No litoral ou no sertão, a realidade pode ser dura ou não. Seja
onde e como for, a música é uma das melhores formas de mitigar
tristezas e catalisar alegrias. Acolhe nas horas tristes, contagia
nos momentos alegres. E em se tratando de música do interior (do ser
e do estar), poucos músicos conseguiram ser tão igualmente
proficientes quanto o mestre Luiz Gonzaga e seus parceiros. Neste ano
em que se comemora o centenário de seu nascimento, ele tem sido,
merecidamente, lembrado e reverenciado. Desafortunadamente, o ano
coincide com a maior seca das últimas décadas no nordeste do país
e, ainda que nesse aspecto de forma triste, a desdita da seca
faz-nos, uma vez mais, lembrar das canções do rei do baião e de
outros compositores nordestinos.
Patativa do Assaré narrou o drama do sertanejo, o exílio forçado e
a saudade da terra natal de forma comovente em canções como Vaca Estrela e boi Fubá: “Hoje nas terra
do sul, longe do torrão natá / Quando eu vejo em minha frente uma
boiada passar / As água corre dos óio, começo logo a chorar /
Lembro minha vaca Estrela e o meu lindo boi Fubá / Com saudade do
Nordeste, dá vontade de aboiar” e Triste partida*: “Se
arguma notícia das banda do norte / Tem ele por sorte o gosto de
ouvir / Lhe bate no peito saudade de móio / E as água nos óio
começa a cair”.
A fé está presente em algumas canções, de temas igualmente
associados aos infortúnios que assolam o sertão: Meu Cariri (Rosil Cavalcanti / Dilu Melo) - “No
meu Cariri / Quando a chuva não vem / Não fica lá ninguém /
Somente Deus ajuda”, Último pau-de-arara (Venâncio / Corumba / José
Guimarães) - “Enquanto a minha vaquinha / Tiver o couro e o
osso / E puder com o chocalho / Pendurado no pescoço / Eu vou
ficando por aqui / Que Deus do céu me ajude / Quem sai da terra
natal / Em outros cantos não para / Só deixo o meu Cariri / No
último pau-de-arara” - e Súplica cearense (Gordurinha / Nelinho) - “Senhor,
eu pedi para o sol se esconder um tiquinho / Pedi pra chover, mas
chover de mansinho / Pra ver se nascia uma planta no chão / Oh!
Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe / Eu acho que a
culpa foi / Desse pobre que nem sabe fazer oração”.
Dentre as letras de canções que narram o martírio do sertanejo
diante da seca, há aquelas que, mesmo retratando de forma fiel o
drama, encerram mensagens de esperança e otimismo, muitas delas
compostas por Gonzaga e seus parceiros. É o caso dos versos finais
da pungente Asa branca (com Humberto Teixeira) - “Quando
o verde dos teus olhos / Se espalhar na plantação / Eu te asseguro
não chore não, viu / Que eu voltarei, viu, meu coração” -,
os quais sugerem a esperança do retorno (à terra natal e aos braços
da amada), concretizada em A volta da asa branca**
(com Zé Dantas).
Os brasileiros do litoral, nordestinos em particular, ao mesmo tempo
em que possuem uma visão distanciada e vivem realidade distinta
daquela encontrada no sertão, tem laços afetivos que os unem àquela
região, reforçados por meio da música (e da literatura), a qual
externa tanto o fascínio pela beleza do lugar ou o jeito de sua
gente, quanto a identificação com suas dificuldades. Seguindo uma
trilha sonora, as coisas do sertão correm pro mar, assim como o
riacho do navio.
O poeta português Fernando Pessoa, um retirante de alma, em um de
seus poemas, fala da necessidade de estar fora de si: “Sou um
evadido. Logo que nasci, fecharam-me em mim. Ah, mas eu fugi”.
Esse mesmo espírito, essa fuga do interior (do ser) – afora as
ligações afetivas - é o que conduz o peixe urbano nordestino pela
trilha contrária, rumo ao interior (do estar), saindo do mar pro
riacho do navio.
É assim que nós, meros habitantes das cidades grandes, retirantes
de alma, ficamos aparvalhados e embevecidos com comparações,
analogias e metáforas dignas de mestre, que ninguém das terras
civilizadas faria com tanta perfeição, simplicidade e precisão,
como: “Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó, a
malota era um saco e o cadeado era um nó”, “Automóvel lá
nem se sabe se é homem ou se é mulher”, “Tua saia,
Bastiana, termina muito cedo, tua blusa, Bastiana, começa muito
tarde”. É isso, falar mais o quê?
* Triste partida (Patativa do Assaré)
** A volta da asa branca (Luiz Gonzaga / Zé Dantas)
Já faz três noites que pro norte relampeia
E a asa branca ouvindo o ronco do trovão
Já bateu asas e voltou pro meu sertão
Ai, ai, eu vou me embora, vou cuidar da prantação
A seca fez eu desertar da minha terra
Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva pr'esse sertão sofredor
Sertão das muié séria, dos home trabaiador
Rios correndo as cachoeira tão zoando
Terra moiada, mato verde, que riqueza
E a asa branca tarde canta, que beleza
Ai, ai, o povo alegre, mais alegre a natureza
Sentindo a chuva, me arrecordo de Rosinha
A linda flor do meu sertão pernambucano
E se a safra não atrapaiá meus prano
Que é que há, oh seu vigário, vou casar no fim do ano