Considerações
musicais de Raul Seixas para relacionamentos amorosos
(A Steve
Jobs, que gostava de maçã e provou ao mundo que nem todas são
iguais)
A fidelidade como
requisito ao casamento costuma ser inquestionável. Por outro lado, e
ao mesmo tempo, o pouco êxito no cumprimento deste requisito, motivo
maior de separações, junto às naturais dificuldades de
relacionamento, também é indiscutível. Os pesos e medidas utilizados para julgar atos de infidelidade conjugal,
porém, são menores em sua versão masculina e, aí sim, começa a
discussão. Trata-se, afinal, de um pacto, acordo ou contrato entre
duas pessoas que prometem ser fiéis uma à outra, por toda a vida.
Uma via de mão dupla, em que a ultrapassagem não é aconselhável,
nem pra um lado, nem pra outro.
O assunto é tema
recorrente, também, na música e na literatura. O poetinha Vinícius
de Moraes reconheceu o amor como algo não imortal, posto que é
chama. Seria possível, então, manter essa chama acesa e tornar a
fidelidade não um fardo, mas um prazer? Há quem acredite que sim, e
são muitos. Há quem acredite que não, e não são poucos. O cantor
e compositor Raul Seixas apresentou, por meio de duas canções em parceria com o escritor Paulo Coelho –
Medo
da chuva* e A
maçã** -, um modelo de casamento que foge ao
padrão hi-fi, de alta fidelidade. Ao reconhecer a via da
fidelidade como inviável numa união entre duas pessoas, ele propôs,
em seu colóquio, um novo modelo de relacionamento.
O estranho modelo seixiano
é, pelo menos, coerente, uma vez que, ao considerar a tão propalada
fraqueza da carne inerente à espécie humana como um todo,
independente de gênero, assume seus efeitos e dispensa a fidelidade
em ambos os lados da relação. Pela sua visão, melhor assumir suas
limitações do que colocar panos quentes apenas na pulada de cerca
masculina. A liberdade que ele pede em Medo da chuva, oferece
em A maçã. Não se trata de ser adepto, tampouco de aprovar,
muito menos de recomendar a aplicação de sua teoria, qual seja a de
sair por aí a comer maçã na chuva, mas há que se admitir a lógica
de seu raciocínio.
Em Medo da chuva,
ele constata que, ao se prender exclusivamente a alguém, como pedras
imóveis na praia, deixa-se de viver várias outras possibilidades de
amores – afinal, quem não está na chuva é pra não se molhar. Ao
mesmo tempo, reflete que o segredo da vida e da felicidade está em
perder o medo da chuva e assumir-se incapaz de amar apenas uma vez e
de cumprir as juras de amor eterno, feitas ao pé do altar.
Em A maçã, ele
também assume o desgaste provocado por uma relação biunívoca e,
ao admitir que o amor só dura em liberdade, aceita, também,
libertar, não sem sofrimento, a pessoa amada. Por essa linha de
raciocínio, em se abolindo expectativas inalcançáveis e recíprocas
de fidelidade, evitar-se-ia, também, as consequentes frustrações.
As duas canções, ora são
complementares - com enfoques na impossibilidade de se amar apenas
uma vez (Medo da chuva) ou apenas um de cada vez (A maçã)
-, ora parecem dialogar uma com a outra, em harmonia e sintonia
perfeitas. Mesmo sem entrar no mérito do que ambas apregoam, a
coerência de ideias entre uma e outra letra é perceptível, como
nas duas estrofes a seguir:
“É pena que você
pense que eu sou seu escravo / Dizendo que eu sou seu marido e não
posso partir / Como as pedras imóveis na praia eu fico ao seu lado
sem saber / Dos amores que a vida me trouxe e eu não pude viver”
(Medo da chuva).
“Se eu te amo e tu me
amas / E outro vem quando tu chamas / Como poderei te condenar? /
Infinita tua beleza / Como podes ficar presa / Que nem santa num
altar?” (A maçã).
A diferença de
abordagem da infidelidade masculina perante a feminina é histórica
e alimentada por simplificações estereotípicas bem comuns - do
tipo homem sujeito, mulher objeto ou homem quer sexo, mulher quer
dinheiro -, exploradas, inclusive, pela mídia. Em contraponto a tal
raciocínio, a teoria do maluco beleza, pelo menos, tira da mulher o
exclusivo papel de fiel da balança e diminui, com equidade, o peso
dessa fidelidade entre as duas partes. O ideal, porém, e sempre, é cada
um escolher uma e apenas uma maçã, a mais madura ou a que mais lhe
aprouver e não entrar num relacionamento apenas para passar uma
chuva.
* Medo da chuva (Raul Seixas / Paulo Coelho)
É pena que você pense
que eu sou seu escravo
Dizendo que eu sou seu
marido e não posso partir
Como as pedras imóveis na
praia eu fico ao seu lado sem saber
Dos amores que a vida me
trouxe e eu não pude viver
Eu perdi o meu medo, meu
medo, meu medo da chuva
Pois a chuva voltando pra
terra traz coisas do ar
Aprendi o segredo,
segredo, segredo da vida
Vendo as pedras que choram
sozinhas no mesmo lugar
Eu não posso entender
tanta gente aceitando a mentira
De que os sonhos desfazem
aquilo que o padre falou
Porque quando eu jurei meu
amor eu traí a mim mesmo, hoje eu sei
Que ninguém nesse mundo é
feliz tendo amado uma vez, uma vez
Eu perdi o meu medo, meu
medo, meu medo da chuva
Pois a chuva voltando pra
terra traz coisas do ar
Aprendi o segredo,
segredo, segredo da vida
Vendo as pedras que choram
sozinhas no mesmo lugar
** A maçã (Raul
Seixas / Paulo Coelho)
Se esse amor
Ficar entre nós dois
Vai ser tão pobre amor
Vai se gastar
Se eu te amo e tu me amas
Um amor a dois profana
O amor de todos os mortais
Porque quem gosta de maçã
Irá gostar de todas
Porque todas são iguais
Se eu te amo e tu me amas
E outro vem quando tu
chamas
Como poderei te condenar?
Infinita tua beleza
Como podes ficar presa
Que nem santa no altar?
Quando eu te escolhi
Para morar junto de mim
Eu quis ser tua alma
Ter seu corpo, tudo enfim
Mas compreendi
Que além de dois existem
mais
Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade
Sofro, mas eu vou te
libertar
O que é que eu quero
Se eu te privo
Do que eu mais venero
Que é a beleza de deitar?