2.12.06

Choque cultural


Movimentos geralmente são definidos por características singulares, ímpares e bem definidas. Refletem uma tendência de idéias mais ou menos unificadas e homogêneas, predominantes em determinada época. A corrente dos tropicalistas, que completa quarenta anos em 2007, no entanto, foge um pouco a essa definição padrão, ao abraçar várias tendências e influências aparentemente incompatíveis, sem um sentido único. Como o movimento aparentemente desordenado dos elétrons. Caetano Veloso, um dos fundadores do movimento, até diz preferir o nome Tropicália a Tropicalismo, entre outras razões, justamente pela idéia limitadora e de enquadramento associada ao sufixo ismo, muito utilizado para denominar movimentos nas mais diversas áreas.

Sabemos, das aulas de eletricidade, que tensão gera corrente e a tropicalista, embora Gil e Caetano tenham-se destacado no festival de música da TV Record de 1967, com "Domingo no parque" e "Alegria, alegria" (segunda e quarta colocadas), respectivamente, provocou choque e não foi logo bem aceita. A Tropicália, cujo nome foi sugerido pelo produtor de cinema Luís Carlos Barreto, baseado em uma obra do artista plástico Hélio Oiticica, surgiu num clima de rivalidade e discórdia entre dois grupos antagônicos.

De um lado, os politizados, estudantes, artistas, intelectuais, contrários ao golpe militar de 64 e, por conseguinte, ao chamado imperialismo vindo dos Estados Unidos ou a qualquer influência deles, ou dos estrangeiros em geral, na nossa cultura. Do outro, os não politizados, que queriam apenas se divertir, sem maiores questionamentos sobre a situação do país. Havia, então, correntes alternadas, em sentidos contrários: o primeiro grupo era simpatizante e adepto da Bossa Nova e das músicas de protesto, de cunho político, e o segundo, da Jovem Guarda, influência dos Beatles e outros grupos de rock na música nacional.

Os tropicalistas tornaram-se, então, um campo neutro, sem uma polarização definida de forma simplória entre positiva e negativa. Uma energia mais nova que a Bossa Nova, mais jovem que a Jovem Guarda. Em vez do sistema monofásico vigente, onde só se podia apreciar um ou outro estilo, propuseram uma fonte geradora de energia trifásica, com as três correntes interagindo através de ondas harmônicas e em ressonância, em circuitos paralelos. Da Jovem Guarda, buscaram um som mais universal, mas sem copiar o rock estrangeiro. Em relação à Bossa Nova, sugeriram uma mudança de tom: em vez do Jobim, o Zé. De João Gilberto, ficou o Gilberto, que se reproduziu e virou Gilberto Gil.

"É proibido proibir". Então, podia-se valorizar a cultura brasileira sem menosprezar as influências estrangeiras: "sobre a cabeça os aviões, sobre os meus pés os caminhões". Podia-se exclamar "viva a bossa" ou "viva a banda", mas também "ouvir aquela canção do Roberto". "Que tudo mais vá pro inferno, meu bem". Podia-se contar uma história com princípio, meio e fim, como em "Domingo no parque" ou ser concretista, como em "Batmakumba"*, com sua letra visual, em forma de K, ou ainda das asas de um morcego, universalizando a macumba. Podia-se cantar em inglês: "baby, baby, I love you", em espanhol: "soy loco por ti, América, soy loco por ti de amores", em português, ou ainda criar uma nova língua, juntando todas: "batmakumbayêyê batmakumbaoba". "Não sei. Leia na minha camisa". Afinal de contas, o som é universal e tropical é tropical em várias línguas.

Mas, pela lei de Ohm e pela lei dos homens, toda corrente gera resistência e uma alta resistência impede que a corrente se propague. O movimento chegou ao fim com a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, por parte do governo militar (a trupe carlista não gostava de tropicalista), os baianos Caetano e Gil foram presos e depois seguiram em exílio para a Inglaterra, onde permaneceram por quase quatro anos. Pouco antes disso, lançaram um disco coletivo de nome "Tropicália ou Panis et Circenses", que consagrou o movimento e contou também com a participação de Tom Zé, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes, Torquato Neto, Capinam e o maestro e arranjador Rogério Duprat.

Entre acordes nada dissonantes de guitarra, Caetano sintetizou bem o espírito do movimento em sua canção "Alegria, alegria"**, que retratava os acontecimentos da época de forma fragmentada, como notícias de jornal, forma essa que caracterizava também a postura neutra (no sentido de imparcialidade, não de impassibilidade), mas ao mesmo tempo marcante dos tropicalistas. Golpe militar, movimento hippie, guerra do Vietnã, conquista da lua, exibiam-se nas manchetes da letra, por entre fotos e nomes, repartidos em crimes, espaçonaves, guerrilhas, entre caras de presidentes e grandes beijos de amor, bomba e Brigitte Bardot. Sem livros e sem fuzil, nada no bolso ou nas mãos, caminhando contra o vento. É proibido proibir e vocês não estão entendendo nada!




* Batmakumba (Caetano Veloso – Gilberto Gil)

batmakumbayêyê batmakumbaoba
batmakumbayêyê batmakumbao
batmakumbayêyê batmakumba
batmakumbayêyê batmakum
batmakumbayêyê batman
batmakumbayêyê bat
batmakumbayêyê ba
batmakumbayêyê
batmakumbayê
batmakumba
batmakum
batman
bat
ba
bat
batman
batmakum
batmakumba
batmakumbayê
batmakumbayêyê
batmakumbayêyê ba
batmakumbayêyê bat
batmakumbayêyê batman
batmakumbayêyê batmakum
batmakumbayêyê batmakumbao
batmakumbayêyê batmakumbaoba


** Alegria, alegria (Caetano Veloso)


Caminhando contra o vento
Sem lenço sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou

O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas
Eu vou

Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes pernas bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot

O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia?
Eu vou

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou

Por que não? Por que não?

Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço sem documento
Eu vou

Eu tomo uma Coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone
No coração do Brasil

Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou

Sem lenço sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou

Por que não? Por que não?

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu também quero seguir vivendo, amor!
Esse texto valeu a música!
Anna