14.3.08
Sobre natural
Quando assistimos a um filme que nos desperta algum sentimento, seja de medo, repulsa, alegria, vontade de rir ou de chorar, sabemos, de antemão, por que estamos nos emocionando, se por algo real, como no caso de um documentário, ou irreal, em caso de ficção. Isso não fica claro em “Jogo de cena”, último filme do conceituado e premiado cineasta Eduardo Coutinho, que não se enquadra facilmente em nenhuma das duas categorias. Não há enredo e as histórias contadas são reais, o que o classificaria como documentário, mas quem conta a história ora é uma atriz, como numa obra de ficção, ora é a própria protagonista. Foi eleito o melhor filme brasileiro de 2007 pela APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte).
O filme começa mostrando o anúncio que o diretor colocou em jornais e outdoors, convocando mulheres com histórias de vida interessantes para contar. Dos depoimentos colhidos, cerca de dez foram aproveitados. Um importante critério de escolha - até mais do que os próprios fatos narrados - foi, segundo Coutinho, a maneira como foram contados e que os tornou mais ou menos interessantes. Tal critério definiu, também, sua opção por entrevistar apenas mulheres, as quais, como ele explica, expõem-se mais e controlam menos seus sentimentos, em comparação com os homens. De fato, percebe-se bem a espontaneidade com que elas se portam diante da câmera, resultando em momentos engraçados e comoventes.
A princípio, temos a impressão de que o jogo é fácil e, arnaldocesarcoelhamente, sua regra é clara e perfeita: histórias de vida narradas por mulheres são intercaladas por interpretações de atrizes conhecidas, que repetem ou complementam seus depoimentos, com a única orientação de não imitar as depoentes, o que, do ponto de vista da atriz, se por um lado proporciona uma maior liberdade de interpretação, por outro tira a referência ou modelo a seguir.
Entre as atrizes, que também contam casos pessoais, estão Marília Pêra, Fernanda Torres e Andréa Beltrão, as quais, após suas participações, falam de suas dificuldades e impressões quanto ao resultado obtido, o que é bem sintetizado por Fernanda Torres, quando ela afirma que a diferença entre interpretar um personagem real e um fictício é que, com este, embora se possa atingir um bom grau de realidade, se você atinge um nível medíocre, pode se manter ali, porque ele é da sua medida, enquanto com aquele a realidade esfrega na sua cara até onde você poderia chegar e não chegou, pois existe alguém acabado na sua frente.
Como o sentimento não necessariamente é proporcional à sua expressão, acontece, às vezes, de o depoimento da atriz nos impactar mais do que o de quem ela representa, o que nos tira um pouco do eixo. À medida que o jogo continua, atrizes desconhecidas passam a se confundir com as demais depoentes, o que nos deixa com um monte de dúvidas sobre quem é a atriz e uma única certeza: a de que o filme brinca com os nossos sentimentos. Todos os casos relatados são bastante densos e, em um deles, saímos do prumo após ouvi-lo duas vezes, recebendo-o como real em ambas, com um impacto emocional ainda mais forte na segunda, ao mesmo tempo em que tomamos consciência de que apenas uma (ou mesmo nenhuma) das depoentes é sua real protagonista.
O cenário dos depoimentos é um teatro vazio, talvez para mostrar que a diferença entre a vida real e a ficção é apenas o palco em que se atua. Também reforçando essa dualidade, ou dubiedade, a entrevistada senta-se no palco, como se fosse uma atriz, mas se posiciona no mesmo ângulo de visão da platéia, como uma pessoa comum ou espectadora.
Os documentários de Eduardo Coutinho partem sempre de idéias bem originais. Em “Peões”, de 2004, por exemplo, ele vai atrás de metalúrgicos que participaram das famosas greves do ABC, entre 1979 e 1980, junto com o atual presidente Lula (uma ótima referência para entendermos melhor seu carisma e a importância de sua eleição para o nosso país, aprovemos ou não seu governo).“Cabra Marcado para Morrer”, seu filme mais conhecido, conta a história de um líder de liga camponesa do interior do nordeste. Iniciado em 1964 e interrompido por conta do golpe militar, só foi retomado e finalizado em 1984.
Em recente debate com o público, após uma exibição de “Jogo de cena”, em São Paulo, o diretor falou da dificuldade de encontrar um título em inglês, ou qualquer outra língua, para o filme. Sua mensagem, porém, é universal e nos faz refletir que o pensamento é o único meio em que nossa impressão se manifesta em sua forma mais pura; que a expressão é apenas o lado visível da impressão, que pode se aproximar bastante dos nossos sentimentos, mas nunca será igual e, às vezes, nem mesmo proporcional; que mesmo o natural é interpretado - o que, segundo o próprio Coutinho, é acentuado pelo “efeito-câmera” - e que, sem a expressão, o silêncio triste parece igual ao silêncio alegre:
apenas silêncio. Apenas parece.
Assinar:
Postagens (Atom)