4.3.10

Rádio patrulha

Havia uma marchinha da década de 70 que dizia: “Viva o Zé Pereira / Que a ninguém faz mal / E viva a bebedeira / Nos dias de carnaval”. Tal música, porém, não era da década de 70 do século XX, mas do século XIX. Pois é, os tempos ideais do velho Raul Moraes também tinham desses sucessos. Tudo bem, carnaval é festa essencialmente popular e, como tal, deve ser mesmo uma "momarquia" democrática e, na medida do possível, agradar a todos.

Ainda que seja na base do beijo ou do rebolation, no quatríduo momesco, o povo quer apenas cair no passo e a vida gozar. Tanto que certas bocas - de ouvidos menos atentos - costumam, nessa época, ferir os nossos, levando o frevo às páginas policiais, ao cantarem assim a Evocação nº 1 de Nelson Ferreira: “Ferido pelo soldado, Guilherme Fenelon, cadê teus blocos famosos?”, sem prestarem tanta atenção ao que está sendo dito. Claro que clássico é clássico (como disse Drummond, “E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno.”), mas não se deve exigir, por exemplo, que os mais jovens achem lindo ver o dia amanhecer com violões e pastorinhas mil (ainda que o seja), se isso não lhes emociona.

Seja ou não carnaval, música é algo que toca – e, mais do que isso, tem que tocar. Apenas certas canções (canções certas para uns, incertas para outros) têm esse dom, o que varia de pessoa para pessoa para Pessoa: “qualquer música, ah, qualquer / logo que me tire da alma / esta incerteza que quer / qualquer impossível calma”. A música que agrada aos ouvidos confunde-se um pouco com a realidade e a vivência de quem a escuta, o que torna quase impossível julgá-la com isenção. Há, ainda, uma busca por sintonia entre ritmo musical e ritmo de vida, o que explica por que, entre o vigor e ímpeto da juventude e a serenidade dos mais velhos, os sons vão diminuindo em volume e velocidade.

Patrulhamento musical (rádio patrulha) sempre existiu. A melhor política é desfazer-se de preconceitos ao escutar qualquer canção. Se, nesses termos, você apreciá-la, somente assim - e nesse ponto - faça valer a máxima de que gosto não se discute. Conforme atesta o crítico musical José Ramos Tinhorão em sua Pequena História da Música Popular, o maxixe e o samba-de-breque, por exemplo, eram considerados pela elite músicas de menor qualidade. Com o frevo, não foi diferente. Depois do frevo-de-rua, sua versão mais genuína e popular, foi que surgiu o de bloco, criação da classe média, que não queria se acabar de dançar, no meio do povo, o ritmo frenético das ruas. Hoje, os dois dividem espaços.

Tom Zé, em análise de trecho do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, comenta que, no Brasil, “aprecia-se uma espécie de culto no qual a inteligência, em vez de reunir os homens, os separa”. E completa: “Sérgio Buarque discute que, desde tempos imemoriais, o ato de pensar é exercido por nós, ibéricos, como se fosse um privilégio pessoal e classista. Isso dificulta o uso do pensamento como instrumento partilhado para a organização dos homens. Nós mesmos, que escrevemos em jornais, às vezes nos sentimos como ‘barõezinhos’”.

De fato, alguns indivíduos preferem segregar a agregar novos adeptos a seu exclusivíssimo clube dos que têm bom gosto. Para eles, se abrir demais, perde a graça e, nesse comportamento, pode estar embutido preconceito etário ou proletário. Alheio a esse patrulhamento – de modos e modas - e sem tantas satisfações a dar, os menos afortunados, ao menos nesse aspecto, são mais livres e, quando podem, divertem-se à vontade. É só comparar um concerto no teatro e um pagode na laje.

Caetano Veloso sempre procurou quebrar essa barreira subjetiva entre estilos musicais considerados de bom gosto ou não. Em Um frevo novo, provocou: “mete o cotovelo e vai abrindo o caminho” e ainda: “todo mundo na praça, muita gente sem graça no salão”. No auge do Tropicalismo, por ocasião da apresentação de Alegria, alegria no festival da Record, o cantor ressaltou assim sua simpatia pela liberdade de uso da guitarra na música brasileira: “No Rio de Janeiro, disseram: ‘Caetano vai usar guitarra numa música, quando chegar na Bahia vai tomar uma surra de berimbau’. O que eles não sabiam é que os baianos estão além.”.

Mantendo o tom, já que o assunto é a polêmica música boa x música ruim, vale ressaltar que Tom Zé, também tropicalista, em seu mais recente show, expõe impagável análise de um funk carioca (melhor ao vivo), desenvolvida com o intuito de confirmar informação, publicada em um jornal, de que seu disco Estudando a bossa sofrera influências desse ritmo. A propósito, um cara tão futurista, à frente do seu tempo e do tempo dos outros, só poderia mesmo ter nascido em Irará, futuro do futuro do verbo ir. Vamos atrás!



Certas Canções (Tunai / Milton Nascimento)

Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece
Como não fui eu que fiz?

Certa emoção me alcança
Corta-me a alma sem dor
Certas canções me chegam
Como se fosse o amor

Contos da água e do fogo
Cacos de vidas no chão
Cartas do sonho do povo
E o coração pro cantor

Vida e mais vida ou ferida
Chuva, outono, ou mar
Carvão e giz, abrigo
Gosto molhado no olhar

Calor que invade, arde, queima, encoraja
Amor que invade, arde, carece de cantar

Um comentário:

Felipe Leal disse...

Paulo, legal o texto! Confesso: fazia tempo não via o seu blogue, que, como sempre, é imperdível. Fico feliz que ele siga firme, bem como o twitter (micro-gênero em que você é insuperável). Depois dessa repetição de í-vel, pensei em mudar o comentário, mas ele está, ao menos na intenção, imexível.