21.3.11

Músicas de hoje

Hoje é período de tempo curto, mas, ao mesmo tempo, bastante presente em nossa vida, sobre o qual cabe gastarmos o tempo de hoje discorrendo. É o tempo em que tudo, de fato, acontece, é quando sentimos, vivemos. E como a música, ou a arte em geral, é uma forma de comunicação e expressão de sentimentos, é natural que muitas canções falem do hoje, seja em sentido amplo ou estrito, ressaltando seus aspectos positivos ou negativos, indo do sonho (“Hoje eu tive um sonho que foi o mais bonito que eu sonhei em toda a minha vida”) ao pesadelo (“Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento, a tempo”, “Hoje eu sonhei contigo e caí da cama”), em alguns acordes.

Algumas dessas músicas descrevem sensações de solidão (“Eu hoje acordei tão só, mais só do que eu merecia”, “Hoje é o dia, eu quase posso tocar o silêncio”, “Hoje contei pras paredes coisas do meu coração”). Outras traduzem sentimentos associados à ausência, falta ou perda de algo, seja do tempo passado (“Hoje os meus domingos são doces recordações / daquelas tardes de guitarras, sonhos e emoções”), pessoa (“Hoje o samba saiu procurando você”, “... E hoje ninguém mais fala do seu bandolim. Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim”) ou lugar (“Hoje eu mando um abraço pra ti, pequenina”, onde pequenina faz referência à Paraíba).

Abro um parêntese para comentar uma dúvida que me veio à memória, ao reproduzir, no parágrafo anterior, os versos de Quem te viu, quem te vê, de Chico Buarque: o samba saiu (e estava procurando você) ou ele “saiu procurando” (você)? A dúvida adveio do fato de não haver vírgula na letra oficial (que nem estou certo se caberia, no primeiro caso). Mesmo sem ela, sempre imaginei a primeira concepção como a correta, talvez sugestionado pela pausa melódica associada a este trecho, entre “saiu” e “procurando”, sempre preenchida por um laralaiá (ou mesmo pelo final, que diz apenas: “hoje o samba saiu”).

Outro belo e triste samba (Fazer o quê? Pra alegria de nossos ouvidos, desde que o samba é samba, a tristeza é senhora, como diz Caetano) a evocar, no hoje, o tempo passado é Quantas lágrimas (“Mas hoje em dia eu não tenho mais a alegria dos tempos atrás”), gravado por Cristina Buarque, nos anos 70. Já em Asa Branca, o personagem lamenta, ao mesmo tempo, a falta da chuva e do sertão (“Hoje longe, muitas léguas, numa triste solidão, espero a chuva cair de novo, pra mim voltar pro meu sertão”) e ainda da pessoa amada, Rosinha, a quem recomenda: “guarda contigo meu coração”.

Para dias difíceis, em que nada parece funcionar e o hoje parece interminável, sempre tivemos à mão trilha sonora de primeira, seja em assuntos políticos - “Nos dias de hoje, é bom que se proteja”, “Hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão” - ou existenciais - “Hoje trago em meu corpo as marcas do meu tempo”, “Eu que tinha tudo, hoje estou mudo, estou mudado”, “Hoje não colho mais as flores de maio”, “Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito”, “Hoje só acredito no pulsar das minhas veias”, “Hoje a noite não tem luar”, “Hoje não ligo a tv nem mesmo pra ver o Jô”. Mas nada como um dia após o outro...

Por meio de canções que renovam as esperanças, trazem paz de espírito ou mostram o hoje como prenúncio de um amanhã melhor, também estamos bem servidos musicalmente: “Hoje a poesia veio ao meu encontro”, “Hoje só tua presença vai me deixar feliz”, “Hoje nasceu novo sol no meu peito”, “Hoje me sinto mais forte, mais feliz, quem sabe”, “Hoje é festa lá no meu apê, pode aparecer”, “Hoje eu quero que as buzinas toquem flauta-doce”, “Hoje eu acordei com uma vontade danada de mandar flores ao delegado”, “Hoje eu quero a paz de criança dormindo”, “Hoje eu só quero que o dia termine bem”, “É hoje o dia da alegria e a tristeza nem pode pensar em chegar”.

Em se tratando de paz de espírito, por sinal, meu xará da viola descreveu muito bem esse tipo de momento, agradável pela simplicidade e, ao mesmo tempo, responsável por proporcionar uma alegria que se quer eternizar, que faz esquecer certas dores por um instante: “Hoje eu quero apenas uma pausa de mil compassos, para ver as meninas e nada mais nos braços” *. A música fala, justamente, desses fragmentos de tempo efêmeros, mas suficientes para melhorarem nossas vidas. Momento finito a sugerir um samba sobre o infinito, do tamanho do amor literalmente perdido (“eu não me lembro mais quem me deixou assim”), reencontrado, de outra forma, numa pausa de mil compassos. Por hoje é só.



Excertos de letras das canções: A guerra dos meninos (Roberto Carlos / Erasmo Carlos), Poema (Cazuza / Frejat), Não sonho mais (Chico Buarque), Sempre não é todo dia (Oswaldo Montenegro / Mongol), Tudo que vai (Dado Villa-Lobos / Alvin L. / Tony Platão), Amor I love you (Marisa Monte / Carlinhos Brown), Jovens tardes de Domingo (Roberto Carlos / Erasmo Carlos), Quem te viu quem te vê (Chico Buarque), Naquela mesa (Sérgio Bittencourt), Paraíba (Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira), Quantas lágrimas (Manacéia), Asa branca (Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira), Cartomante (Ivan Lins / Vítor Martins), Apesar de você (Chico Buarque), Hoje (Taiguara), Meu mundo e nada mais (Guilherme Arantes), Sapato velho (Mú Carvalho / Cláudio Nucci / Paulinho Tapajós), Samba do grande amor (Chico Buarque), Noturno (Graco / Caio Sílvio), Hoje a noite não tem luar (versão: Carlos Colla), Nuvem negra (Djavan), Viagem (Paulo César Pinheiro / João de Aquino), Só hoje (Rogério Flausino / Fernanda Mello), Êxtase (Guilherme Arantes), Tocando em frente (Almir Satter / Renato Teixeira), Festa no apê (versão: Gessé Filho), Sem mandamentos (Oswaldo Montenegro), Telegrama (Zeca Baleiro), A noite do meu bem (Dolores Duran), Simples desejo (Jair Oliveira / Daniel Carlomagno), É hoje (Didi / Mestrinho), Para ver as meninas (Paulinho da Viola).


* Para ver as meninas (Paulinho da Viola)

Silêncio por favor
Enquanto esqueço um pouco
a dor no peito
Não diga nada
sobre meus defeitos
Eu não me lembro mais
quem me deixou assim
Hoje eu quero apenas
Uma pausa de mil compassos
Para ver as meninas
E nada mais nos braços
Só este amor
assim descontraído
Quem sabe de tudo não fale
Quem não sabe nada se cale
Se for preciso eu repito
Porque hoje eu vou fazer
Ao meu jeito eu vou fazer
Um samba sobre o infinito


Marisa Monte - Para ver as meninas