi além e surgiu como compositora, lado que vem exercitando desde então, num crescente. Nesse ofício, vem seguindo o modelo Roberto Carlos de manter-se fiel a poucos parceiros e repetir uma fórmula que vem dando certo, mas que pode soar repetitiva (Roberto, por sinal, é um dos compositores admirados pela diva). 

Não trilhar o caminho mais fácil de sempre gravar outros compositores, ao mesmo tempo em que constitui ato de ousadia, deixa o cantor mais vulnerável e exposto a críticas, o que vem ocorrendo com seu novo disco, O que você quer saber de verdade, “acusado” de ter canções um tanto quanto óbvias, pra não dizer simplórias. De fato, o disco traz algumas melodias fáceis e mensagens simples (vão-se memórias e crônicas, ficam-se declarações de amor), mas isso não chega a ser novidade - vide Os tribalistas e seu megassucesso Já sei namorar -, nem compromete todo o resultado - o citado Mais tinha canções como Eu sei e Beija eu, no mesmo estilo e nem por isso desinteressantes, assim como as do disco atual. A diferença, talvez, esteja na dose.

Em entrevista sobre o novo trabalho, Marisa diz gostar e sempre se utilizar desse tipo de linguagem em suas canções: “Minha música sempre teve essa vocação popular. (...) Minha linguagem sempre foi direta, clara, simples. (...) Claro que tem um contato com uma poesia mais sofisticada, como em Diariamente, Bem Leve ou Maria De Verdade. E eu gosto disso também. (...) Dizem que sou cult, mas eu nunca tive a intenção de ser cult, no sentido de fazer música para poucos. Às vezes, acho que a minha música se confunde com a minha postura reservada. E isso cria um paradoxo.”

O que você quer saber de verdade, com exceção de três faixas, tem a participação de um, dois ou três dos inseparáveis compositores Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e a própria Marisa Monte. Para comprovar que às vezes é bom inspirar novos ares e novos parceiros, uma das mais diferenciadas canções do disco é O que se quer, parceria dela com Rodrigo Amarante, do Los Hermanos, que soa como uma marcha-rancho sanfonada. Em seus dois discos simultâneos anteriores, Adriana Calcanhoto e outros entraram nesse rol de novos parceiros, também com bons resultados.

Outros companheiros de longas datas de Marisa também participam deste novo disco. O músico Dadi, ex-Novos Baianos e A Cor do Som, marca presença como coprodutor, instrumentista, compositor e pai (seu filho André Carvalho, que apareceu para a mídia na voz de Maria Gadu como autor de Tudo diferente, assina Nada tudo). Três músicos da Nação Zumbi - Pupilo, Dengue e Lúcio Maia – participam como instrumentistas e é interessante ver suas performances num outro estilo musical.

Bastante ligada a suas raízes cariocas, ao samba e aos compositores do Rio de Janeiro, como Tim Maia, Jorge Benjor e Paulinho da Viola, Marisa Monte sempre manteve ligações musicais, também, com o nordeste brasileiro, desde seu primeiro disco, quando gravou o Xote das meninas (Luiz Gonzaga / Zé Dantas), com citações de Genival Lacerda. Além de Brown e do trio da Nação, a porção nordestina do novo disco está presente no acordeon do cearense Waldônis - que deu um toque bem peculiar e especial a algumas canções - e, particularmente, na faixa Hoje eu não saio não, que é tipo um xaxado, buarqueanamente falando.

A canção-título*, que abre o disco e foi anteriormente gravada por Arnaldo Antunes em Qualquer (2006), fala da graça das pequenas coisas, do que realmente importa. Na mensagem singela, lembra Vilarejo, do álbum anterior e, como aquela, não caberia em letra e arranjo rebuscados. Ambas são canções adequadas, que cabem em si. O disco segue com Descalço no parque, uma antigona de Jorge Ben - e aí MM repete a fórmula RC de sucesso. Quem se lembra dos discos de Roberto Carlos da década de 70 sabe que todos eles tinham que ter uma canção de Maurício Duboc e Carlos Colla, outra de Isolda e Milton Carlos, além de uma de tema religioso e outra ecológica. No caso de Marisa, onde lê-se cada uma das duplas, leia-se Paulinho da Viola e Jorge Ben(jor).

Marisa Monte também é eficaz em baladas e, se Infinito particular tinha Pra ser sincero e Até parece, neste elas estão bem representadas com Depois e Era óbvio. Amor I love you passou a bola pra Ainda bem**, um bolerão rasgado, com direito a trompete e belo clipe em preto e branco(a) dela bailando com o lutador Anderson Silva. Se as duas músicas não dizem tanto, dizem o necessário àquilo a que se propõem - mais uma vez, cabem em si. Outros exemplos de trechos de letras simples, mas bacanas estão em Seja feliz (“Tão curta a vida. Curta a vida”) e Bem aqui (“Se a gente nem sabe onde está bem, está bem aqui”). Merecem destaque, ainda, outras duas canções: uma versão que foi sucesso décadas atrás com Dalva de Oliveira (Lencinho querido) e outra que lembra as músicas da Jovem Guarda (Aquela velha canção).

Amantes da música num sentido mais amplo e geral hão de apreciar o novo trabalho da cantora de bela voz. Escutar, entender, viajar, dançar, pular, protestar, namorar, cantarolar, assoviar, para cada situação, há um tipo de música mais adequado e, a depender das circunstâncias, a água mineral do Candeal pode até saciar mais ou descer melhor do que aquilo que apreciamos num Bach, on the rocks, jazz, blues, etc.


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9.11.11

Música das bandas de lá

O documentário Rock Brasília – Era de ouro, de Vladimir Carvalho, vem sendo exibido de forma discreta nas salas de cinema do país, com exceção da capital federal, onde foi o esperado filme de abertura do consagrado festival de cinema local. A repercussão por lá não podia ser diferente, em se tratando de uma cidade que é importante personagem da história contada, mas o filme é uma boa surpresa, também, para quem se dispõe a assisti-lo longe do planalto central, do céu de Brasília, do traço do arquiteto.

Em geral, fala-se do rock brasileiro dos anos 80 como algo indivisível, sem considerar suas especificidades e, nesse aspecto, o filme tem uma abordagem diferente: atém-se ao surgimento de três bandas brasilienses – Capital Inicial, Plebe Rude e Legião Urbana -, cujas histórias são interligadas. Apesar dessa abordagem, não deixa de inserir o universo local no contexto nacional e vice-versa.

Brasília é uma cidade atípica, que não conseguimos dissociar de dois aspectos principais. Primeiro o político, refletido em certas letras de cunho social das bandas de lá, como Que país é esse, Até quando esperar, Mais do mesmo, Geração Coca-Cola (desde pequenos nós comemos lixo / comercial e industrial / mas agora chegou nossa vez / vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês). Depois - consequência de ser centro do poder - o fato de abrigar pessoas de várias localidades, sobretudo na década de 80, quando ainda formava a primeira geração de nativos, então na casa dos vinte anos. Muitos dos jovens eram filhos de políticos, diplomatas, funcionários públicos, incluindo integrantes dos três citados grupos.

O filme dá a devida importância a esses aspectos no surgimento de tais bandas, na medida em que toma como coprotagonistas os pais (literalmente) do rock brasiliense e põe suas considerações ao lado dos depoimentos de integrantes das três bandas, em diferentes épocas, colocando, juntos, pais e filhos da revolução, como ressalta o trailer oficial. Boa parte da história é contada do ponto de vista dos pais.

O embrião desses grupos musicais foi a amizade dos irmãos Fê e Flávio Lemos com Renato Russo. Os três formaram, com outros amigos, a banda punk Aborto Elétrico, que seria dividida, após desentendimentos, em Capital Inicial e Legião Urbana. Junto com os garotos que formariam a Plebe Rude, eles moravam todos próximos, em uma das quadras residenciais do plano piloto da capital federal, onde matavam o tempo e o propalado marasmo da cidade em encontros regados a rock e maconha.

Em paralelo, bandas cariocas já causavam certo alvoroço sonoro no Rio de Janeiro, a começar da Blitz e foi uma delas, meio carioca, meio brasiliense, que fez a ponte e impulsionou o movimento dos meninos de Brasília: os Paralamas do Sucesso. Dois de seus integrantes, Bi Ribeiro e Herbert Vianna tinham um pé naquela cidade. Os Paralamas já gozavam de certo prestígio na mídia e puderam, assim, dar boas referências de seus colegas às gravadoras, ávidas por novos talentos num estilo musical que prosperava.

As três bandas mostradas no filme fazem parte da segunda leva dos grupos de rock brasileiros dos anos 80, os quais despontaram para o sucesso após a primeira metade da década, que teve como divisores de águas a eleição indireta de Tancredo Neves para presidente e o Rock in Rio I, ambos em janeiro de 85. Com exceção do grupo Legião Urbana, ícone da música daquele período, os dois outros tiveram, na ocasião, menor acesso à mídia, sobretudo a Plebe Rude que, salvo algumas músicas, não tocava tanto nas rádios, sempre mais abertas ao que consideravam sucessos fáceis.

Não obstante, o maior sucesso da Plebe Rude, Até quando esperar*, é uma canção menos comum, que fala do acaso probabilístico com que somos jogados de um ou outro lado da sociedade ao nascermos, bem como de um certo sentimento de culpa que tal fato provoca naqueles que fazem parte do lado mais privilegiado, em condições de desigualdade com o “lado B”.

Em momento interessante do filme, Renato Russo relata seu estranhamento com o fato de um dos discos da Legião - que começa com Há tempos, canção sem refrão, de versos nada triviais para os padrões de um estilo massificado - ter estourado nas rádios e ser um dos maiores êxitos de venda da época. Outro trecho mostra imagens do grupo apresentando-se no programa Chico & Caetano, da Rede Globo, pontuadas por observações de Caetano, sempre atento a novidades. Ao final, um hino da geração 80, Tempo perdido, para deleite dos saudosos fãs da época (ou dos que passaram a apreciá-la depois), que podem sair da sessão cantarolando: ‘fomos’ tão jovens, tão jovens...



* Até quando esperar (Philippe Seabra / André X)

Não é nossa culpa
Nascemos já com uma bênção
Mas isso não é desculpa
Pela má distribuição

Com tanta riqueza por aí, onde é que está
Cadê sua fração?
Até quando esperar?

E cadê a esmola
Que nós damos sem perceber
Que aquele abençoado
Poderia ter sido você?

Com tanta riqueza por aí, onde é que está
Cadê sua fração?
Até quando esperar a plebe ajoelhar
Esperando a ajuda de Deus?

Posso
Vigiar teu carro
Te pedir trocados
Engraxar seus sapatos






7.10.11

A maçã e a chuva


Considerações musicais de Raul Seixas para relacionamentos amorosos

(A Steve Jobs, que gostava de maçã e provou ao mundo que nem todas são iguais)

A fidelidade como requisito ao casamento costuma ser inquestionável. Por outro lado, e ao mesmo tempo, o pouco êxito no cumprimento deste requisito, motivo maior de separações, junto às naturais dificuldades de relacionamento, também é indiscutível. Os pesos e medidas utilizados para julgar atos de infidelidade conjugal, porém, são menores em sua versão masculina e, aí sim, começa a discussão. Trata-se, afinal, de um pacto, acordo ou contrato entre duas pessoas que prometem ser fiéis uma à outra, por toda a vida. Uma via de mão dupla, em que a ultrapassagem não é aconselhável, nem pra um lado, nem pra outro. 
 
O assunto é tema recorrente, também, na música e na literatura. O poetinha Vinícius de Moraes reconheceu o amor como algo não imortal, posto que é chama. Seria possível, então, manter essa chama acesa e tornar a fidelidade não um fardo, mas um prazer? Há quem acredite que sim, e são muitos. Há quem acredite que não, e não são poucos. O cantor e compositor Raul Seixas apresentou, por meio de duas canções em parceria com o escritor Paulo Coelho – Medo da chuva* e A maçã** -, um modelo de casamento que foge ao padrão hi-fi, de alta fidelidade. Ao reconhecer a via da fidelidade como inviável numa união entre duas pessoas, ele propôs, em seu colóquio, um novo modelo de relacionamento.

O estranho modelo seixiano é, pelo menos, coerente, uma vez que, ao considerar a tão propalada fraqueza da carne inerente à espécie humana como um todo, independente de gênero, assume seus efeitos e dispensa a fidelidade em ambos os lados da relação. Pela sua visão, melhor assumir suas limitações do que colocar panos quentes apenas na pulada de cerca masculina. A liberdade que ele pede em Medo da chuva, oferece em A maçã. Não se trata de ser adepto, tampouco de aprovar, muito menos de recomendar a aplicação de sua teoria, qual seja a de sair por aí a comer maçã na chuva, mas há que se admitir a lógica de seu raciocínio.

Em Medo da chuva, ele constata que, ao se prender exclusivamente a alguém, como pedras imóveis na praia, deixa-se de viver várias outras possibilidades de amores – afinal, quem não está na chuva é pra não se molhar. Ao mesmo tempo, reflete que o segredo da vida e da felicidade está em perder o medo da chuva e assumir-se incapaz de amar apenas uma vez e de cumprir as juras de amor eterno, feitas ao pé do altar.

Em A maçã, ele também assume o desgaste provocado por uma relação biunívoca e, ao admitir que o amor só dura em liberdade, aceita, também, libertar, não sem sofrimento, a pessoa amada. Por essa linha de raciocínio, em se abolindo expectativas inalcançáveis e recíprocas de fidelidade, evitar-se-ia, também, as consequentes frustrações.

As duas canções, ora são complementares - com enfoques na impossibilidade de se amar apenas uma vez (Medo da chuva) ou apenas um de cada vez (A maçã) -, ora parecem dialogar uma com a outra, em harmonia e sintonia perfeitas. Mesmo sem entrar no mérito do que ambas apregoam, a coerência de ideias entre uma e outra letra é perceptível, como nas duas estrofes a seguir:

É pena que você pense que eu sou seu escravo / Dizendo que eu sou seu marido e não posso partir / Como as pedras imóveis na praia eu fico ao seu lado sem saber / Dos amores que a vida me trouxe e eu não pude viver” (Medo da chuva).

Se eu te amo e tu me amas / E outro vem quando tu chamas / Como poderei te condenar? / Infinita tua beleza / Como podes ficar presa / Que nem santa num altar?” (A maçã).

A diferença de abordagem da infidelidade masculina perante a feminina é histórica e alimentada por simplificações estereotípicas bem comuns - do tipo homem sujeito, mulher objeto ou homem quer sexo, mulher quer dinheiro -, exploradas, inclusive, pela mídia. Em contraponto a tal raciocínio, a teoria do maluco beleza, pelo menos, tira da mulher o exclusivo papel de fiel da balança e diminui, com equidade, o peso dessa fidelidade entre as duas partes. O ideal, porém, e sempre, é cada um escolher uma e apenas uma maçã, a mais madura ou a que mais lhe aprouver e não entrar num relacionamento apenas para passar uma chuva.


* Medo da chuva (Raul Seixas / Paulo Coelho)

É pena que você pense que eu sou seu escravo
Dizendo que eu sou seu marido e não posso partir
Como as pedras imóveis na praia eu fico ao seu lado sem saber
Dos amores que a vida me trouxe e eu não pude viver

Eu perdi o meu medo, meu medo, meu medo da chuva
Pois a chuva voltando pra terra traz coisas do ar

Aprendi o segredo, segredo, segredo da vida
Vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar

Eu não posso entender tanta gente aceitando a mentira
De que os sonhos desfazem aquilo que o padre falou
Porque quando eu jurei meu amor eu traí a mim mesmo, hoje eu sei
Que ninguém nesse mundo é feliz tendo amado uma vez, uma vez

Eu perdi o meu medo, meu medo, meu medo da chuva
Pois a chuva voltando pra terra traz coisas do ar

Aprendi o segredo, segredo, segredo da vida
Vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar


** A maçã (Raul Seixas / Paulo Coelho)

Se esse amor
Ficar entre nós dois
Vai ser tão pobre amor
Vai se gastar

Se eu te amo e tu me amas
Um amor a dois profana
O amor de todos os mortais
Porque quem gosta de maçã
Irá gostar de todas
Porque todas são iguais

Se eu te amo e tu me amas
E outro vem quando tu chamas
Como poderei te condenar?
Infinita tua beleza
Como podes ficar presa
Que nem santa no altar?

Quando eu te escolhi
Para morar junto de mim
Eu quis ser tua alma
Ter seu corpo, tudo enfim
Mas compreendi
Que além de dois existem mais

Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade
Sofro, mas eu vou te libertar

O que é que eu quero
Se eu te privo
Do que eu mais venero
Que é a beleza de deitar?



23.9.11

Que a vida começasse em 85


A primeira edição do festival Rock in Rio, ocorrida em janeiro de 1985, foi desses eventos que acontecem no momento certo, no lugar certo. Com um público total de 1.380.000 pessoas, o maior de todas as edições, tornou-se uma espécie de versão brasileira de Woodstock, sem o mesmo caráter libertário e alternativo, mas com semelhante apelo de um período musical fértil por trás, guardadíssimas as devidas proporções.

O Rock in Rio I foi, ao mesmo tempo, divisor de águas e ponto médio no percurso ascendente que a nova onda roqueira percorria no país, a começar da data em que foi realizado, bem no meio da década de 80. Mesmo com o rock nacional já consolidado, o festival contribuiu para seu crescimento mais acelerado e uma maior profissionalização do negócio como um todo, o que gerou oportunidade para novas bandas que não paravam de surgir, fossem de boa ou má qualidade aos olhos e ouvidos críticos. Por outro lado, durante o evento, muito se queixou da diferença de tratamento dispensado aos músicos locais em relação aos estrangeiros, estes com mais exigências e regalias.

Para o público, o clima do festival foi o melhor possível. Refletia o astral do país, que encerrava, na ocasião, um período de 21 anos de ditadura militar e virava a tal página infeliz da nossa história. Além de grandes nomes da MPB, como Ney Matogrosso, Ivan Lins, Erasmo Carlos, Rita Lee, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Alceu Valença, Moraes Moreira e de artistas do rock nacional que despontavam a olhos vistos e não vistos (Blitz, Kid Abelha, Lulu Santos, Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso), o festival teve como atrações internacionais os grupos Queen, Yes, AC/DC, Iron Maiden e os cantores James Taylor e Rod Stewart, entre outros.

Bandas como Legião Urbana, Titãs, Ultraje a Rigor e RPM, que logo despontariam para o sucesso, não participaram do evento. Diferentemente de edições posteriores, o Rock in Rio I contou com apenas um palco, sem abrir espaço para revelações. Mesmo dentre os novos talentos, preferiu investir em nomes mais conhecidos ou já consagrados. O Ultraje a Rigor, não obstante, foi homenageado no show dos Paralamas do Sucesso, que cantaram Inútil* (de Roger Moreira, líder do grupo), num dos grandes momentos do festival.

Passados 25 anos da última eleição direta para presidente e com o fracasso recente da campanha Diretas Já (que virou diretas já já), a letra de Inútil, por meio de um linguajar que remetia ao sucateamento da educação, à má qualidade do ensino e à baixa escolaridade do brasileiro, começava com a constatação: “A gente não sabemos escolher presidente”. Com inflação, crise, dívida externa e FMI na pauta dos assuntos econômicos, prosseguia: “A gente pede grana e não consegue pagar” e, após sucessivos fracassos nas copas de 74, 78 e 82, terminava com outro fato inegável: “A gente joga bola e não consegue ganhar”. Em suma: “A gente somos inútil”.

Vários outros momentos marcaram o evento e, mesmo quem não o acompanhou à época, deve ter deparado, depois, com imagens como as emocionantes interpretações de Love of my life pelo grupo Queen ou You've got a friend por James Taylor. Taylor, pouco depois, viria a compor Only a dream in Rio, canção em que declara seu amor à cidade e fala da experiência pela qual passou no festival carioca: “Eu estava lá naquele dia / E meu coração voltou a viver / Havia mais do que as vozes que cantavam / Mais do que rostos me olhando / E mais do que olhos brilhando”.

A nível nacional, muitos dos momentos inesquecíveis do Rock in Rio I tiveram relação com as mudanças políticas por que passava o país, com a redemocratização. Mesmo versos de canções que não tinham, originalmente, ligação com o tema, acabaram por ganhar essa conotação, como: “Tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais” (Anunciação** – Alceu Valença) e “Estamos, meu bem, por um triz, pro dia nascer feliz” (Pro dia nascer feliz – Cazuza / Frejat ).

Em 15 de janeiro de 85, Tancredo Neves foi eleito, de forma indireta, presidente da República, o que marcou o fim dos governos militares no país. Naquele mesmo dia, o grupo Barão Vermelho apresentou, no festival, um show emocionante, com os componentes da banda em total sintonia com a plateia, todos imbuídos do mesmo espírito patriótico, revestidos por trajes e bandeiras verde-amarelas. No ponto máximo do show, Cazuza clamou: “Que o dia nasça lindo pra todo mundo amanhã. Um Brasil novo, com a rapaziada esperta”, após cantar Pro dia nascer feliz***, para delírio do público.

A quarta edição do festival em território brasileiro terá início nesta sexta-feira, 23 de setembro. A programação é diversificada e tem como maiores destaques internacionais Elton John e Stevie Wonder. A ideia de um espaço alternativo foi mantida e promete alguns bons shows. Nada comparável àquela edição que, não só em termos de atrações, mas sobretudo pelo momento cultural e político do país, parece ser insuperável. Afinal, uma esperança clara por dias melhores combina perfeitamente com o espírito juvenil, que, por sua vez, casa muito bem com um festival de rock. E não é todo dia que esse amoroso triângulo é formado, que a Lua está na sétima casa e Júpiter alinhado a Marte.



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18.9.11

Anos 80 - suas músicas, suas musas, seus enigmas


O contexto político local explica - ou termina de explicar - a força da música dos anos 60 e 80 em nosso país. À revolução cultural que representou os anos 60 ao redor do mundo, somou-se, aqui, as mudanças provocadas pelo golpe militar. Os anos 80, por sua vez, seguiram o sopro alegre da brisa de liberdade que se anunciava e substituía um ufanismo forçado e pré-fabricado por uma real sensação de pertencimento a uma pátria, num significado mais amplo do que apenas o país onde nascemos.

Se, por um lado, o devastador sucesso comercial do rock brasileiro dos anos 80 freou um pouco o espaço reservado a outros estilos, sobretudo à MPB, por outro fez com que a música nacional voltasse a ocupar a maior parte do tempo das rádios, o que não ocorria nos dias dançantes da década anterior. Naquela época, as ondas sonoras ainda seguiam o vento que soprava do hemisfério norte e reverberavam a máxima jurácyca de que “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”. A despeito da grande qualidade dos cantores nacionais de então, a música desse país norte-americano, ou das nações de língua inglesa em geral, imperava em todos os sentidos.

A liberdade política e os bons ventos surgidos com a redemocratização ajudaram nessa retomada do topo das paradas por parte da música brasileira ou, no mínimo, levaram-na a uma disputa menos desigual por esse posto. A banda brasileira RPM, por exemplo, vendeu mais de dois milhões de cópias do disco Rádio pirata ao vivo. Esse vento tropical teve como zona de convergência o eixo Rio-São Paulo, passando por Brasília. O nordeste, que sempre revelara talentos e, pouco antes, promovera um novo deslocamento de eixo com Fagner, Alceu Valença, Elba e Zé Ramalho, entre outros, dessa vez teve menor participação, revelando apenas o grupo baiano Camisa de Vênus.

Outra característica do movimento repetiu a tendência roqueira de uma maior presença masculina, algo estranho a um país acostumado a grandes vozes femininas. Estrelas do rock sempre brilharam solitárias e, nos anos 80, não foi diferente, com a porção mulher do pop-rock, bem representada por Paula Toller, Marina Lima e Dulce Quental, abrindo espaço entre os super-homens. Em comum, o fato de serem cariocas e compositoras. Fernanda Abreu, à época fazendo backing vocal na banda Blitz, também destacou-se depois, como cantora, em carreira solo.
  
Dulce Quental iniciou na banda Sempre Livre, composta apenas por mulheres e depois seguiu carreira solo. Ficou conhecida por sucessos como Fui eu, Caleidoscópio (ambas de Herbert Vianna), Eu sou free e Natureza humana*, essa última uma versão de Jorge e Waly Salomão para Human nature, de Michael Jackson. É dela a canção-tributo a Cazuza, O poeta está vivo (com Frejat).

Outro destaque dos anos 80 foi Marina Lima. Marina, de cara, ganhou o aval de Caetano Veloso - que dividiu com ela os vocais de Nosso estranho amor - e recebeu elogios de Tom Jobim, ao cantar, com ele, Lígia**, especialmente para um programa da Rede Globo. Também participou do especial Mulher 80, como revelação, entre outras grandes intérpretes femininas, já consagradas. De estilo original, como intérprete e como compositora, logo conseguiu seu espaço em meio à avalanche de novas bandas que surgiam. Tinha como parceiro mais constante o irmão Antônio Cícero, poeta e letrista.

Marina faz parte do grupo de artistas da década de 80 que permaneceram em atividade até hoje, sempre produzindo bons trabalhos. Acaba de lançar Clímax, que tem boas parcerias com compositores das gerações seguintes, Adriana Calcanhoto, Samuel Rosa e Karina Buhr, ex-integrante da ex-banda feminina pernambucana Comadre Florzinha (na abertura do carnaval recifense deste ano, as duas interpretaram, juntas, Voltei Recife, numa versão interessante e diferente).

Depois de Wanderléa nos anos 60 e Rita Lee na década seguinte, Paula Toller foi a musa do pop-rock dos anos 80. Se a primeira iniciou a carreira na companhia de Roberto e Erasmo Carlos e a segunda com os irmãos Sérgio e Arnaldo Baptista, Paula Toller, no Kid Abelha, também tinha a companhia de seus abóboras selvagens, numa formação semelhante à dos Mutantes, com instrumentistas masculinos comandados por uma voz feminina (o mesmo ocorria com o grupo Metrô, contemporâneo do Kid, que tinha a cantora Virginie como vocalista).

Paula, de voz agradável, especializou-se em letras leves, de cunho sentimental, acompanhadas de melodias ora românticas, ora dançantes. Pelas más línguas, a bela e hoje quase cinquentona era chamada de Paula Tolla, vocalista da banda Q.I. de Abelha. Línguas que, não obstante, namoraram e dançaram ao som de suas músicas. É dela um dos dois mais inusitados e enigmáticos versos da música da época: Tira essa bermuda, que eu quero você sério (Como eu quero***). Os segredos de liquidificador (Codinome beija-flor), de Cazuza, constituem o outro mistério.

Existem duas interpretações básicas para o primeiro enigma, que despertou a curiosidade até de Chico Buarque. Na primeira, mais comum, “tira essa bermuda” conteria um pedido implícito de trocá-la por uma vestimenta mais composta, a qual levaria à seriedade. Na segunda, a mesma expressão, dessa vez interpretada literalmente, sugeriria a nudez como uma forma de atingir a seriedade, o que provocou o questionamento de Chico, em encontro musical com a cantora esfinge, em 85, quando cantaram juntos Dueto. Quanto ao liquidificador, segredos são segredos...


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29.8.11

Os finos e as finas da fossa

(música de fossa: é triste, mas é assim mesmo)

Música de fossa costuma ser menosprezada por parte dos consumidores musicais, como obra de menor valor, muitas vezes, inclusive, confundida com o que se costuma chamar de brega, conceito, aliás, um tanto frouxo e relativo. Àquelas mais antigas, anteriores à decada de 60, a impostação de voz típica dos cantores de então contribuía para conferir um ar ainda mais austero e melancólico. 

Nesse sentido, o brega, mesmo sendo um estilo também propício a temas voltados a arroubos sentimentais, contrapõe-se ao gênero de fossa, por fazer uso de uma abordagem, em geral, menos pesada, negativa e triste nas canções, entoadas com um estilo de voz mais suave, próprio da fase pós-bossa-nova.

Alguns teóricos musicais afirmam que o estilo brega surgiu como uma derivação da Jovem Guarda e suas canções de cunho romântico. O termo, em si, tornou-se comum apenas nos anos 80, mas o conceito já existia nas décadas anteriores (em vez de brega, cafona), ou desde a época das cavernas, considerando-se tal conceito associado ao preconceito, algo inerente ao ser humano. Foi depois da Jovem Guarda e da revolucionária década de 60, porém, que uma cisão fez-se irreversível, deixando em lados opostos os cantores cultuados pelas camadas mais e menos abastadas da população.

A rápida mudança de costumes e o consequente conflito de gerações ocorridos nos anos 60 fizeram com que os conceitos de bom e mau gosto se confundissem com os de novo e antigo. Foi aí que surgiu, também, o termo música popular brasileira (MPB), para designar um dos lados (o brega, então, seria a MPPB, ou ainda, o lado B da MPB). Mas, deixemos de choro e voltemos à fossa...

Como o ato de expor sentimentos é algo, em geral, mais ligado ao sexo feminino, as cantoras de fossa sempre superaram, em número, os cantores. Waleska e Maysa, por exemplo, dividem o título de rainha da fossa, que poderia ser outorgado, também, a Núbia Lafayette, Nora Ney, entre outras (a tendência ao arroubo ou excesso começa, literalmente, nos nomes, com seus k, w, y marcantes). A despeito dessa predominância feminina na discussão de assuntos sentimentais (incluindo, aí, a famosa D.R., bicho-papão para os homens), vêm de compositores do sexo masculino algumas das canções mais fundo de poço da música popular brasileira. 

Esta noite eu queria que o mundo acabasse (Silvinho), famosa na voz de Núbia Lafayette, é uma delas: “Esta é a noite da minha agonia, é a noite da minha tristeza, por isso eu quero morrer”. Ninguém me ama*, dos pernambucanos Antônio Maria (vai ver que é pelo Maria no nome) e Fernando Lobo (pai de Edu Lobo), é campeã no estilo e, também, ideal para momentos de fossa, a começar do título, recitado logo no início, como a revelar a lamúria que vem pela frente. De fracasso em fracasso, da primeira à última estrofe, segue o martírio, até chegar ao limite suportável, nos versos finais, onde o suplício vai chegando ao fim, junto com a canção e o cansaço: “... cansaço da vida, cansaço de mim, velhice chegando e eu chegando ao fim”.

Outra representante do lado sombrio de Antônio Maria é Se eu morresse amanhã, páreo duro no ranking das mais melancólicas: “Se eu morresse amanhã de manhã, não faria falta a ninguém. Eu seria um enterro qualquer, sem saudade, sem luto também”. Cabe, ainda, citar a bela Canção da Volta (com Ismael Neto), que, entre versões definitivas como a de Dolores Duran, marcou minha geração na voz de Fafá de Belém, cuja interpretação forte e sensível, de emoção sincera e desmedida como pede a música, merece ser comparada àquela de Elis para Atrás da porta.

Curioso e engraçado é o fato de Maria ser, também, compositor de frevos, ritmo carnavalesco que passa longe de momentos tristes (os seus, nem tanto, falam de saudade). É dele a série de frevos número 1, 2 e 3 do Recife, que, encantadores, fazem jus a seus nomes. Vai ver ele compunha as canções de fossa nas quartas-feiras de cinzas...



* Ningúem me ama (Antônio Maria / Fernando Lobo)

Ninguém me ama, ninguém me quer
Ninguém me chama de meu amor
A vida passa e eu sem ninguém
E quem me abraça não me quer bem

Vim pela noite tão longa de fracasso em fracasso
E hoje descrente de tudo me resta o cansaço
Cansaço da vida, cansaço de mim
Velhice chegando e eu chegando ao fim

9.8.11

Orações descoordenadas e insubordinadas para todos os períodos – quarta edição

(Não se preocupe, isso passa, é só uma frase)

“Questão de fé: a razão de um terço resulta num dízimo periódico.”

“A permanência de Mubarak no Egito custaria Cairo.”

“Ainda não caiu a Ficha Limpa.”

“Crime ambiental: tira tirânico bota botânico em estado vegetativo.”

“Progresso insustentável: no canto de um canteiro, na calada da noite, silenciosamente, uma muda teme por seu futuro.”

“Regras conjugais e suas conjugações verbo-nominais: a norma que armando lia pra valéria valeria se lia estivesse armando contra norma.”

“Dinheiro de corrupção não é da nossa conta.”

“David Boi e Mick Jegue são ícones do roça’n roll.”

“Decadência do impropério romano: primeiro-sinistro em tentativa frustrada de transferência de poder da itália para a genitália.”

“Com a licença poética vencida, a palavra segue presa.”

“Remédio para coração. Para para pensar... Atento à diferença de para para para, o melhor remédio é não arriscar.”

“Miocárdio: cada real gasto é convertido em pontos de safena.”

“Ame o próximo, mas, antes, ame o atual.”

“A higiene dental sem fio utiliza o padrão yellowtooth.”

“Em assuntos polêmicos, depois do palpite vem a palpitação.”

“Amor sustentável é aquele que se recicla, buscando o equilíbrio.”

“Aposentadoria é quando os ossos do ofício pegam osteoporose.”

“A razão é um cobertor curto, que se toma só pra si, daí o egoísta estar sempre coberto de razão.”

“O mar morto devia se chamar marasmo.”

“Piada de português: o português comete erro de português, o brasileiro, não.”

“Nada acontece em vão, a não ser no MASP.”

“Vendo minha alma. Não me pergunte a que preço. Pergunte-me com que olhos.”

“Noite é mais tarde do que tarde, mas tarde da noite é mais tarde do que noite.”

“Supremo sacramenta união homoafetiva: mudança de Ayres.”

“Acorde ao nascer do sol. Acorde quando lá surgir. Acorde em dó-ré-mi-fá. Acorde ao cair em si. Acorde.”

“Um rei nunca perde Sua Majestade. A não ser que caia na real e largue a coroa.”

“Programa do Windows é como elevador: antes de entrar, verifique se o mesmo encontra-se parado.”

“Teorema de Buckingham: "De olho na vida real, o povo esquece a vida real".”

“Um quarto de homens e mulheres tem armário (falo de cômodos). Menos de um quarto, porém, sai do armário (falo de incômodos).”

“Quem tem burca vaia França.”

“Françamente! Depois de furtar a riqueza dos colonos, quer furtar aos colonos a riqueza. Esquece que o trem da história tem duplo sentido...”

“Quando não estou com insônia, estou com sônia: ela é a mulher dos meus sonhos.”

24.7.11

Compositor com todas as letras


Quando iniciei este blog, comentei que não poderia fazê-lo em melhor estilo, ao falar de um certo carioca que, na ocasião, acabara de lançar novo trabalho. Com este texto, estou completando cem posts, mais de cinco anos depois de ter inaugurado o “Engenho e Arte” e, com um pouco de engenho e arte da minha parte, a data coincide com o lançamento do novo disco desse carioca.

Chico Buarque já foi descrito de todas as maneiras, a maioria das vezes de modo superlativo, fazendo jus a sua excelência como compositor: “Francisco Buarque de Hollanda é a única unanimidade nacional” (Millôr Fernandes), “Chico Buarque é o jeito mais digno de fazer música brasileira” (Toquinho). A correspondência e adequação poética de sua música com as situações de nossa vida real são tão perfeitas que me dão a impressão, como já falei, que sua sequência de DNA é um pentagrama, preenchido pelas partituras de suas canções, e que seu genoma está precisamente refletido em sua obra, que, por sua vez, reflete nossos sentimentos.

Os três primeiros discos de Chico confundem-se e completam-se: “Um disco é continuação do outro. São de uma fase (hoje eu falo de carreira), mas na época eu não tinha a menor idéia de que estava criando pra mim uma profissão, uma carreira. Era uma brincadeira.” – afirmou ele em entrevista, há mais de vinte anos. Nessa entrevista, o compositor divide assim sua obra: primeiro, esses três discos “de brincadeira”, depois, um disco de transição, feito rapidamente (nº 4). Em seguida, de Construção até Meus caros amigos, os trabalhos de cunho político, com músicas de protesto contra a ditadura vigente (um marco do início dessa fase foi Apesar de você, gravada em compacto, em 1970, antes de ter a difusão proibida). 

Por último, Chico agrupa os discos “que respiram melhor”. Aqueles que, mesmo ainda abordando temas políticos, o fazem de forma mais leve, seja pela liberação de canções por parte da censura (Apesar de você entre elas), como no disco de 78 - conhecido como o “das samambaias”, as quais fazem figuração na capa -, seja pela visão mais otimista do futuro, como no disco de 84, que tem Pelas tabelas e uma de suas obras de arte, Vai passar (com Francis Hime), as quais falam da redemocratização por que passava o país. Da evolução da liberdade até o dia clarear. De repente, impunemente. Sua autoanálise laboral termina nos anos 80, década em que foi concedida a tal entrevista.

A partir de Francisco (87), depois do fim da ditadura, Chico voltou-se (ou re-voltou-se) ao lirismo, muito bem representado nesse disco por Todo sentimento (com Cristóvão Bastos). Da década de 90 em diante, sua produção musical passou a ser mais escassa, intercalada com a literária. Foram quatro discos de inéditas nos últimos dezoito anos, contando com Chico, seu novo trabalho, lançado esta semana (Antes, houve divulgação em site, com vídeos contendo clipes de todas as faixas e comentários. Num deles, Chico narra, às gargalhadas, o espanto que teve ao deparar-se com comentários de notícias a seu respeito na internet - ‘Esse velho!’, ‘O que o álcool não faz com a pessoa!’ -, algo que vem conhecendo há pouco e aos poucos).

Se o samba foi ritmo predominante e constante em suas composições, sobretudo no início da carreira, quando a influência da Bossa nova, de tão recente, era bem forte, ele nunca se limitou a um único gênero e sempre procurou, também, passear por outros, os mais variados, de Frevo diabo a Baioque. Como se já não tivesse feito tanto e tudo, Chico, em Chico, fez questão de fazer de tudo um tanto, indo do blues ao baião, claro, sem esquecer o samba, aí também muito bem representado.

Chico, o disco, tem dez canções, de arranjos mais enxutos e a base do conjunto que o acompanha ainda é a mesma montada para o programa Chico & Caetano, dos anos 80. Segundo Chico, o cantor, esse trabalho foi construído aos poucos, com um intervalo de um a três meses entre uma música e outra. Em seis delas, além dos vocais, ele toca violão, o que pode ser atribuído aos ensaios prévios no estúdio caseiro do maestro Luiz Cláudio Ramos - antes das gravações definitivas -, que o deixaram mais à vontade: “Eles não disseram nada, eu fui tocando”, diz ele, brincando. Amante do futebol, ele diz não ter com as mãos a mesma habilidade que tem com os pés, o que o faz, frequente e literalmente, meter os pés pelas mãos.

Por falar em pés, mais de duas décadas depois de ter composto Valsa brasileira (com Edu Lobo), Chico, o compositor, confirma ser um legítimo pé-de-valsa ao compor, agora, uma valsa russa, Nina*. Uma das melhores canções de Chico - disco e compositor -, em que ele brinca com a sonoridade russa de ‘embora nova’, como fizera à francesa com 'o mar, marée, bateau' (o mar me arrebatou) e ‘acorda, acorda’ (d’accord, d’accord) em Joana francesa. Nina vem se juntar a Rita, Rosa, Carolina, Iolanda, Bárbara, Geni e demais musas reverenciadas no intervalo de tempo transcorrido desde que Madalena foi pro mar até Renata Maria sair de lá.

Outro destaque é Querido diário, narrativa, em tom de diário, do cotidiano (um novo Cotidiano, segundo Chico): “Hoje topei com alguns conhecidos meus / Me dão bom-dia, cheios de carinho / Dizem pra eu ter muita luz, ficar com Deus / Eles têm pena de eu viver sozinho”. Como é bastante comum em suas composições, as canções do álbum Chico não têm refrão, com exceção dos sambas que fez em parceria: Sou eu e Sinhá, com melodias de Ivan Lins e João Bosco, respectivamente. Sinhá, em sentido estrito, não chega a ter um refrão, mas um simples e gostoso ieriêre, by João Bosco, que pode ser considerado como tal. Rubato é outra feita em parceria - com Jorge Hélder, músico que o acompanha há algum tempo. As demais são puro Chico.

Tipo um baião termina com versos singelos que lembram as típicas canções de Luiz Gonzaga, citado, inclusive, na letra: “Meu coração / que você sem pensar / ora brinca de inflar / ora esmaga / igual que nem / fole de acordeão / tipo assim um baião do Gonzaga”. Sem você 2, ele diz ter feito inspirado em Sem você, de Tom e Vinícius. Se eu soubesse tem participação especial da cantora Thaís Gulin, que já tinha gravado a música em seu disco, com participação de Chico: “Ah, se eu soubesse não andava na rua... Não ia enfim cruzar contigo jamais... Mas acontece que eu saí por aí e aí larari, lariri...”. Outras participações no disco são de Wilson das Neves em Sou eu e de João Bosco em Sinhá, sua segunda obra com Chico.

Chico faz arte com a naturalidade de uma criança. Faz arte como quem faz arte. Com quase cinquenta anos de carreira e mais de vinte encantadoras brincadeiras criadas, não sei se já se deu conta disso, mas, caso a pensar para suas artes vindouras, ele tem canções com títulos iniciando com todas as letras do alfabeto, com exceção de Z - e por pouco, já que Angélica foi feita para Zuzu Angel (a Tom e Vinícius falta o X, que não falta a Caetano e que Chico usou em Xote da navegação). Esse velho é mesmo um compositor com todas as letras, de A a X.



* Nina (Chico Buarque)
Nina diz que tem a pele cor de neve
E dois olhos negros como o breu
Nina diz que, embora nova
Por amores já chorou que nem viúva
Mas acabou, esqueceu

Nina adora viajar, mas não se atreve
Num país distante como o meu
Nina diz que fez meu mapa
E no céu o meu destino rapta
O seu

Nina diz que se quiser eu posso ver na tela
A cidade, o bairro, a chaminé da casa dela
Posso imaginar por dentro a casa
A roupa que ela usa, as mechas, a tiara
Posso até adivinhar a cara que ela faz
Quando me escreve

Nina anseia por me conhecer em breve
Me levar para a noite de Moscou
Sempre que esta valsa toca
Fecho os olhos, bebo alguma vodca
E vou



P.S.: Agradeço a vocês, parentes, amigos, anônimos, leitores, seguidores e incentivadores, desde os mais antigos, que, ao longo desses cem posts, sempre me estimularam, com seus comentários generosos, a prosseguir neste trabalho, até os mais recentes que, vez por outra, encontro nos corredores reais ou virtuais e descubro, gratificado, que também fazem parte dessa minha turma. 

26.6.11

A nova imagem do som

As redes de televisão abertas, que já produziram bons programas no passado, têm se repetido, em sua maioria, em busca de uma audiência fácil e imediata, com poucas novidades interessantes. Além disso, noticiários e novelas gravitam em torno do eixo Rio-São Paulo, ignorando, de certa forma, o que não corresponde ao carioca-paulista way of life ou o que acontece no resto do país.

A pretexto de globalizar, pelo menos uma dessas emissoras tem o hábito de “neutralizar” o sotaque de seus artistas, cariocas ou não. Particularmente, o sotaque dos nordestinos é “suavizado” ou, quando se faz presente em séries e novelas cujas tramas acontecem na região, é retratado de forma caricata, pouco semelhante à real. Falando de caso que conheço, em Pernambuco, até programas de exibição local possuem apresentadores sem sotaque próprio do estado e mesmo os nativos são “domesticados”.

Diante desse quadro, uma outra emissora, a MTV, tem se destacado pela ousadia de colocar um nordestino – e mais importante, seu sotaque - como apresentador de programa: o cantor pernambucano China. Na Brasa (segunda a sexta, 20h30), a despeito de ser mais voltado ao público jovem, apresenta atrações interessantes também aos mais maduros. China começou a carreira como vocalista da banda Sheik Tosado, que chegou a se apresentar no Rock in Rio 3, em 2001. Hoje, além do programa televisivo, divide-se entre carreira solo e a banda Del Rey, onde interpreta canções de Roberto e Erasmo Carlos, junto com integrantes do grupo pernambucano Mombojó.

A MTV mudou, este ano, sua grade de programação, voltando-se um pouco ao formato inicial, de exibição de clipes (estranhamente reduzida num passado recente). Tem apresentado, também, vinhetas e campanhas com frases como: “A MTV é contra qualquer tipo de preconceito”, atitude louvável, em se tratando de emissora que tem como audiência um público essencialmente jovem, muitos deles adolescentes, com personalidade ainda em formação.

O maior destaque dessa nova fase da MTV é o programa musical Grêmio Recreativo, exibido sempre na última quinta-feira de cada mês, às 23h30. A atração é comandada pelo cantor e compositor Arnaldo Antunes, que recebe convidados. Após curto ensaio, os músicos apresentam-se ao vivo, todos juntos ou em grupos, interpretando canções de suas autorias. Estão previstos dez programas, sendo o último em dezembro próximo. Na edição deste mês de junho, que vai ao ar no próximo dia 30, a atração tem como convidados especiais Erasmo Carlos, Wanderléa, Vanessa da Mata e o supracitado China. Na edição seguinte (28/07), Marisa Monte, Adriana Calcanhoto e Jorge Mautner estarão presentes.

As três primeiras edições registraram momentos únicos, reunindo nova e velha geração, como o encontro entre Odair José, Paulo Miklos e Otto na segunda e os parceiros de Arnaldo Antunes - Marcelo Jeneci, Ortinho, Marina Lima e Pepeu Gomes - na terceira. Marina e Pepeu compuseram, com o anfitrião, Grávida (única parceria da dupla) e Alma, respectivamente, canções que fizeram parte do set list dessa edição e, certamente, estão entre as melhores composições deles.

Grávida* é bastante representativa do estilo de compor de Arnaldo Antunes e não poderia estar de fora de um programa comandado por ele. É uma canção que expressa a sensação de plenitude alcançada por quem concebe, gera e dá à luz algo num sentido mais amplo ou simplesmente observa o mundo com olhos mais atentos e sensíveis. Qualquer ser humano engravida, todos os dias, daquilo que está à sua volta. Toma à luz, absorve, alimenta, processa e dá à luz. E o que surge é resultado disso tudo, como a própria canção. Assim que, sem nunca terem engravidado no sentido estrito, a dupla de compositores pariu uma obra de arte.

Seguindo a trilha estranha aos olhos dos mais antigos, de criar fama a partir de postagens de vídeos no YouTube, outra figura carismática, PC Siqueira, foi descoberta pela MTV e escalada para o programa PC na TV (quinta-feira, 23h). O novo apresentador guarda certas semelhanças com o veterano e também carismático VJ Thunderbird, inclusive por fugir a certos padrões estéticos limitadores, seguidos, de modo geral, pelas emissoras de televisão. O programa, despretensioso, tem algumas besteiras, mas é divertido, bom para as horas vagas do cérebro.

Talvez para não ter que pagar mais direitos autorais, a televisão tem relegado a música, salvo exceções vindas de emissoras públicas e/ou diferenciadas - como as TV's Brasil e Cultura - ou de programas em horários pouco atrativos, como Som Brasil e Por toda minha vida, da Globo. Para quem teve o prazer de assistir, em horário dito nobre, a programas musicais insuperáveis, como a série Grandes Nomes ou Chico & Caetano, nos anos 80, torna-se difícil ficar entusiasmado com qualquer coisa, mas, ainda assim, é gratificante ver uma emissora que carrega música no nome concebê-la em vários sotaques, estilos, idades.



* Grávida (Arnaldo Antunes / Marina Lima)

Eu tô grávida
Grávida de um beija-flor
Grávida de terra
De um liquidificador
E vou parir um terremoto
Uma bomba, uma cor
Uma locomotiva a vapor, um corredor

Eu tô grávida
Esperando um avião
Cada vez mais grávida
Estou grávida de chão
E vou parir sobre a cidade
Quando a noite contrair
E quando o sol dilatar
Dar à luz

Eu tô grávida
De uma nota musical
De um automóvel
De uma árvore de Natal
E vou parir uma montanha
Um cordão umbilical
Um anticoncepcional, um cartão postal

Eu tô grávida
Esperando um furacão
Um fio de cabelo, uma bolha de sabão
E vou parir sobre a cidade
Quando a noite contrair
E quando o sol dilatar
Vou dar à luz

3.6.11

Um dia em 67

Há algum tempo, tive acesso a esta foto histórica (clique para ampliar) que, pelas figuras retratadas, encanta qualquer amante da música popular brasileira. Ao mesmo tempo, a imagem desperta curiosidade sobre que acontecimento tão especial teria provocado a reunião de tantos talentos (tente identificá-los e, ao final do texto, veja a lista dos ilustres figurantes da clássica foto*).

Soube, depois, por matéria de O Globo, que o registro aconteceu em 1967, num encontro na casa de Vinícius de Moraes, convocado pelo produtor musical João Araújo - pai de Cazuza e que viria a ser presidente da gravadora Som Livre -, com o objetivo de discutir o declínio da música carnavalesca. Discutia-se nem tanto a queda na qualidade das canções, mas na quantidade de lançamentos musicais ocasionada, no caso do Rio de Janeiro, por conta do crescimento das escolas de samba e seus sambas-enredo restritos ao desfile, em detrimento das marchinhas.

Nessa época, a falta de renovação começava a ocorrer, também, no Recife, por conta de fatores como o forte apego às tradições e a concentração econômica maior no eixo Rio-São Paulo, que contribuiu para o declínio do frevo e resultou, inclusive, no encerramento das atividades da Rozenblit, importante fábrica de discos local.

João Araújo diz que, até hoje, falta trilha sonora ao carnaval carioca: "Fui ver os blocos em Ipanema, era uma multidão impressionante, mas sem cantar. Não tinha música. Aí não é carnaval". Em Pernambuco, há música, mas não há renovação e, no caso da Bahia, cujo carnaval cresceu com o advento do trio elétrico e o incentivo de músicos conceituados como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Moraes Moreira e Armandinho, se a falta de renovação, hoje em dia, não é um problema, existem críticas com relação a qualidade e repetitividade de fórmulas em certas novas canções.

Recentemente, houve grande discussão sobre essa questão da má qualidade das músicas, por conta de críticas feitas por Rachel Sheherazade, à época apresentadora de um jornal local na TV Tambaú – PB e atual âncora do SBT Brasil. Apoiada por uns e criticada por outros, a apresentadora também questionou, com métodos jaborianos, outros aspectos da folia. Um blog parceiro, 3C1P, por meio do qual cheguei ao vídeo, afirmou, em texto sobre o assunto: "O carnaval é, sim, um momento diferente, de relaxamento daquele policiamento crítico do qual nós, pseudo-intelectuais de classe média, nos valemos para nos diferenciarmos do resto da massa inculta do país".

Concordei e comentei, na ocasião, que, além de o conceito do que é boa música ser relativo e patrulhamento não combinar com carnaval, festa essencialmente espontânea, essa diversidade já existia nos "carnavais de outrora", quando havia músicas de letras mais elaboradas, como "quanto riso, oh, quanta alegria / mais de mil palhaços no salão / arlequim está chorando pelo amor da colombina / no meio da multidão", mas também outras de letras mais simples, feitas apenas pra tirar o pé do chão mesmo, como "as águas vão rolar / garrafa cheia eu não quero ver sobrar / eu passo a mão na saca-saca-saca-rolha / e bebo até me acabar" ou "a-lá-lá-ô ôôô ôôô / mas que calo-ooo-oor".

Uma pergunta-chave, originadora do impasse, está no cerne da questão: o carnaval deve ser evento de massa ou restrito a grupos menores? A primeira opção, como o próprio nome diz, não se sustenta sem a participação... da massa, grupo muitas vezes, e ironicamente, sem tanto apego ao que se costuma chamar de cultura popular e, por isso, discriminado por formadores de opinião. Por outro lado, um maracatu tradicional como o Leão Coroado, com quase 150 anos de existência (a turma é da época do império, da escravidão, isso é muito significativo!), não tem o mesmo poder de atração sobre foliões, em sua maioria jovens, a não ser que vista uma capa pop, o que não faz nenhum sentido.

Nesta discussão entre o carnaval ser evento para muitos ou para poucos, há problemas, também, de ordem técnica, em relação ao alcance do som, que pode variar bastante entre aquele emitido por um trio elétrico, uma apresentação de palco, uma orquestra de frevo ou maracatu itinerante. Em suma, o conflito e, ao mesmo tempo, a solução está em procurar conciliar novo e antigo, vanguarda e tradição, popular e clássico. Afinal, blocos tradicionais são fundamentais, indispensáveis, mas usam, muitas vezes, linguagem e temas que podem soar estranhos aos mais jovens, que não se sentem representados por músicas que evocam o passado, os antigos carnavais.

Em Pernambuco, com a falta de renovação nos ritmos tradicionais, a modernidade no carnaval teve que vir por meio de sons a princípio alheios ao evento, mas que foram incorporados à festa. Um exemplo é o festival Rec-Beat, surgido no rastro do manguebeat, que, hoje, equilibra melhor a existência entre novo e antigo, como deve ser. Da mesma forma, se os atuais fenômenos de massa do carnaval baiano não agradam, lá também existem os cantores mais antigos, afoxés e blocos afro tradicionais, como o Ilê-Ayê.

A discussão provocada pelo encontro de 67 permanece atual, passadas quase cinco décadas. Se substituirmos música tradicional por norma culta, vejo semelhanças com a polêmica do livro adotado recentemente pelo MEC, "Por uma vida melhor", ou seja, não existe música boa ou ruim, mas adequada ou inadequada. Se a música tradicional (ou norma culta), de que costumo ser seguidor, fosse a única forma válida de comunicação, muitos estariam sujeitos ao mais profundo, injusto e gritante silêncio. Creio que a comunicação é muito mais, manifesta-se de várias formas e não devemos nos limitar a uma música (ou norma) oficial que, sejamos realistas, a maioria dos brasileiros não escutam (ou falam). Por uma vida melhor.


* 1 – Edu Lobo, 2 – Tom Jobim, 3 – Torquato Neto, 4 – Caetano Veloso, 5 - Capinan, 6 – Paulinho da Viola, 7 – Sidney Miller, 8 – Zé Ketti, 9 – Olívia Hime, 10 – Helena Gastal, 11 – Luís Eça, 12 – João Araújo, 13 – Dori Caymmi, 14 – Chico Buarque, 15 – Francis Hime, 16 – Nelson Motta, 17 – Não identificado, 18 – Vinícius de Moraes, 19 – Dircinha Batista, 20 – Luís Bonfá, 21 - Tuca, 22 – Braguinha

Leia também: Rádio patrulha e O perfeito e o imperfeito do subjetivo

22.5.11

Sexo, drogas e palavrões

Na virada para a década de 80, depois de um período em que prevaleceu a música de protesto e com a iminente brisa da democracia, as críticas políticas perderam força e as canções mudaram um pouco o foco. O gostinho da liberdade era, então, algo novo para toda uma geração que, sedenta por degustá-la, passou a atirar para todos os lados, que não o político, a começar de sexo e drogas, temas considerados menos leves, mesmo no rock’n roll. Aspecto positivo, a liberdade de expressão, prato principal, veio acompanhada de maior tolerância a variações de comportamento e aceitação de hábitos divergentes daqueles tomados como padrão (no que ainda temos o que aprender).

No tocante às drogas, por exemplo, a apologia à maconha causou polêmica, ao ganhar vez e voz com a música O mal é o que sai da boca do homem (Pepeu Gomes / Baby Consuelo / Galvão), concorrente do festival MPB 80, da Rede Globo, de versos diretos, algo pouco comum para uma geração acostumada a captar mensagens subliminares, repletas de sutilezas: “Você pode fumar baseado, baseado em que você pode fazer quase tudo / Contanto que você possua, mas não seja possuído”.

Já no âmbito do sexo, o decreto vale-tudo de Tim Maia aboliu a cláusula restritiva de que “só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher” e foi dada uma nova ordem por Lulu Santos – “consideramos justa toda forma de amor” - e Marina Lima, em Difícil: “Eu disse não, ela não ouvia / Mandei um sim, logo serviu / Então pensei, ela é bela, por que não com ela?”, onde os termos “louca” e “pouca” (“... alguém lá no início me aplicou / e me fez louca, me fez pouca, me fez o que sou, difícil”) desfaziam possíveis dúvidas a respeito do sexo do personagem declarante.

O “nós duas” do amor outrora censurado de Bárbara (Chico Buarque) escancarou-se, também, em Tola foi você (Ângela Rô Rô, 1979), por meio da comunhão das palavras “tola” e “toda”: “Tola foi você ao me abandonar, desprezando tanto amor que eu tinha a dar / … / Coração aberto, felicidade perto, sou toda amor”.

A libido também andou solta com o grupo Ultraje a Rigor, que, ironizando a censura e a repressão sexual, brincava com ambos os temas: “Ainda bem que eu não tô na TV, senão ia ter que cortar o sexo! Como é que eu fico sem sexo?”. A afirmação "eu gosto de mulher" fazia contraponto a "eu gosto de meninos e meninas"*, do contemporâneo Legião Urbana. Liberdade sexual, em tempos de Camisa de Vênus, em oposição a outro tipo de opressão, não mais política, surgida com a descoberta da AIDS.

É dessa época, também, a primeira música que lembro de ter escutado a incluir palavrões entre seus versos: Faroeste caboclo (Renato Russo), que também inovou em tamanho da letra e duração - mais de nove minutos - e conta uma história que será tema de filme em breve (por falar em filme, Vamos fazer um filme, do mesmo autor, também tinha uma palavrinha até então proibida). Havia outras, do Camisa de Vênus, do Ultraje a Rigor, bandas que colocaram palavrões também em títulos e refrãos de algumas canções, como $#%@!%*#, sem falar nos bichos escrotos dos Titãs.

Mudanças de um período só são possíveis por conta do que vem antes e, nesse aspecto, os anos 80 – fruto de alheamento político, difícil acesso a informação e crise financeira, tempo de liberdade sexual imergente, democracia emergente, liberdade de ideias, cores, cabelos e trajes (se agora temos o restart, ali foi o start) e, ao mesmo tempo, semente de conquistas futuras como as que ora discutimos - só poderiam ter acontecido naquele momento mesmo.

Sem perder sua peculiar rebeldia, mas também sem tanto motivo ou motivação para protestos políticos, a juventude da época apenas redirecionou o espírito contestador para assuntos comportamentais. E toda essa forma controversa de abordar tais assuntos representou mais um traço de liberação e afirmação do que de apelação. Iniciava, ali, a temporada de colheita dos frutos do “é proibido proibir” que, doces ou azedos, puderam ser, enfim, saboreados à vontade.



* Meninos e meninas (Renato Russo / Dado Villa-Lobos / Marcelo Bonfá)

Quero me encontrar, mas não sei onde estou
Vem comigo procurar algum lugar mais calmo
Longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita
Tenho quase certeza que eu não sou daqui

Acho que gosto de São Paulo
Gosto de São João
Gosto de São Francisco e São Sebastião
E eu gosto de meninos e meninas

Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre
Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente
Estou cansado de bater e ninguém abrir
Você me deixou sentindo tanto frio
Não sei mais o que dizer

Te fiz comida, velei teu sono
Fui teu amigo, te levei comigo
E me diz: pra mim o que é que ficou?

Me deixa ver como viver é bom
Não é a vida como está, e sim as coisas como são
Você não quis tentar me ajudar
Então, a culpa é de quem? A culpa é de quem?

Eu canto em português errado
Acho que o imperfeito não participa do passado
Troco as pessoas
Troco os pronomes

Preciso de oxigênio, preciso ter amigos
Preciso ter dinheiro, preciso de carinho
Acho que te amava, agora acho que te odeio
São tudo pequenas coisas e tudo deve passar

Acho que gosto de São Paulo
Gosto de São João
Gosto de São Francisco e São Sebastião
E eu gosto de meninos e meninas

19.4.11

Parabéns, meu rei


Artistas envelhecem (não deveriam). Sobretudo os nossos artistas. Aqueles que nos pareciam eternos, que embalaram nossos sonhos e aflições juvenis. Com quem tínhamos um encontro marcado, todo ano, quando éramos presenteados com os frutos de seus trabalhos, obras que transcenderam limitações de tempo e eternizaram-se. E eles envelhecem em público, despudoradamente, na nossa cara. Suas rugas, cabelos brancos e demais marcas do tempo são todas de domínio público, sem direitos autorais.

A geração de ouro da MPB surgida nos anos 60 está chegando aos 70. Nossa majestade Roberto Carlos é o primeiro da fila e chega a essa idade hoje. Depois dele, vêm Chico Buarque, Caetano Veloso, Erasmo Carlos, Gilberto Gil, Ney Matogrosso e muitos outros. Pensando bem (amanhã eu vou trabalhar), comparando-os com setentões de duas décadas atrás (Nelson Gonçalves, Carlos Galhardo, Orlando Silva) -, os novos velhos nem parecem ter envelhecido tanto assim. Afinal, a quebra de padrões surgida no final dos anos 50 - mudança de voz, figurino, aparência, estilo de interpretação e musical - fez com que o que veio antes parecesse bem mais antigo aos olhos de quem chegou ao mundo depois.

Não devemos discutir qualidade musical, se “nossas” músicas são melhores, até porque seríamos bastante suspeitos para defendê-las e também porque é legítimo cada geração preferir as suas. Não obstante, a despeito de, hoje em dia, as canções de Roberto e Erasmo Carlos serem vistas por muitos como bregas ou melosas, se pegarmos algum sucesso passado da dupla que faça uso de linguajar próprio da juventude e/ou fale sobre conflitos próprios dessa faixa etária, percebe-se que cairia perfeitamente na voz de alguma banda atual (afinal, o perfil do jovem é atemporal).

É o caso da ousada Quero que vá tudo pro inferno, sucesso estrondoso de 1965, As curvas da estrada de Santos (“... se acaso numa curva eu me lembro do meu mundo, eu piso mais fundo, corrijo num segundo, não posso parar”) e Sua estupidez, entre tantas outras. Todos estão surdos é outro exemplo de que falar a mesma língua é passo básico para uma boa comunicação. A canção, de mensagem religiosa, retomou o sucesso, duas décadas depois, ao ser regravada por Chico Science & Nação Zumbi.

Nos pós-rebeldes anos 70, já mais “comportado”, Roberto Carlos continuou falando aos jovens, entre uma e outra canção de amor, hoje consideradas “caretas”. Logo no início da década, numa canção que nem é das mais conhecidas, À janela* (1972), falou direto a essa turma, ao tratar do dilema entre sair de casa ou não, muito embora o bom-mocismo da nova fase do rei tenha feito com que, na música, ele optasse pelo não.

Mesmo aqueles que dizem não gostar de RC deparam-se, eventualmente, com seus cantores e grupos preferidos bebendo dessa fonte. Quando a banda Jota Quest regravou Além do horizonte, cerca de duas décadas depois da versão original – a qual causou surpresa pelo uso do termo “frescura” em sua letra (“... bronzear o corpo todo sem censura / gozar a liberdade de uma vida sem frescura”) -, muitos pensaram tratar-se de música nova do grupo.

Tem canções de nossa época que já escutamos tanto que nem imaginamos a possibilidade de alguém não conhecer. Um dia desses, porém, conversei com uma jovem que disse não conhecer nenhuma música do cantor e compositor Lobão. Respondi, com toda certeza e convicção, que ela conhecia, sim e cantarolei logo a mais conhecida dele (Me chama), crente que estava abafando. Qual o quê! A resposta foi a mais absoluta indiferença.

Aproveitando o susto - e tentando refazer-me dele -, logo abordei outros jovens, pedindo que me dissessem alguma música de RC que conhecessem. Foram citadas Calhambeque e 120... 150... 200 km por hora, fora as mais óbvias, mas não menos belas Como é grande o meu amor por você, Detalhes e Emoções. Resultado da enquete, sem margem de erro, para mais, para menos, nem para mais ou menos: artistas envelhecem, músicas não. E algumas são eternas.



* À janela (Roberto Carlos / Erasmo Carlos)

Da janela o horizonte
A liberdade de uma estrada eu posso ver
O meu pensamento voa livre em sonhos
Pra longe de onde estou

Eu às vezes penso até onde essa estrada
Pode levar alguém
Tanta gente já se arrependeu e eu
Eu vou pensar, eu vou pensar

Quantas vezes eu pensei sair de casa
Mas eu desisti
Pois eu sei lá fora eu não teria
O que eu tenho agora aqui

Meu pai me dá conselhos
Minha mãe vive falando sem saber
Que eu tenho meus problemas
E que às vezes só eu posso resolver

Coisas da vida
Choque de opiniões
Coisas da vida
Coisas da vida

Novamente eu penso ir embora
Viver a vida que eu quiser
Caminhar no mundo enfrentando
Qualquer coisa que vier

Penso andar sem rumo
Pelas ruas, pela noite sem pensar
No que vou dizer em casa
Nem satisfações a dar

Penso duas vezes me convenço
Que aqui é o meu lugar
Lá fora às vezes chove
E é quase certo que eu vou querer voltar

A noite é sempre fria
Quando não se tem um teto com amor
E esse amor eu tenho mas me esqueço
Às vezes de lhe dar valor

Coisas da vida
Choque de opiniões
Coisas da vida
Coisas da vida

Tudo tem seu tempo
E uma vida inteira eu tenho pra viver
E nessa vida é necessário a gente
Procurar compreender

Coisas que aborrecem
Muitas vezes acontecem por amor
E esse amor eu tenho esquecido às vezes
De lhe dar valor