13.8.09

Poesia e música - relações íntimas de um par perfeito

A canção está chegando ao fim? Letra de música é poesia? Qualquer amante dessas duas formas de expressão – canção e poesia - já se deparou com tais questionamentos, cuja melhor resposta é não haver resposta. Trata-se do tipo de discussão clássica em que a conclusão é o que menos importa. Uma nova oportunidade de discussão – sem conclusão - desses temas foi criada por meio do documentário Palavra Encantada, de Helena Solberg e Márcio Debellian, que analisa a relação entre poesia e música, por meio de depoimentos de Adriana Calcanhoto, Chico Buarque, Maria Bethânia, Lenine, Martinho da Vila, Luiz Tatit, José Miguel Wisnik, Zélia Duncan, Tom Zé, entre outros.

Pra começo de conversa, o compositor Paulo César Pinheiro, um dos grandes poetas do nosso cancioneiro que, em Poder da criação, descreve a arte de compor ("Não, ninguém faz samba só porque prefere. Força nenhuma no mundo interfere sobre o poder da criação. Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito. Nem se refugiar em lugar mais bonito, em busca da inspiração"), afirma, no filme, que não há como negar que Chico Buarque é poeta.

O próprio Chico, por sua vez, afirma que não (ou nega que sim) e não é por modéstia. Diz que escreve letras direcionadas para a música, palavras que só estão ali por causa dela, que dançam conforme a música e cita como exemplo a letra da canção Uma palavra, de sua autoria, em que a palavra palavra repete-se, ao final de vários versos, por exigência da melodia ("Palavra prima / Uma palavra só, a crua palavra / Que quer dizer tudo / Anterior ao entendimento, palavra / Palavra viva, palavra com temperatura, palavra / Que se produz muda / Feita de luz mais que de vento, palavra").

Esse fenômeno pelo qual passa o letrista - e não o poeta – tem outro exemplo claro, que ora me vem à mente: o caso Romaria, de Renato Teixeira. Um dos melhores versos dessa canção, imortalizada por Elis Regina, foi feito por exigência da melodia. O compositor não conseguia concluir uma estrofe e só após um longo tempo chegou à solução, ao repetir três vezes a expressão final, encaixando letra e música: "como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar". Pura poesia, não poderia ter ficado melhor.

Ao falar da repercussão da Bossa Nova em sua geração, Chico afirma que, ao conversar com pessoas de gerações posteriores, costuma constatar que elas não sofreram tamanho impacto, por já terem pegado o bonde andando e estarem acostumados com aquele tipo de som, não mais uma novidade. É como penso, sempre que me vejo dividido entre a admiração por esse estilo e uma certa frustração por não sentir todo seu impacto, representado, sobretudo, pela bela canção Chega de saudade, pela voz dos intérpretes e pela batida de violão de João Gilberto. O maior mérito estava nas mudanças de padrões, coisas que só quem escutou no rádio Sílvio Caldas ou Orlando Silva seguidos de João Gilberto ou Tom Jobim pôde entender.

Poesia agrada a alguns, música instrumental, a outros, mas ambas estão longe de serem unanimidade. É na canção popular que essas duas partes - representadas por letra e melodia -, juntam-se e atingem seu maior público. Alguns poetas até enveredam para esse ramo - como Vinícius de Moraes – ou são tragados por ele, em parcerias como Chico e João Cabral (que não gostava de música); Fagner e Ferreira Gullar ou Cecília Meireles. Maria Bethânia recita poesias antes de canções - momentos sublimes, como Soneto de fidelidade seguido de Céu de Santo Amaro - e Lirinha (Cordel do Fogo Encantado) aproxima a poesia de João Cabral de um público mais jovem, que costuma recitar de cor, junto com ele, versos do poeta.

Por outro lado, ao juntar-se letra e música, a mensagem contida naquela, muitas vezes, passa despercebida. É o caso, por exemplo, de uma poesia que Antônio Cícero recita no filme, feita por ele para seu pai, que se transformou numa canção gravada por sua irmã Marina Lima, na década de 90: Eu vi o rei *. Poeta de uma geração mais nova, Cícero nunca imaginou que suas poesias se prestariam para compor uma canção - nem as escrevia com essa intenção - até ser estimulado por Marina, sua parceira em várias músicas.

Além de imagens históricas - como uma impagável entrevista com Caetano Veloso, após sua interpretação de Alegria, alegria, num dos festivais da TV Record -, os depoimentos enriquecem o filme. Lenine atribui à miscigenação o fato de estarmos à frente dos europeus na música popular. Ferréz comenta a forte ligação entre rap e repente (até fonética, como acabo de perceber) ou cordel, estes, por sua vez, reverenciados por Arnaldo Antunes, mestre das meias palavras, não as que dissimulam, mas as que bastam ao bom entendedor. Tom Zé exalta o rico e singular jeito de falar do sertanejo, sobretudo o iletrado, que faz da audição sua antena parabólica. Fala, ainda, das deliciosas ousadias de Dorival Caymmi em suas canções.

Jovens baixam músicas pela internet, lojas de disco rareiam: mudaram os paradigmas. Completa o quadro a natural diminuição das possibilidades de músicas – indutora da idéia de que "no meu tempo elas eram melhores" - o que, como diz José Miguel Wisnik, não significa que a canção esteja chegando ao fim, muito menos no Brasil, onde, segundo ele, criou-se uma música popular forte que, ao unir a leveza das canções a poesia de qualidade, conquistou um público cativo. O tema dá margem a vários filmes e Palavra (En)cantada poderia ser como Sexta-feira 13, que chega à parte 12 em 2009. Afinal, a canção é como Jason, personagem principal deste filme: quando se supõe seu desaparecimento, ela ressurge, com força.



* Eu vi o rei (Marina Lima /Antônio Cícero)
Eu vi o rei chegar

Um rei assim
Que não escuta bem
Que adora luz
Mas não vê ninguém
Prefere olhar
O horizonte, o céu
Longe daqui
é tudo seu

Seu sangue azul
Ninguém diz de onde vem
De que sertão
De que mar, que além
E para nós
Ele jamais se abriu
Só uma vez
Quando partiu

Um rei assim
Cultiva solidão
Sombria flor
No coração
E claro é
Que o pêndulo do amor
Às vezes vai
Até a dor

Devo dizer
Que eu não sofri demais
Mas devo dizer
Que acordei
Mesmo sem ser
Tudo que eu imaginei
Devo dizer
Que eu o amei

Eu vi o rei chegar

3 comentários:

Isaac Moraes disse...

Rapaz, vou já procurar esse documentário.

Descobri teu blog agora, através de um texto que você fez ano passado sobre o Rock dos Anos 80.

Fiquei fã.

Cliente assíduo agora rsrsrs

Grande abraço

Isaac Moraes

Anônimo disse...

Simplesmente fabuloso, Paulo!

Cristiano Fernandes disse...

Parabéns, Paulo! Gostei muito do seu texto! Na minha opinião, tanto um poema quanto uma música podem ter uma boa poesia. E como você mesmo disse, Vinicius de Moraes nos mostrou isso. Abraços!