1.12.10

Nossa imagem na tela grande

"Minha relação com a morte continua a mesma: sou radicalmente contra" (Woody Allen)


Neurose, designação genérica para os males da psique humana, é uma espécie de virose da cabeça, contra a qual o organismo deve reagir com pensamentos e ideias alternativas, os anticorpos da alma. Dando uma de psicólogo (e várias de neurótico), creio que um dos métodos eficazes de cura desses males é ver-se no espelho; é, paradoxalmente, saltar fora de si para, enfim, poder enxergar-se por dentro, em seus recantos mais íntimos; é fazer-se desindivíduo, para poder entender, aceitar, questionar suas individualidades. Nesses atos, ninguém representa papel mais importante que a arte, seja ela a quinta, a sexta ou a sétima.

E é da sétima que vem um dos melhores criadores de arte como imitação da vida. O cineasta nova-iorquino Woody Allen que, em cerca de quatro décadas, dirigiu dezenas de filmes e atuou em vários deles. Uma produtividade compulsiva, quase neurótica, de periodicidade praticamente anual (vem aí, em 2011, Midnight in Paris).

O mais importante em seus filmes são os diálogos, o uso da palavra. A imagem, o enredo, a história, o roteiro do filme assumem papel coadjuvante (a palavra como texto e todo o resto como pretexto). Assim, ele se permite encenar, de forma inteligente e criativa, as situações mais esdrúxulas e improváveis, tudo em prol da palavra, ator principal. Talvez por isso, ele consiga transitar tão bem entre filmes policiais, romances e comédias de costumes, ou ainda, misturar esses temas e assuntos tão diversos com maestria. Em Melinda e Melinda (2004), ele até brinca com isso, transportando essa sua habilidade para os personagens do filme, quatro amigos que discutem um desenrolar dramático e outro cômico para um enredo inicial proposto por um deles.

Como também brinca em O escorpião de Jade (2001), muito bom, em que o personagem principal é hipnotizado ao escutar certa palavra (Madagascar) e volta ao estado normal ao escutar outra (Constantinopla). Artifício curioso e simbologia perfeita, em se tratando de um cineasta que nos prende e hipnotiza simplesmente com a palavra, aquilo que tanto preza.

Seu dom de transformar simples situações e diálogos em cenas antológicas, as quais sempre nos levam a reflexões com leveza e inteligência, explica, também, como ele consegue se manter em destaque e agradar por tantos anos ininterruptos. Em Match point (2005), a partir de uma cena inicial digna de gênio - e que retorna, redonda, noutra parte do filme -, Woody Allen faz analogia entre o destino e uma bola de tênis que, ao tocar na rede, pode cair pra um ou outro lado, mudando o rumo do jogo. Já no recente e interessante Tudo pode dar certo (2009), ele conta a história de um senhor pedante e convencido, com complexo de superioridade e, por conseguinte, sem nenhuma paciência para a “mediocridade” de seus (des)semelhantes.

Tudo é permitido em sua imaginação sem limites, que cria situações interessantes, como em A rosa púrpura do Cairo (1985), o primeiro a que assisti, em que o personagem de um filme romântico sai da tela do cinema pra viver uma história de amor com uma moça solitária, que assistia inúmeras vezes a esse filme. Ou em Édipo arrasado, um dos Contos de Nova York (1989), em que a figura materna assume magistral representação, assumindo as proporções que possui aos olhos do filho, que passa a vê-la, onipresente, nos céus da cidade, a expor toda sua vida íntima.

Seus personagens expõem, de várias e criativas formas, nossos defeitos, neuroses, excentricidades e idiossincrasias. E quando quem representa o papel é ele próprio, o resultado torna-se ainda mais eficaz, dada a sua perfeita caracterização do ser neurótico. Como em Noivo neurótico, noiva nervosa (1977) – seu filme mais premiado - e Zelig (1983). Não sei se de médico, talvez de louco, mas certamente de Zelig todo mundo tem um pouco. Também como ator, em Scoop – o grande furo (2007), está divertidíssimo no papel de um mágico que, em uma de suas divertidas autoanálises, atribui à extrema ansiedade o fato de não engordar.

Por esses dias, o cineasta vem sendo lembrado por dois motivos. O primeiro é seu mais novo filme, Você vai conhecer o homem de seus sonhos, que nos faz refletir sobre a ideia de que a ilusão é melhor do que qualquer remédio e cuja ironia começa do título, que tanto pode representar um ser vivo do sexo masculino, como a figura da morte, o que fica mais claro no título original em inglês (You will meet a tall dark stranger). O segundo motivo é seu aniversário de 75 anos, a ser comemorado hoje, 1º de dezembro. Acontecimentos que eu, neurótico e simpático a efemérides, não poderia deixar de reverenciar. Woody Allen explica.