12.4.10

De versão e arte

A prática de criar versões de textos provenientes de outras línguas tem o mérito de aproximar culturas, na medida em que as torna mais acessíveis aos que não têm acesso aos escritos, não dominam seus idiomas de origem ou mesmo não conhecem o trabalho feito em outros países.

Em se tratando de poesias e canções, esse trabalho de traduzir ou “versionar” é especialmente difícil, pois, se na tradução de textos em geral, procura-se ser o mais fiel possível ao conteúdo original, nas adaptações de versos - sejam de poesias ou canções -, por questões sobretudo de métrica, mudanças fazem-se necessárias, desde que não comprometam o contexto. Nesses casos, busca-se fugir a uma simples tradução literal (transcrição), com adaptações engenhosas (criação), mas sem se afastar do tema original, algo bem definido pelo neologismo “transcriação”. No caso das canções, almeja-se, ainda, manter a letra ajustada à melodia. Esse ajuste pode ser feito apenas pela sonoridade das palavras (mal) ou pela métrica como um todo (bem).

Quando a canção original é bem conhecida, o trabalho de tradução torna-se ainda mais delicado e difícil, pois é comum haver um estranhamento, quando a sonoridade já tão familiar de letra e música juntas é quebrada. Isso talvez explique o porquê de Yesterday (Lennon/McCartney), uma das canções mais gravadas de todos os tempos - cuja melodia, curiosamente, surgiu em um sonho de McCartney, como ele revela em sua biografia -, nunca ter recebido uma versão em português.

Por falar em Beatles, a Jovem Guarda, movimento surgido no Brasil por influência deles e de outros astros do rock de então, era bem servida de versões, aqui interpretadas por conjuntos como Renato e seus Blue Caps, Golden Boys, The Fevers, entre outros. De lá pra cá, grandes compositores da nossa música têm se esmerado em versões de qualidade, que fazem jus ao termo transcriação e, nos últimos tempos, bandas de forró tudo-menos-pé-de-serra têm traduzido até pensamento.

Gilberto Gil, como se não bastasse ser especial na criação de suas próprias canções, é um exemplo de compositor competente também em versões. Em Só chamei porque te amo – versão para I just called to say I love you, de Stevie Wonder -, Gil acrescentou a esses citados objetivos de versões musicais um toque de regionalismo que, além de facilitar a decodificação da mensagem, deixa uma doce impressão: nem carnaval, nem São João, nenhum balão no céu, nem luar do sertão. A canção cita bons motivos para se procurar por alguém, apenas para dizer que nenhum deles ocorreu e, ao descartá-los, apresentar o motivo fundamental da busca: só chamei porque te amo. Sem mais explicações, a não ser a falta de motivo ou razão (quando a saudade vem, não tem explicação).

Em Não chore mais – versão para No woman, no cry, do repertório de Bob Marley -, Gil também fez uso do recurso de adaptação à realidade local, com referências à repressão da ditadura militar então vigente no Brasil (Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais. Tais recordações, retratos do mal em si, melhor é deixar pra trás). Se na letra original o cenário é um jardim público em Trenchtown, Jamaica, a versão brasileira desloca-se para a grama do Aterro, no Rio de Janeiro. No fim, porém, a mensagem de esperança é a mesma: everything’s gonna be all right / tudo, tudo, tudo vai dar pé.

Milton Nascimento, durante temporada nos Estados Unidos, nos anos 70, escutou uma canção que falava sobre amigos que partiam. Inspirado nesta música, compôs outra (Unencounter, de seu disco Journey to dawn, de 1979), também em inglês, sobre o mesmo tema, em parceria com Fernando Brant. Flávio Venturini, que à época fazia parte do grupo 14 Bis, adorou a canção e quis gravá-la, mas achou que ela merecia uma versão brasileira. Brandt, então, traduziu a letra para o português. O resultado foi Canção da América, uma celebração à amizade que, como tal, transpôs fronteiras, rompeu limites, desfez distâncias, com um apelo universal que não carece de tradução: o que importa é ouvir a voz que vem do coração.

Em bom português, versões podem constituir grandes versos, sem os quais não haveria fascinação nem ternura. Não saberíamos o amor, doce mistério da vida, nem o sabor do gesto. Não entenderíamos a natureza humana nem a aquarela da vida. Não saberíamos, com Chaplin, simplesmente, sorrir*.



* Sorri (Charles Chaplin/G.Parson/J. Turner - versão: Braguinha)

Sorri
Quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos, vazios

Sorri
Quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador

Sorri
Quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados, doridos

Sorri
Vai mentindo a tua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz
 

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