27.7.12

De retratos e paisagens

Além de enxergar que cinema é a maior diversão, podemos encarar a poltrona das salas de exibição como divã de psicanalista. Nessa linha, os filmes de cunho psicológico - aqueles que lidam com a psique e fazem da tela de cinema um grande espelho a refletir nossa imagem - são bem interessantes, muito mais que simples diversão. E num paralelo entre sessões de cinema ou de análise, Woody Allen, pelo conjunto da obra, poderia ser mais um guardião da nossa insanidade mental, junto com Freud, Jung ou Lacan.

Com quase 50 filmes no currículo e mantendo a média de um por ano a essa altura da carreira, o cineasta volta às telas com o filme da vez, Para Roma com amor, atualmente em cartaz (o título em português termina por brincar com as características de palíndromo das palavras roma e amor, o que não ocorre no título original, em inglês, To Rome with love). A obra segue a tendência dos últimos trabalhos de Allen, que alguns críticos de cinema têm classificado como fase guia turístico do diretor, pelo fato de ele ter descartado a cidade de Nova York como locação fixa de seus trabalhos e partido para um city-tour mundial, no que parece estar sendo um golpe de mestre do mestre, em termos de bilheteria.

Nessa fase, iniciada com Match point, em Londres (2005), cada trabalho tem locação numa cidade de um país diferente, com várias cenas externas mostrando as belezas dos lugares e o consequente apoio financeiro proporcionado pelo patrocínio dos respectivos governos, interessados numa divulgação tão rica e abrangente. Outros destaques foram Vicky Cristina Barcelona (2008) e Meia-noite em Paris (2011). Ao mesmo tempo, é perceptível que nos tais filmes turísticos, graças ao apelo estético, atingiu-se um público bem maior, que não era necessariamente fã do diretor em sua fase pré-migratória. Um público que prefere ver Paris a ver a si próprio, ou ainda, prefere ver a si próprio em Paris.

Para Roma com amor é constituído de quatro histórias que se intercalam ao longo da trama e têm em comum apenas a locação, as ruas de Roma. O filme começa com a figura de um guarda de trânsito, num movimentado cruzamento da capital italiana. Como um espectador privilegiado do dia a dia da cidade, é como se, em cada esquina do cruzamento onde se encontra, ele observasse cada uma das tramas paralelas. Duas dessas histórias têm enredos que dariam bons filmes completos ou poderiam render mais.

A primeira é protagonizada pelo próprio Woody Allen, como um diretor de ópera aposentado, pai de uma moça que vai se casar com um italiano, tem boca e vai a Roma, conhecer a família do futuro genro, de inclinação comunista, cujo pai é dono de funerária e excelente cantor de chuveiro. Essa excêntrica combinação de aptidões e tendências, aliada à figura sempre representativa (e bem representada) do ator e diretor como caricatura de todos nós, rende momentos bem divertidos.

Outra história mostra a vida de um pacato e metódico cidadão italiano, que, sem mais explicações - o que torna o fato mais engraçado -, passa a ser visto como celebridade, com inúmeros repórteres à espreita na porta de sua casa, seguindo-o por qualquer lugar e sempre à espera de algum pronunciamento de sua parte, seja sobre o que for. Respostas dele a perguntas banais, como “o que você comeu no café da manhã” ou a cobertura ao vivo de seu barbear são tratadas como furos de reportagem e exaltadas pelos paparazzi como um gol da squadra azurra em final de copa do mundo. A princípio incomodado, com o tempo ele começa a gostar da exposição, momento em que, de maneira igualmente súbita, ele perde o foco da atenção para outro cidadão.

Para um diretor cujo ponto forte sempre foi o diálogo, não tem tanta importância cenário, imagem, paisagem e uma viagem ao exterior não se compara ou não acrescenta muito a outra rumo aos meandros da nossa mente, uma viagem ao interior, retrato de nossa alma, nosso retrato. Bill Gates diria que a troca de retrato por paisagem é só uma questão de orientação, mas, como citei em outra ocasião, os filmes de Woody Allen trazem a palavra como texto e o resto como pretexto. E a troca da imaginação pela imagem não passa de um bom pretexto.



* Sobre Woody Allen, leia também: Nossa imagem na tela grande

9.7.12

Gabriela, sempre Gabriela

Emplacar música em trilha sonora de novelas é bom para os dois lados. De um lado, cantor, compositor e gravadora. De outro, autor, atores e emissora. No meio, um público satisfeito. A gravadora Som Livre percebeu essa harmonia e, desde o início da década de 70, passou a ser responsável pela criação e comercialização de trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. Três décadas depois, em 2001, a gravadora relançou vinte trilhas nacionais de novelas, na coleção Vale a Pena Ouvir de Novo, entre elas Gabriela. Nos últimos dias, a Globo iniciou a exibição da nova versão dessa novela, baseada em obra do escritor Jorge Amado, cujo centenário de nascimento comemora-se este ano.

Comparações entre esta refilmagem e a versão original de 1975 surgiram naturalmente, a começar por quem é a “melhor” Gabriela. Um aspecto, porém, não suscitou comparações, por ter-se mantido equivalente nas duas versões: a trilha sonora, uma das melhores da teledramaturgia brasileira, mantida em sua maior parte e em suas gravações originais. Até melhorou: nove canções foram mantidas, saíram quatro e entraram outras sete, entre elas Lamento sertanejo, uma das obras-primas de Gilberto Gil e Dominguinhos, que tem bastante a ver com o perfil do folhetim, assim como Tema de amor de Gabriela (“Chega mais perto, moço bonito / Chega mais perto, meu raio de sol / A minha casa é um escuro deserto / Mas com você ela é cheia de sol”), composta por Tom Jobim para a adaptação da obra para o cinema.

O período em que foi exibida a primeira versão de Gabriela* coincide com o surgimento de novos talentos na música popular brasileira, representantes de uma geração que, se teve a difícil missão de suceder aquela da era dos festivais, com a responsabilidade de manter o nível, pegou a MPB já amaciada, sobrevivente à revolução da Bossa nova, ao rolo compressor da Jovem guarda e à sacudidela tropicalista e, por conseguinte, mais aberta a novidades. Dessa turma, estão presentes no disco Fafá de Belém (Filho da Bahia), Djavan (Alegre menina**) e João Bosco (Doces olheiras).

O disco começa com a singular interpretação de Maria Bethânia para Coração ateu, de Sueli Costa (“O meu coração ateu quase acreditou / Na sua mão que não passou de um leve adeus / Breve pássaro pousado em minha mão / Bateu asas e voou”). Como foram, quase todas, compostas especialmente para a novela, registradas exclusivamente em sua trilha sonora, as canções de Gabriela reproduzem perfeitamente a atmosfera da obra de Jorge Amado, o que enriquece ainda mais o trabalho. Muitas delas têm a mão de um Caymmi, melhor tradução musical do universo do escritor baiano. De Dorival, tem Adeus (por Walker), Horas (por Quarteto em Cy) e o tema de abertura da novela, Modinha para Gabriela (por Gal Costa). De Dori, Porto (por MPB-4) e Alegre menina (por Djavan), esta em inusitada parceria com Jorge Amado.

Moraes Moreira – à época recém-saído dos Novos baianos, iniciando carreira solo -, Elomar, Alceu Valença e Geraldo Azevedo representavam o bloco dos nordestinos que despontariam com bastante força naquela década, no mercado musical brasileiro. A instrumental Guitarra baiana, de Moraes, pode não soar familiar no nome, mas é uma das músicas mais conhecidas da trilha, que acompanha várias cenas e é a cara da novela. O mesmo ocorre com a também (quase) instrumental São Jorge dos Ilhéus, de Alceu. O compositor pernambucano também está presente numa parceria com o conterrâneo Geraldo Azevedo, interpretada por este, um clássico da dupla, Caravana (“Corra, não pare, não pense demais, repare essas velas no cais, que a vida é cigana, é caravana, é pedra de gelo ao sol, degelou teus olhos tão sós, num mar de água clara”).

Para quem imagina que letra de música com conotação, digamos, sexual ainda não existia quando nós viemos para esse mundo e ainda não atinávamos em nada, Walter Queiroz responde com Quero ver subir, quero ver descer (adaptação: D.P. / R. Santana), que contém versos bem semelhantes a algumas canções dos dias atuais, como: “A mulata é faceira, bota a mão nas cadeiras, bota a mão nos olhinhos, bota a mão no queixinho, bota a mão no umbiguinho, bota a mão no lelelê, cadê você?”, ou ainda: “Bê-a-bá, bê-e-bé, bê-i-bi, quero ver as cadeiras bulir”. O cantor também está presente na trilha como compositor, com Filho da Bahia, interpretada por Fafá de Belém (É dele, ainda, Feijãozinho com torresmo, sucesso na voz de Maria Creuza).
 


* A primeira adaptação televisual de Gabriela, cravo e canela, obra de Jorge Amado com maior número de traduções, na verdade, foi ao ar no início da década de 60, poucos anos depois da publicação do livro, na extinta TV Tupi, antes, portanto, da versão da Rede Globo, que tinha Sônia Braga no papel principal, de 1975.

** Alegre menina (Jorge Amado / Dori Caymmi)

O que fizeste sultão de minha alegre menina
Palácio real lhe dei, um trono de pedrarias
Sapato bordado a ouro, esmeraldas e rubis
Ametista para os dedos, vestidos de diamantes
Escravas para servi-la e um lugar no meu dossel
E a chamei de rainha e a chamei de rainha
O que fizeste sultão de minha alegre menina

Só desejava a campina, colher as flores do mato
Só desejava um espelho de vidro pra se mirar
Só desejava do sol calor para bem viver
Só desejava o luar de prata pra repousar
Só desejava o amor dos homens pra bem amar
Só desejava o amor dos homens pra bem amar

No baile real levei a tua alegre menina
Vestida de realeza, com princesas conversou
Com doutores praticou, dançou a dança faceira
Bebeu o vinho mais caro, mordeu fruta estrangeira
Entrou nos braços do rei, rainha mais verdadeira
Entrou nos braços do rei, rainha mais verdadeira