12.4.07

Meu rei mandou dizer...

Com todo o poder, audiência e experiência que as Organizações Globo possuem na televisão brasileira, era natural que se aventurassem, um dia, a fazer, também, cinema. Hoje, após passar por dificuldades e quase desaparecer durante o governo Collor, o cinema nacional voltou a ter grandes bilheterias, com o surgimento da Globo Filmes e todo o seu poder de divulgação, sem que isso signifique, contudo, ganho para todos. Seus filmes, sendo ou não meras transposições de produções da televisão para a tela grande, ficam, em geral, com cara de novela. E, assim como ocorre na TV, há um enorme desequilíbrio de forças, com a globalização a tomar espaço de produções menores, mas de maior qualidade.

A nova produção da Globo Filmes, “Ó Paí, Ó”, de Monique Gardenberg, que dirigiu, também, Benjamim, baseado em livro homônimo de Chico Buarque, deve seguir o caminho inverso, mas não menos direto, e virar seriado na TV. Parte, contudo, de uma boa idéia, a de mostrar as dificuldades e desventuras de uma comunidade pobre dos arredores do Pelourinho, no centro histórico de Salvador, e sua forte ligação com o carnaval.

Segundo a página oficial do filme (www.opaio.com.br), “Ó Pai, Ó faz uma rasura na superfície de uma reordenação urbanística do Pelourinho que violentou territorialidades negras em tentativas vãs de embranquecimento cultural e de desafricalização dos espaços públicos de Salvador”. Rasura, de fato, bem superficial e a lápis, resultando em papéis sem maiores riscos, pois o filme não foge à regra global e sofre da mesma miopia ou visão pouco aprofundada de questões importantes, visão essa decorrente do compromisso com o padrão Globo de qualidade, que a exige, em troca de uma boa divulgação, com direito a comentários na novela das oito e em seus programas.

Quando insinua tratar com seriedade de temas como o preconceito racial, o assunto é logo abortado, como se entrassem os comerciais. Isto acontece, claramente, numa cena em que o ator Lázaro Ramos mostra todo o seu potencial dramático, talvez menos conhecido (pelo menos na televisão) do que sua veia cômica. Ele rouba a cena e em seguida devolve-a ao público, já quase transformada em realidade, através de sua contundente (e convincente) expressão facial, no primeiro momento sério do filme até que... uma piada recoloca-o nos eixos mal traçados de uma comédia musical sem muita graça.

Um aspecto interessante é a divulgação do belo trabalho social, cultural e de resistência, que faz o Bando de Teatro Olodum na capital baiana. O filme, inclusive, é baseado em uma peça de teatro encenada pelo grupo, do qual saiu, também, boa parte do elenco. Um bando de bons atores, que têm a chance de serem conhecidos e reconhecidos nacionalmente, seguindo os passos de Lázaro Ramos e da cantora Virgínia Rodrigues, que começaram no grupo.

Além deles, “Ó Paí, Ó” conta com as participações de Stênio Garcia, Wagner Moura e Dira Paes. Merecem elogios, também, as atuações de Luciana Souza (dona Joana) e dos graciosos e espontâneos garotos Vinícius Nascimento e Felipe Fernandes (Cosme e Damião), bem como a beleza morena de Emanuelle Araújo, ex-vocalista da Banda Eva.

Na parte musical e nas cenas de carnaval, o filme também parece um pouco prejudicado pelos interesses comerciais, deixando um pouco de lado, por exemplo, o afoxé, ritmo que melhor representa a cultura carnavalesca negra baiana (o Araketu é bom demais, mas a coisa mais linda de se ver é o Ilê-Aiyê). Mesmo o samba-reggae, sempre posto, injustamente, como subproduto da chamada axé-music, mas de valor bem maior, poderia ter sido melhor explorado e ter substituído algumas faixas da trilha sonora (disponível em CD).

Se a primeira impressão é a que fica, porém, “Ó Paí, Ó” começa muito bem com a bela canção “É d’Oxum”* (na voz de Jauperi, ex-vocalista do Olodum), já gravada por Gal Costa. Termina bem, também, com “Protesto do Olodum – E lá vou eu”** (com participação de Margareth Menezes e Daniela Mercury), gravada em 1988 pela Banda Mel, que casa perfeitamente com a segunda e última cena séria do filme, protagonizada com destaque pela atriz Luciana Souza.

Outros destaques da trilha sonora são “Ilha de Maré”, que já foi sucesso na voz de Alcione em 1977; “Depois eu volto”, do tradicional sambista baiano Batatinha; “Vem meu amor” (por Lázaro Ramos), gravada anteriormente pelo Olodum; e “Canto do mundo”, de Caetano Veloso, que também assina “Ó Paí, Ó”, com Davi Moraes. A produção musical do filme é de Betão Aguiar, Davi Moraes e Luiz Brasil; a não-musical, de Augusto Casé, Sara Silveira e Paula Lavigne.

Saiu por uma porta, entrou pela outra. Meu rei mandou dizer que, em suma, a história e a trilha do filme valem como uma série ou especial da Globo, mas poderiam valer muito mais. Quem quiser que conte outra e tomara que queiram.



* É d’Oxum (Vevé Calazans/ Gerônimo Santana)

Nessa cidade todo mundo é d'Oxum
Homem, menino, menina, mulher
Toda essa gente irradia magia
Presente na água doce
Presente na água salgada
E toda cidade brilha
Seja tenente ou filho de pescador
Ou importante desembargador
Se der presente é tudo uma coisa só
A força que mora n'água
Nao faz distinção de cor
E toda cidade é d'Oxum
É d'Oxum, é d'Oxum
Eu vou navegar nas ondas do mar
Eu vou navegar, eu vou navegar


** Protesto do Olodum – E lá vou eu (Tatau)

Força e pudor
Liberdade ao povo do pelô
Mãe que é mãe no parto sente dor
E lá vou eu

Declara a nação,
Pelourinho contra a prostituição
Faz protesto manifestação
E lá vou eu

Aids se expandiu
E o terror já domina o brasil
Faz denúncia Olodum Pelourinho
E lá vou eu

Brasil liderança
Força e elite na poluição
Em destaque o terror Cubatão
E lá vou eu

Lá e cá nordestópia
Na Bahia existe Etiópia
Pro nordeste o país vira as costas
E lá vou eu

Moçambique, hei
Por minuto um homem vai morrer
Sem ter pão nem água pra beber
E lá vou eu

Mas somos capazes
O nosso deus a verdade nos trás
Monumento da força e da paz
E lá vou eu

Desmond Tutu
Contra o apartheid na África do Sul
Vem saudando o Nelson Mandela
O Olodum