26.3.10

O que pode essas línguas

Na narração de um fato, seja real ou fictício, a comunicação ocorre de forma direta, ainda que de diversas maneiras. Mário Vargas Llosa afirma, em relação aos romances em geral, que a história não escrita representa a maior parte da história real, já que esta “cobre um terreno maior do que aquele que qualquer escritor – mesmo o mais profícuo e loquaz, com o menor pendor para a economia narrativa – seria capaz de cobrir em seu texto”. De fato, cada narrador pode ressaltar, em sua versão,  diferentes aspectos do ambiente, características físicas, psicológicas ou o estado emocional dos personagens envolvidos no episódio narrado.

Na função de expressar sentimentos com exatidão, por sua vez, palavras são limitadas, por serem discretas, enquanto sentimentos são contínuos, o que faz com que não haja uma correspondência linear ou biunívoca entre eles. Dessa limitação, ou impossibilidade, é que surge a poesia, a metáfora, o sentido figurado e é justamente como instrumento de nossa mente criativa que as palavras encontram sua mais extraordinária aplicação.

Ao mesmo tempo, do lado dos que recebem a informação, as asas da imaginação desapropriam o sentido próprio, desfiguram o sentido figurado, enfim, ilimitam o que, loucamente, cada louca mente capta. O resultado é uma tradução eficaz, que transforma uma única língua-fonte (a mente criadora) em inúmeras línguas-alvo (as mentes receptoras).

No ramo da música, Construção, de Chico Buarque, é um exemplo concreto de onde se pode chegar com o uso de palavras bem dispostas, a começar do título da canção, de uma propriedade absoluta, ao denotar tanto a construção gramatical quanto a civil. Em Vai passar (Chico Buarque/Francis Hime), o título exprime o sentido de transitar, claramente expresso na letra (“vai passar nessa avenida um samba popular”, “o estandarte do sanatório geral vai passar”), mas também pode ser lido como deixar de existir, acabar, numa possível referência ao iminente fim da ditadura militar, na época em que a canção foi lançada (pode ser em sentido desfigurado, mas é como minha mentecapta mente capta).

Como admirador da arte de batizar – que trago até no nome - ou intitular, seja um livro, um filme, um disco, uma canção, uma rua, um bar, um artigo ou um simples e-mail, considero esta uma das etapas mais importantes e empolgantes da criação. Afinal, o título é a porta de entrada do conteúdo, ainda que não seja de todo indispensável (Nada nos impediria de ler um livro, assistir a um filme ou escutar uma música sem nome, a mensagem seria recebida da mesma forma. Da mesma forma, na linguagem falada, conseguiríamos nos comunicar sem a presença deles, mas a vida seria bem mais difícil e chata assim).

Por fim, não é incomum nome próprio ser comum (e nome comum ser impróprio). Nesse sentido, existe até uma piada, comum em Angola, nação africana de tantos contrastes sociais e vítima do neocolonialismo. Dois turistas, de férias no país, discutiam a diferença entre jacaré e crocodilo e discordavam sobre qual seria a denominação correta de um certo espécime que avistaram. Para desfazer a polêmica, consultaram um nativo angolano, apontando para o réptil: “Como vocês chamam, aqui, este animal, jacaré ou crocodilo?”, ao que o cidadão respondeu: “Nenhum dos dois. Aqui, a gente conhece-o como Lacoste”.

A função de dar nome é bem específica e seu praticante não precisa, necessariamente, ser o dono ou autor da coisa intitulada, tampouco produzir todo seu conteúdo. Basta ser criativo e, noutro plano, tal Caetano, gostar de se dedicar a criar confusões de prosódia e profusões de paródias*. Assim como café não costuma faiá, mouse pede mouse pad, forró pede serra e o Carrefour, digo, o baticum é da Benetton, não, da beira do mar. Ou da mesa do bar, talvez um Johann Sebastian Bar. E que o Chico Buarque de Holanda nos resgaste.



* Língua (Caetano Veloso)

Gosta de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões

Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
"Minha pátria é minha língua"
Fala Mangueira! Fala!

Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer, o que pode esta língua?

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda

Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem

Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé e Maria da Fé

Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer, o que pode esta língua?

Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo

A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana

Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.

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