7.10.11

A maçã e a chuva


Considerações musicais de Raul Seixas para relacionamentos amorosos

(A Steve Jobs, que gostava de maçã e provou ao mundo que nem todas são iguais)

A fidelidade como requisito ao casamento costuma ser inquestionável. Por outro lado, e ao mesmo tempo, o pouco êxito no cumprimento deste requisito, motivo maior de separações, junto às naturais dificuldades de relacionamento, também é indiscutível. Os pesos e medidas utilizados para julgar atos de infidelidade conjugal, porém, são menores em sua versão masculina e, aí sim, começa a discussão. Trata-se, afinal, de um pacto, acordo ou contrato entre duas pessoas que prometem ser fiéis uma à outra, por toda a vida. Uma via de mão dupla, em que a ultrapassagem não é aconselhável, nem pra um lado, nem pra outro. 
 
O assunto é tema recorrente, também, na música e na literatura. O poetinha Vinícius de Moraes reconheceu o amor como algo não imortal, posto que é chama. Seria possível, então, manter essa chama acesa e tornar a fidelidade não um fardo, mas um prazer? Há quem acredite que sim, e são muitos. Há quem acredite que não, e não são poucos. O cantor e compositor Raul Seixas apresentou, por meio de duas canções em parceria com o escritor Paulo Coelho – Medo da chuva* e A maçã** -, um modelo de casamento que foge ao padrão hi-fi, de alta fidelidade. Ao reconhecer a via da fidelidade como inviável numa união entre duas pessoas, ele propôs, em seu colóquio, um novo modelo de relacionamento.

O estranho modelo seixiano é, pelo menos, coerente, uma vez que, ao considerar a tão propalada fraqueza da carne inerente à espécie humana como um todo, independente de gênero, assume seus efeitos e dispensa a fidelidade em ambos os lados da relação. Pela sua visão, melhor assumir suas limitações do que colocar panos quentes apenas na pulada de cerca masculina. A liberdade que ele pede em Medo da chuva, oferece em A maçã. Não se trata de ser adepto, tampouco de aprovar, muito menos de recomendar a aplicação de sua teoria, qual seja a de sair por aí a comer maçã na chuva, mas há que se admitir a lógica de seu raciocínio.

Em Medo da chuva, ele constata que, ao se prender exclusivamente a alguém, como pedras imóveis na praia, deixa-se de viver várias outras possibilidades de amores – afinal, quem não está na chuva é pra não se molhar. Ao mesmo tempo, reflete que o segredo da vida e da felicidade está em perder o medo da chuva e assumir-se incapaz de amar apenas uma vez e de cumprir as juras de amor eterno, feitas ao pé do altar.

Em A maçã, ele também assume o desgaste provocado por uma relação biunívoca e, ao admitir que o amor só dura em liberdade, aceita, também, libertar, não sem sofrimento, a pessoa amada. Por essa linha de raciocínio, em se abolindo expectativas inalcançáveis e recíprocas de fidelidade, evitar-se-ia, também, as consequentes frustrações.

As duas canções, ora são complementares - com enfoques na impossibilidade de se amar apenas uma vez (Medo da chuva) ou apenas um de cada vez (A maçã) -, ora parecem dialogar uma com a outra, em harmonia e sintonia perfeitas. Mesmo sem entrar no mérito do que ambas apregoam, a coerência de ideias entre uma e outra letra é perceptível, como nas duas estrofes a seguir:

É pena que você pense que eu sou seu escravo / Dizendo que eu sou seu marido e não posso partir / Como as pedras imóveis na praia eu fico ao seu lado sem saber / Dos amores que a vida me trouxe e eu não pude viver” (Medo da chuva).

Se eu te amo e tu me amas / E outro vem quando tu chamas / Como poderei te condenar? / Infinita tua beleza / Como podes ficar presa / Que nem santa num altar?” (A maçã).

A diferença de abordagem da infidelidade masculina perante a feminina é histórica e alimentada por simplificações estereotípicas bem comuns - do tipo homem sujeito, mulher objeto ou homem quer sexo, mulher quer dinheiro -, exploradas, inclusive, pela mídia. Em contraponto a tal raciocínio, a teoria do maluco beleza, pelo menos, tira da mulher o exclusivo papel de fiel da balança e diminui, com equidade, o peso dessa fidelidade entre as duas partes. O ideal, porém, e sempre, é cada um escolher uma e apenas uma maçã, a mais madura ou a que mais lhe aprouver e não entrar num relacionamento apenas para passar uma chuva.


* Medo da chuva (Raul Seixas / Paulo Coelho)

É pena que você pense que eu sou seu escravo
Dizendo que eu sou seu marido e não posso partir
Como as pedras imóveis na praia eu fico ao seu lado sem saber
Dos amores que a vida me trouxe e eu não pude viver

Eu perdi o meu medo, meu medo, meu medo da chuva
Pois a chuva voltando pra terra traz coisas do ar

Aprendi o segredo, segredo, segredo da vida
Vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar

Eu não posso entender tanta gente aceitando a mentira
De que os sonhos desfazem aquilo que o padre falou
Porque quando eu jurei meu amor eu traí a mim mesmo, hoje eu sei
Que ninguém nesse mundo é feliz tendo amado uma vez, uma vez

Eu perdi o meu medo, meu medo, meu medo da chuva
Pois a chuva voltando pra terra traz coisas do ar

Aprendi o segredo, segredo, segredo da vida
Vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar


** A maçã (Raul Seixas / Paulo Coelho)

Se esse amor
Ficar entre nós dois
Vai ser tão pobre amor
Vai se gastar

Se eu te amo e tu me amas
Um amor a dois profana
O amor de todos os mortais
Porque quem gosta de maçã
Irá gostar de todas
Porque todas são iguais

Se eu te amo e tu me amas
E outro vem quando tu chamas
Como poderei te condenar?
Infinita tua beleza
Como podes ficar presa
Que nem santa no altar?

Quando eu te escolhi
Para morar junto de mim
Eu quis ser tua alma
Ter seu corpo, tudo enfim
Mas compreendi
Que além de dois existem mais

Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade
Sofro, mas eu vou te libertar

O que é que eu quero
Se eu te privo
Do que eu mais venero
Que é a beleza de deitar?