14.9.07
Uma vez outra vez
A canção “Outra Vez”*, vez por outra regravada no Brasil e no exterior, embora pareça retratar o fim de um relacionamento amoroso entre um casal, na verdade foi feita pela compositora Isolda, aos 20 anos, para seu irmão, o cantor e também compositor Milton Carlos, que morreu em um acidente de carro, com apenas 22 anos, em 1976. Roberto Carlos, principal intérprete da dupla, gravou a música, que se tornou um dos maiores sucessos de sua carreira, em seu LP de 1977, um de seus melhores discos.
Sobre o trágico episódio e a música, Isolda comenta, em seu site oficial: “Acho que minha vida se divide em antes e depois desse dia. Pensei em voltar a estudar, em tomar outro rumo, mas no meio dessa tempestade encontrei vários amigos que me abrigaram, emocionalmente, e mesmo sem perceber continuei fazendo sozinha, o que sempre fiz desde menina. Brincar de fazer músicas. Desse momento em diante, sem mais o meu amigo para brincar comigo. Foi assim que fiz, numa madrugada, uma música desprovida de qualquer ambição futura, uma confidência sincera: ‘Outra vez’. Gravei essa canção numa fita entre outras e entreguei para Roberto Carlos”.
Isolda e Milton Carlos começaram a carreira ainda adolescentes, participando de festivais, comuns à época, cantando como backing vocals até que, em 1970, após Milton Carlos lançar seu primeiro LP, começaram a receber pedidos de músicas de outros cantores. Em 1977, foi lançado o último trabalho do cantor e compositor, de um total de quatro. Sua habilidade (e da irmã) em compor boas músicas com tão pouca idade impressiona, assim como sua bela voz meio andrógina, conhecida pela interpretação de canções suas e de outros compositores, como “Memórias do Café Nice” (“Ai que saudade me dá...”).
O ano de 1973 foi o mais importante da carreira dos dois irmãos. Na ocasião, Roberto Carlos gravou a primeira música deles, “Amigos, amigos”, que abriu as portas para a dupla. Também nesse ano, Milton Carlos gravou “Samba Quadrado”, uma de suas canções mais conhecidas (“Eu fiz um samba quadrado pra você voltar...”). A partir daí, bateram ponto nos discos de Roberto, com “Jogo de Damas” em 1974, “Elas por elas” em 1975, “Pelo avesso” e “Um jeito estúpido de te amar” (também gravada por Maria Bethânia no disco “Pássaro da manhã”) em 1976. Com a morte do irmão, Isolda continuou a seqüência com “Outra Vez” em 1977, “Tente esquecer” em 1978 e algumas outras na década de 80.
Isolda, que sempre se ateve à carreira de compositora, só agora, aos 50 anos, lançou seu primeiro trabalho como cantora, “Tudo exatamente agora”, com músicas inéditas e, claro, “Outra Vez” como exceção. Entre as inéditas, uma parceria antiga com o irmão, “Voz Ativa” e outra homenagem a ele, “Chorando”. Lançou, também, o livro “Você também faz músicas”, com orientações sobre composição musical.
“Outra vez” tem uma visão diferente, positiva e otimista da perda que lembra “Drão”, de Gilberto Gil, feita para sua ex-esposa, Sandra, por ocasião da separação dos dois, visão essa que as torna especialmente bonitas. Enquanto esta fala de um amor que, como um grão, tem que morrer pra germinar, naquela o amor gera como fruto as lembranças e através destas permanece.
Além da versão de Roberto Carlos para a música de Isolda, merecem destaque a gravação de Maria Bethânia, em seu disco “As canções que você fez pra mim”, de 1993, apenas com canções de Roberto e Erasmo e a interpretação marcante de Simone, em seu não menos marcante disco “Pedaços”, de 1979, no qual ela gravou, também, “Sob medida” e “Pedaço de mim” (Chico Buarque), “Começar de novo” (Ivan Lins/Vítor Martins) e o hino da anistia, “Tô voltando” (Maurício Tapajós/Paulo César Pinheiro), mas isso é uma outra história, fica pra outra vez...
* Outra vez (Isolda)
Você foi o maior dos meus casos
De todos os abraços o que eu nunca esqueci
Você foi dos amores que eu tive
O mais complicado e o mais simples pra mim
Você foi o melhor dos meus erros
A mais estranha história que alguém já escreveu
E é por essas e outras
Que a minha saudade faz lembrar de tudo outra vez
Você foi a mentira sincera
Brincadeira mais séria que me aconteceu
Você foi o caso mais antigo
O amor mais amigo que me apareceu
Das lembranças que eu trago na vida
Você é a saudade que eu gosto de ter
Só assim sinto você bem perto de mim
Outra vez
Esqueci de tentar te esquecer
Resolvi te querer por querer
Decidi te lembrar quantas vezes
Eu tenha vontade sem nada perder
Ah... você foi toda a felicidade
Você foi a maldade que só me fez bem
Você foi o melhor dos meus planos
E o maior dos enganos que eu pude fazer
Das lembranças que eu trago na vida
Você é a saudade que eu gosto de ter
Só assim sinto você bem perto de mim
Outra vez
15.8.07
O controverso e a descanção
“A união de duas criaturas maravilhosas, mas com cabeças completamente diferentes, foi terrivelmente prejudicial pra o que nasceu dali”. Assim o fruto dessa união, Antônio José, o inventivo e original cantor e compositor Tom Zé, tenta explicar sua existência.
Nascido em Irará, sertão baiano, Tom Zé estudou música na Universidade Federal da Bahia, em Salvador, onde também lecionou. Apesar da formação erudita, ele sempre criticou o excesso de seriedade dos músicos brasileiros e soube diluir tal erudição em boas doses de irreverência e espontaneidade. Ficou o erudito pelo não erudito. Na década de 60, conheceu os conterrâneos Caetano e Gil, com quem lançou, em 1968, o álbum “Tropicália ou Panis et Circenses”, referência do Tropicalismo. Nesse mesmo ano, venceu o festival da TV Record com a canção “São São Paulo, meu amor” e lançou seu primeiro trabalho individual, com seu próprio nome no título.
Nos anos 70, continuou seguindo por trilhas alternativas e controversas, que provocaram seu afastamento involuntário da mídia, mesmo tendo produzido, então, trabalhos considerados inovadores como “Estudando o samba”, ou talvez por isso mesmo. Na década seguinte, lançou apenas um disco, “Nave Maria”, até que foi apresentado ao mundo pelo músico David Byrne, líder da banda americana Talking Heads que, em 1990, lançou a coletânea “The best of Tom Zé”. Depois desse debeste, nos anos que se seguiram, o cantor voltou a lançar discos com mais freqüência, bem como a ter seu valor reconhecido também no Brasil.
Nessa época, foi responsável por um dos melhores momentos da história do festival Abril pro Rock, no Recife, onde se apresentou em total empatia com o público, de início surpreendendo, depois envolvendo e por fim contagiando a platéia presente, jovem em sua maioria, com a criatividade de suas canções, a versatilidade de suas interpretações e a originalidade de suas mugangas e trejeitos multimídia.
Essa sua costumeira criatividade pode ser percebida de diversas maneiras em seu trabalho. Em títulos de canções como "Jimi renda-se" ou "Conto de fraldas", em letras como “Companheiro Bush” (“Se você sabe quem vendeu aquela bomba pro Iraque, desembuche. Eu desconfio que foi o Bush”) ou “Augusta, Angélica e Consolação” (“Augusta, graças a Deus, entre você e a Angélica eu encontrei a Consolação que veio olhar por mim e me deu a mão”), na utilização de instrumentos inventados por ele, em sua postura no palco e sobretudo no motivo condutor de suas obras.
Em seu disco “Jogos de armar – faça você mesmo”, de 2000, um CD auxiliar apresenta as canções como produtos de prateleira, não fechados, ou peças de um jogo de armar, que podem ser remontadas pela junção de fragmentos de arranjos, letras e músicas do CD principal. Para facilitar as experiências, combinações e reaproveitamentos, tais fragmentos são dispostos separadamente no CD auxiliar. Um lego musical que virou legado.
No elogiado LP “Estudando o samba”, lançado em 1976, quase todas as canções têm títulos monossilábicos: Mã, Toc, Tô, Vai, Ui, Doi, Mãe, Hein?, Só, Se. A última faixa, “Índice”, reúne todas essas palavras em uma só letra, fechando o repertório monótono, em que a mudança de Tom ocorre apenas na faixa “A felicidade”. Em “Defeito de fabricação” (1999), as canções são apresentadas como Defeito 1, Defeito 2, etc., enquanto em “Danç-Êh-Sá - Pós-Canção/Dança dos Herdeiros do Sacrifício/7 Caymianas para o Fim da Canção” (2006), elas são definidas como pós-canções ou descanções.
Algumas dessas armações do inventivo Tom Zé podem ser vistas no documentário “Fabricando Tom Zé”, de Décio Matos Júnior, eleito melhor documentário nos festivais de cinema do Rio de Janeiro e de São Paulo, pelo júri popular. O filme mostra cenas de palco e bastidores de suas apresentações em uma turnê pela Europa, em 2005, intercaladas por depoimentos do próprio Tom Zé, de sua esposa, Neusa Martins, de Arnaldo Antunes, David Byrne, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros.
Em um show é vaiado, em outros ovacionado e tudo é mostrado. Comenta sua mágoa com os conterrâneos Caetano Veloso e Gilberto Gil, que teriam se afastado dele após o movimento tropicalista e a volta do exílio, em sua época de reclusão involuntária, bem como um episódio ocorrido num carnaval de Salvador que homenageou o Tropicalismo. Segundo ele, filme só com coisa boa é um porre. Modesto, afirma que o fato de ser um péssimo músico ajudou-o a ficar à vontade pra experimentar, fugir aos padrões e fazer o que quisesse. Explicar pra confundir, confundir pra esclarecer. De fato, a cartilha por que ele reza é a do improviso, do jogo de palavras. Não tem papas na língua, seu oratório é outro e sua oratória idem.
Até mesmo batendo boca, o tom é o mesmo. Em certo episódio retratado no documentário, durante um ensaio, sem saber que sua equipe estava filmando, soltou um “vá pra porra!” em alto e bom som a um responsável pela equipe de som do festival de Montreux, na Suíça, por conta de sua má qualidade, sem se preocupar com o que ele entenderia com isso. Comentando o incidente depois, denunciou a má vontade e a discriminação que sofrem as nações subdesenvolvidas por parte dos países que, segundo ele, têm dinheiro mas não têm nosso talento e criatividade, nossos defeitos de fabricação, made in Brazil.
6.7.07
Roberto: o livro-arbítrio e as canções que ele fez pra nós
O episódio da interrupção das vendas do livro “Roberto Carlos em detalhes” (Paulo César Araújo – Editora Planeta), biografia não autorizada do cantor e compositor, tem gerado polêmicas, debates e comentários comparativos entre biografias autorizadas ou não. É comum a idéia de que as primeiras têm mais valor, pelo aval e acompanhamento que recebem do biografado, afinal, ninguém melhor do que você mesmo para saber detalhes de sua vida e contar a sua história. Analisando melhor, percebe-se que trazem, também, o vício de os autores só narrarem aspectos positivos do biografado, ao contrário das não autorizadas.
Em depoimento ao programa Fantástico, da Rede Globo, Roberto Carlos revelou que questiona, a princípio, o porquê de uma biografia não autorizada, quando ele está vivo e poderia tê-la autorizado. Ele mesmo deu a resposta, logo em seguida, quando, ao ser questionado se autorizaria a biografia, caso tivesse sido consultado, disse que não. Na mesma entrevista, afirmou que não sabe ainda o que vai fazer para se livrar do livro, mas que nunca disse que iria queimá-los (que bom, não pretende queimar sua biografia). Em sua já prometida versão autorizada, certamente, não vai constar esse episódio.
Ele não costuma se expor e é discreto, na medida do possível, sendo o direito à privacidade um dos argumentos que usou em sua defesa: “Há limite entre o que é de interesse público e o que é invasão de privacidade”, afirmou. Em se tratando de pessoas públicas, porém, tal limite é sutil. É fato que pouco vemos notícias pessoais dele na mídia, mas mesmo isso pode ser visto como controverso, pois, se por um lado sua segunda esposa, a atriz Myrian Rios, quase largou a carreira quando se casou com ele, por outro, sua relação com a última, Maria Rita, foi bastante explorada pela mídia, talvez à sua revelia, talvez por ele não se encontrar mais no auge da carreira...
Outro argumento que utiliza a seu favor é que houve uma conciliação, antes mesmo de uma decisão judicial, entre ele e a Editora Planeta. Nesse acordo, ficou decidido que a editora não mais publicaria a obra e recolheria os exemplares que já se encontrassem nas livrarias, entregando-os ao cantor que, por sua vez, abriria mão de possíveis indenizações. A versão do autor do livro para esse acordo é que não havia outra saída, numa briga entre forças desproporcionais, uma vez que sobre todas as leis ainda prevalece, em geral, a lei do mais forte (e acima desta, a Lady Laura). Os advogados da editora acharam bastante provável a hipótese de perda da ação, a qual implicaria em indenizações de alto valor.
Num último recurso, Paulo César Araújo propôs abrir mão de direitos autorais sobre a obra, para descartar possíveis acusações de interesses financeiros. Dançando conforme a música e mostrando não ter o rei na barriga (na mão, talvez), propôs, ainda, que Roberto Carlos especificasse que partes do texto do livro não aprovara, para que fossem retiradas ou modificadas, mas o cantor não aceitou, alegando que, isso sim, caracterizaria censura.
Na década de 80, por suas posições religiosas, Roberto apoiou a censura ao filme “Je vous salue Marie” (de Jean-Luc Godard), condenado pela igreja católica, cuja exibição foi proibida em vários países do mundo, inclusive no Brasil, no governo José Sarney. Tal censura gerou, à época, uma grande e polêmica discussão, que só aumentou o interesse pelo filme, fato que se repete agora, com o livro, que pode ser encontrado facilmente na internet, para download.
Ele é conservador, não se pode negar. Seus discos dos anos 70 são uma receita precisa e imutável de canções religiosas, românticas, composições de Isolda e Milton Carlos, Maurício Duboc e Carlos Colla, além das habituais parcerias com Erasmo Carlos. Bons tempos em que se esperava o lançamento do LP do “rei” ao final de cada ano, ocasião em que algumas rádios tocavam todas as suas faixas, em seqüência e em primeira mão, numa época em que a pirataria era limitada a fitas cassetes.
Difícil mudar, porém, num período em que surgiram seus melhores trabalhos, num estilo pós-jovem-guarda iniciado no final da década anterior, com pérolas como “As canções que você fez pra mim”, “As curvas da estrada de Santos” e “Sua estupidez”. Suas preocupações ecológicas também estiveram sempre presentes e bem representadas em seu trabalho, em canções como “O progresso”, “O ano passado” e “As baleias”*.
Ainda que não goste de falar - ou que falem - de sua vida privada, Roberto Carlos sempre caprichou em canções que contam sua história. Difícil não gostar de “O divã”, “Traumas”, “As flores do jardim da nossa casa”, “Jovens tardes de domingo”, “Fera ferida”, “Aquela casa simples” ou das canções-tributo “Amigo”, “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos” (para Caetano Veloso, à época de seu exílio em Londres), “Minha tia”, “Meu querido, meu velho, meu amigo” e “Lady Laura”. Num mundo carente de sensibilidade, sua mensagem é importante. Lendo ou não o livro, ouvindo ou não os discos, o fato é que ele sempre nos avisou: “Não adianta nem tentar me esquecer...”.
* As baleias (Roberto Carlos / Erasmo Carlos)
Não é possível que você suporte a barra
De olhar nos olhos do que morre em suas mãos
E ver no mar se debater em sofrimento
E até sentir-se um vencedor nesse momento
Não é possível que no fundo do seu peito
Seu coração não tenha lágrimas guardadas
Pra derramar sobre o vermelho derramado
No azul das águas que você deixou manchadas
Seus netos vão te perguntar em poucos anos
Pelas baleias que cruzavam oceanos
Que eles viram em velhos livros ou nos filmes dos arquivos
Dos programas vespertinos de televisão
O gosto amargo do silêncio em sua boca
Vai te levar de volta ao mar e à fúria louca
De uma cauda exposta aos ventos em seus últimos momentos
Relembrada num troféu em forma de arpão
Como é possível que você tenha coragem
De não deixar nascer a vida que se faz
Em outra vida que sem ter lugar seguro
Te pede a chance de existência no futuro
Mudar seu rumo e procurar seus sentimentos
Vai te fazer um verdadeiro vencedor
Ainda é tempo de ouvir a voz dos ventos
Numa canção que fala muito mais de amor
15.6.07
Homenagem ao malandro
Destacar algum disco ou canção da obra de Chico Buarque de Hollanda é de uma enorme injustiça com os demais. Entre Madalena ir pro mar e Renata Maria sair dele, muitas águas rolaram e o garoto que viu a banda passar cantando coisas de amor está, agora, completando 63 anos de vida, não apenas de idade. Aos oito, de partida para a Itália com a família, em carta a sua avó, previu o futuro que o destino lhe reservava, com as seguintes palavras: “Vovó, você já está muito velha e quando eu voltar eu não vou ver você mais, mas eu vou ser cantor de rádio e você poderá ligar o rádio do Céu, se sentir saudades”.
Como querendo demarcar espaço, seu primeiro disco tinha como título seu próprio nome, assim como os que se seguiram, os volumes 2, 3 e 4. Trabalhos de alto nível, dignos de compositores experientes, mas impressionantemente saídos de uma cabeça de vinte e poucos anos, com várias músicas que viraram clássicos da MPB. Se apenas esses seus quatro primeiros discos já o credenciavam como um dos melhores compositores brasileiros, sua obra ao longo de quatro décadas consolidou uma carreira impecável, que sempre transitou, com a mesma perfeição, tanto por canções de cunho político e social, quanto por canções românticas e líricas.
Ao mesmo tempo em que lançou esses discos no início da carreira, participou de vários festivais de música popular, freqüentes à época, vencendo, em 1966, com a canção “A banda”, e em 1968, com “Sabiá”, ironicamente (em se tratando de Chico) consideradas bem comportadas pelo público, que preferiu “Disparada” e “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, não menos belas e mais politizadas, digamos assim. Também nessa época, iniciou sua parceria com os já consagrados Tom Jobim e Vinícius de Moraes, amigos de seu pai, o historiador Sérgio Buarque: “Sabiá”, “Retrato em branco e preto” e “Pois é” (Tom Jobim – Chico Buarque) são de 1968, Gente humilde (Garoto – Vinícius de Moraes – Chico Buarque), de 1969.
Nos anos 70, suas músicas passaram a apresentar um perfil mais contundente. “Apesar de você”, lançada em um compacto simples juntamente com “Desalento” em 1970, marcou o agravamento de seus problemas com a censura, tendo sua execução proibida nas rádios. Também são dessa década os álbuns “Construção”, “Calabar”, que teve a capa censurada e o título alterado para “Chico canta”, “Sinal fechado”, de título sugestivo, que contava com apenas uma música de sua autoria, disfarçada por pseudônimos e “Meus caros amigos”, além de “Quando o carnaval chegar”, com a trilha sonora do filme homônimo, “Caetano e Chico juntos e ao vivo” e “Chico Buarque e Maria Bethânia ao vivo”.
Também dessa década, fechando-a com chave de ouro, mais um disco com seu nome no título, e digno dele, que antecipava músicas que faziam parte da trilha sonora da peça “Ópera do malandro”, lançada em álbum duplo no ano seguinte, entre outras inéditas, inclusive “Cálice”, de 1973, censurada à época. Também foram liberadas pela censura e gravadas nesse disco “Apesar de você” e “Tanto mar”, que até então ele havia gravado apenas em versão instrumental, no impecável LP “Chico Buarque e Maria Bethânia ao vivo” (esqueci que não deveria destacar, os outros também são impecáveis).
Ao longo da carreira, compôs várias canções ou mesmo trilhas musicais inteiras para peças de teatro e filmes, de sua autoria ou não: “Morte e vida Severina”, “Quando o carnaval chegar”, “Roda-viva”, “Calabar”, “Gota d’água”, “Os saltimbancos”, “Ópera do malandro”, “O grande circo místico”, “Cambaio”, entre outros. Fez músicas sobre mulher, para mulher, mas sobretudo como mulher. Com açúcar, com afeto, sem açúcar, sem fantasia... Maria Bethânia conta que Mãe Menininha do Gantois ficou perplexa ao saber que um homem havia composto “Olhos nos olhos”*.
Se nos anos 70 lutou contra a ditadura, nos 80 vestiu a blusa amarela das diretas pra ver passar a evolução da liberdade, na festa do povo. A partir da década de 90, passou a alternar trabalhos como compositor e escritor, tendo lançado, desde então, os livros “Estorvo”, “Benjamim” e “Budapeste”. Em 2006, lançou o CD “Carioca”, seguido do show, que lotou os teatros por onde passou, comprovando o apreço incondicional que o cantor desperta, ainda que não tenha se rendido, nesse show, a um repertório centrado em suas músicas mais consagradas, mas sim nas composições feitas dos anos 80 em diante, incluindo todas do novo trabalho.
Chico Buarque é, realmente, um fenômeno a ser estudado. Dado o seu total domínio da arte de compor, é possível que sua cadeia de DNA seja um pentagrama, com suas canções em partituras e seu genoma esteja refletido em sua obra, clone de nossos sentimentos.
* Olhos nos olhos (Chico Buarque)
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mas nem porque
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
'Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz
Como querendo demarcar espaço, seu primeiro disco tinha como título seu próprio nome, assim como os que se seguiram, os volumes 2, 3 e 4. Trabalhos de alto nível, dignos de compositores experientes, mas impressionantemente saídos de uma cabeça de vinte e poucos anos, com várias músicas que viraram clássicos da MPB. Se apenas esses seus quatro primeiros discos já o credenciavam como um dos melhores compositores brasileiros, sua obra ao longo de quatro décadas consolidou uma carreira impecável, que sempre transitou, com a mesma perfeição, tanto por canções de cunho político e social, quanto por canções românticas e líricas.
Ao mesmo tempo em que lançou esses discos no início da carreira, participou de vários festivais de música popular, freqüentes à época, vencendo, em 1966, com a canção “A banda”, e em 1968, com “Sabiá”, ironicamente (em se tratando de Chico) consideradas bem comportadas pelo público, que preferiu “Disparada” e “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, não menos belas e mais politizadas, digamos assim. Também nessa época, iniciou sua parceria com os já consagrados Tom Jobim e Vinícius de Moraes, amigos de seu pai, o historiador Sérgio Buarque: “Sabiá”, “Retrato em branco e preto” e “Pois é” (Tom Jobim – Chico Buarque) são de 1968, Gente humilde (Garoto – Vinícius de Moraes – Chico Buarque), de 1969.
Nos anos 70, suas músicas passaram a apresentar um perfil mais contundente. “Apesar de você”, lançada em um compacto simples juntamente com “Desalento” em 1970, marcou o agravamento de seus problemas com a censura, tendo sua execução proibida nas rádios. Também são dessa década os álbuns “Construção”, “Calabar”, que teve a capa censurada e o título alterado para “Chico canta”, “Sinal fechado”, de título sugestivo, que contava com apenas uma música de sua autoria, disfarçada por pseudônimos e “Meus caros amigos”, além de “Quando o carnaval chegar”, com a trilha sonora do filme homônimo, “Caetano e Chico juntos e ao vivo” e “Chico Buarque e Maria Bethânia ao vivo”.
Também dessa década, fechando-a com chave de ouro, mais um disco com seu nome no título, e digno dele, que antecipava músicas que faziam parte da trilha sonora da peça “Ópera do malandro”, lançada em álbum duplo no ano seguinte, entre outras inéditas, inclusive “Cálice”, de 1973, censurada à época. Também foram liberadas pela censura e gravadas nesse disco “Apesar de você” e “Tanto mar”, que até então ele havia gravado apenas em versão instrumental, no impecável LP “Chico Buarque e Maria Bethânia ao vivo” (esqueci que não deveria destacar, os outros também são impecáveis).
Ao longo da carreira, compôs várias canções ou mesmo trilhas musicais inteiras para peças de teatro e filmes, de sua autoria ou não: “Morte e vida Severina”, “Quando o carnaval chegar”, “Roda-viva”, “Calabar”, “Gota d’água”, “Os saltimbancos”, “Ópera do malandro”, “O grande circo místico”, “Cambaio”, entre outros. Fez músicas sobre mulher, para mulher, mas sobretudo como mulher. Com açúcar, com afeto, sem açúcar, sem fantasia... Maria Bethânia conta que Mãe Menininha do Gantois ficou perplexa ao saber que um homem havia composto “Olhos nos olhos”*.
Se nos anos 70 lutou contra a ditadura, nos 80 vestiu a blusa amarela das diretas pra ver passar a evolução da liberdade, na festa do povo. A partir da década de 90, passou a alternar trabalhos como compositor e escritor, tendo lançado, desde então, os livros “Estorvo”, “Benjamim” e “Budapeste”. Em 2006, lançou o CD “Carioca”, seguido do show, que lotou os teatros por onde passou, comprovando o apreço incondicional que o cantor desperta, ainda que não tenha se rendido, nesse show, a um repertório centrado em suas músicas mais consagradas, mas sim nas composições feitas dos anos 80 em diante, incluindo todas do novo trabalho.
Chico Buarque é, realmente, um fenômeno a ser estudado. Dado o seu total domínio da arte de compor, é possível que sua cadeia de DNA seja um pentagrama, com suas canções em partituras e seu genoma esteja refletido em sua obra, clone de nossos sentimentos.
* Olhos nos olhos (Chico Buarque)
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mas nem porque
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
'Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz
25.5.07
O homem velho
Caetano Veloso pode ser classificado de diversas maneiras, segundo diversos critérios, muitas vezes situando-se em mais de uma categoria ou em todas elas. O certo é que ele está sempre se reinventando, ousando, polemizando, desafiando rótulos e definições, fugindo aos padrões, abrindo caminhos alternativos, coerente apenas consigo mesmo e é isso que o torna tão bom. Numa análise simplista, particular e sem pretensões acadêmicas, diria que uma das diferenças entre ele e Chico Buarque, quanto às composições, é que deste, Maria Bethânia gravaria tudo, dele, nem tudo, o que pode ser enxergado como mérito ou não.
Seguindo esse raciocínio, as canções do novo disco de Caetano, Cê (como de outros também), poderiam ser divididas entre aquelas que Bethânia gravaria e as que ela não gravaria. Gosto de ambas porque gosto de ambos, mas prefiro as primeiras. É inimaginável vê-la cantando, por exemplo, “Rocks”, de um linguajar jovem demais para seu gosto (mas cê foi mesmo rata demais... você foi mor rata comigo), ou “Outro”, “Deusa urbana” e “Homem”, explícitas demais para ele. Por outro lado, a dramaticidade de “Não me arrependo” (nada, nem que a gente morra, desmente o que agora chega à minha voz) e “Minhas lágrimas” (... nada serve de chão onde caiam minhas lágrimas) cairia bem na sua voz.
Devido ao estilo mais roqueiro das músicas e dos arranjos de Cê, algo que o próprio cantor tem afirmado, alguns críticos têm-no comparado com Velô, seu disco lançado em 1984. Há semelhanças nos títulos dos dois discos. Cê tanto pode ser uma abreviatura do pronome você, usada, inclusive, em algumas letras das faixas do disco, como também uma referência à letra inicial de seu nome. Velô, por sua vez, pode ser uma abreviatura de velocidade (A letra de “Língua”, desse disco, inclusive, traz o termo neste sentido: “Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmen Miranda”), mas também do seu sobrenome, Veloso.
Os primeiros significados, de abreviaturas de palavras, denotam uma linguagem coloquial, uma forma jovial de expressão, que se alinha com o estilo mais jovem dos discos, enquanto os que se referem ao seu nome dão-lhes um caráter mais pessoal. Todas as canções de Cê, e quase todas de Velô, são de autoria de Caetano, que parece ter brincado com esses dois significados dos títulos, em sintonia com as semelhanças entre os dois trabalhos.
Outra semelhança é a nova banda que o acompanha em Cê, formada por jovens e competentes músicos, assim como era a Banda Nova, que o acompanhava em Velô. Tais escolhas, porém, parecem ser apenas conseqüência do espírito inovador que sempre o norteou, bem como da sonoridade que o cantor almejava com ambos os trabalhos, o que, no fundo, remete à semelhança anterior.
A comparação entre os dois discos deve ser considerada elogiosa, pois Velô, de 1984, foi um de seus melhores trabalhos, de canções marcantes como “Podres poderes”, “O quereres”, a citada “Língua” e “Shy moon”, em que ele interagia com o rock brasileiro que assolava o país, ao dividir os vocais com o cantor Ritchie. Nesse disco, também, ele regravou “Nine out of ten”, do álbum Transa, de sua fase pós-exílio na Inglaterra e inovou ao musicar o poema “Pulsar”, de Augusto de Campos, com uma melodia que varia entre tons graves e agudos, de acordo com o som das vogais que formam as sílabas de seus versos, ora abertas, ora fechadas, num ritmo constante, pulsante. Melodia concreta para um poema concreto.
É de Velô, também, uma das mais bonitas canções de Caetano, “O homem velho”*, não muito conhecida, mas à altura dos homenageados a quem ele a dedicou, com as seguintes palavras, no encarte do disco: “À memória do meu pai, a Mick Jagger e a Chico Buarque, que agora tem 40 anos, mas aos 20 fez uma canção lindíssima sobre o tema”, numa referência a não menos bonita “O velho”**, do álbum Chico Buarque de Hollanda – Vol. 3, de 1968. A música de Caetano traduz o pesar e o prazer do que significa ser um homem velho, numa descrição que bem pode, agora, ser aplicada ao próprio autor.
Voltando ao Cê da questão, o repertório do show oscila entre as músicas desse novo disco e outras de várias fases de sua carreira, com arranjos adaptados ao acompanhamento enxuto de guitarra, baixo e bateria, como “Sampa” e “Cajuína”. Entre as novas canções, dois bons momentos da apresentação são as interpretações de “Odeio”, que Caetano canta duas vezes, e “O herói”, de letra panfletária, no estilo de “Haiti” e “Podres poderes” (nasci num lugar que virou favela, cresci num lugar que já era ... por um triz não sou bandido).
A iluminação, nos momentos mais agitados do show, faz o palco parecer uma pista de dança, contagiando a platéia. Também visível, e bonito de se ver, é a integração deste grande homem velho com os jovens músicos que o acompanham, Pedro Sá na guitarra, Ricardo Dias Gomes no baixo e Marcelo Callado na bateria.
Entre as músicas que não fazem parte do novo CD, além de “O homem velho”, Caetano interpreta outra de suas melhores composições: “Desde que o samba é samba”, digna de Pixinguinha, Cartola ou qualquer dos grandes compositores do nosso país. Depois de ter feito músicas como essas, e tantas outras, Caetano pode tudo. E Cê não é tudo.
P.S.: Parabéns a uma das mães mais eficientes para a MPB, e das suas principais credoras, dona Canô, que em 2007 completa 100 anos (Cê, em romanos).
Leia também: Paul McCartney & Chico Buarque: sonhos sonhos são (Mário Montaut)
* O homem velho (Caetano Veloso)
O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais
A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock’n’roll
As coisas migram e ele serve de farol
A carne, a arte arde, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve traz o olor fugaz
Do sexo das meninas
Luz fria, seus cabelos têm tristeza de néon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom
Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal
** O velho (Chico Buarque)
O velho sem conselhos
De joelhos
De partida
Carrega com certeza
Todo o peso
Da sua vida
Então eu lhe pergunto pelo amor
A vida inteira, diz que se guardou
Do carnaval, da brincadeira
Que ele não brincou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nada
Só a caminhada
Longa, pra nenhum lugar
O velho de partida
Deixa a vida
Sem saudades
Sem dívida, sem saldo
Sem rival
Ou amizade
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me diz que sempre se escondeu
Não se comprometeu
Nem nunca se entregou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nada
Eu vejo a triste estrada
Onde um dia eu vou parar
O velho vai-se agora
Vai-se embora
Sem bagagem
Não sabe pra que veio
Foi passeio
Foi passagem
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me é franco
Mostra um verso manco
De um caderno em branco
Que já se fechou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Não
Foi tudo escrito em vão
Eu lhe peço perdão
Mas não vou lastimar
14.5.07
Nação nordestina - Parte II
Sendo a Paraíba um dos estados que produz mais cantores e compositores por metro quadrado, era natural que não ficasse de fora quando os ventos do mercado voltaram-se para o nordeste.
Zé Ramalho chegou com estilo, com letras complexas, enigmáticas, de tom profético, apocalíptico, psicodélico. Segundo ele, “música é para botar as pessoas para viajar” e seus discos, realmente, poderiam muito bem ser chamados de “discos voadores”. Como seu primeiro trabalho, um disco experimental em parceria com Lula Côrtes, Paêbirú, de pouca divulgação (escutando-o no escuro, voa-se melhor). Zé tornou-se mais conhecido do público em 1977, quando lançou um disco que trazia uma versão instrumental de “Bicho de sete cabeças” e as canções “Avôhai”* (com Patrick Moraz, do grupo inglês Yes, nos teclados), “Chão de giz” e “Vila do sossego”, alguns de seus maiores sucessos até hoje, que têm histórias interessantes, por ele reveladas em alguns depoimentos, que nos ajudam a entendê-las um pouco melhor.
“Chão de giz” foi feita para um amor platônico dele por uma mulher casada e rica, enquanto “Vila do Sossego” era a casa de praia de uma tia, em João Pessoa. “Em 73, essa casa tornou-se um ponto de encontro de artistas de João Pessoa que se reuniam para fumar um baseado, tomar umas, conversar sobre arte e outros rumos. ... O que aparece na música são citações desses encontros.” (tá explicado!), afirmou o cantor em depoimento ao poeta Jorge Salomão, em 1998. “Avôhai”, por sua vez, ele fez em homenagem ao avô que o criou, o “velho e invisível Avôhai”. Se eu tivesse ido à Vila do Sossego, gostaria de discutir com ele a letra de “Pelo vinho e pelo pão”. Seria uma metamorfose kafkaniana?
Compositor de excelentes trabalhos autorais, Zé Ramalho foi um dos compositores mais gravados por essa geração, com destaque para as interpretações marcantes de Elba Ramalho. Em um de seus melhores discos, o excelente álbum duplo “Nação Nordestina”, lançado em 2000, porém, ele assina apenas seis das vinte faixas. Nas demais, uma gama de compositores nordestinos: Luiz Gonzaga, João do Vale, Geraldo Vandré, Dominguinhos e Gilberto Gil, entre outros. Destaque para a criativa capa, inspirada em “Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, e para o encarte, com belos desenhos e todas as faixas comentadas. Produção de Robertinho do Recife.
A também paraibana Elba Ramalho começou cantando e atuando nas peças musicais “Morte e Vida Severina” e “Ópera do Malandro”, experiência que lhe proporcionou uma excelente presença de palco. Sempre identificada com suas raízes, gravou canções de vários compositores nordestinos, às vezes discos inteiros, como “Leão do Norte”, “Flor da Paraíba” (com exceção de uma faixa) e “Baioque” (deste, apenas a canção-título, de Chico Buarque, não tinha, entre os compositores, alguém da região).
Em 1984, Elba gravou a polêmica canção “Nordeste independente” (Bráulio Tavares / Ivanildo Vila Nova), uma crítica ao descaso e à discriminação sofrida pela região que, naqueles tempos, viveu o auge do coronelismo, do clientelismo, do voto de cabresto. “Já que existe no sul esse conceito / Que o nordeste é ruim, seco e ingrato / Já que existe a separação de fato / É preciso torná-la de direito”, dizia a primeira estrofe da canção, que tinha como refrão: “Imagine o Brasil ser dividido e o nordeste ficar independente”.
O baiano Moraes Moreira começou como integrante do grupo Novos Baianos, cujo primeiro disco foi lançado em 1969, partindo para carreira-solo em 1975. Nessa mesma época, conheceu Armandinho, filho de Osmar Macedo, um dos criadores do trio-elétrico, invenção que completava, então, 25 anos, “desde os tempos da velha fubica”. Este encontro foi fundamental para a definição do estilo musical de Moraes, que se tornou um exímio compositor de músicas carnavalescas, sendo seu primeiro grande sucesso a música “Pombo-correio”, feita em parceria com Dodô e Osmar.
A partir de 1978, continuou a compor belas marchinhas, afoxés e frevos, em parcerias com Fausto Nilo (“Chão da praça”, “Bloco do prazer”, “De noite e de dia”), Capinan (“Cidadão”) e Abel Silva (“Festa do interior”), carnavalizando essa turma que, com Fagner, por exemplo, compunha canções mais intimistas. Em 1981, apresentou-se no festival de Montreux, na Suíça, com Toquinho e Elba Ramalho, o que resultou num disco ao vivo. Outras belas canções suas são “Meninas do Brasil”, com Fausto Nilo, do LP “Bazar brasileiro”, de 1980 e “Lá vem o Brasil descendo a ladeira”, com Pepeu Gomes, do disco de mesmo nome, de 1979.
O ano de 1979, aliás, foi prodigioso com essa turma, todos no auge do reconhecimento artístico, lançando alguns de seus melhores trabalhos. “A Peleja do diabo com o dono do céu”, de Zé Ramalho, por exemplo, contou com acompanhamentos instrumentais de Geraldo Azevedo, Jorge Mautner, Pepeu Gomes e de sua conterrânea Cátia de França. Todas as canções eram de sua autoria, entre elas várias de suas melhores músicas: além da faixa-título, destaque para “Admirável gado novo”, “Beira-mar”, “Garoto de aluguel”, “Pelo vinho e pelo pão” e a instrumental “Agônico”, em que Zé Ramalho toca todos os instrumentos. Merece destaque também a capa, com Zé do Caixão e a atriz Xuxa Lopes.
“Frevo Mulher”, de Amelinha, contou com o mesmo respeitável elenco de compositores, em sua maioria nordestinos, em outras tantas belas canções: “Santa Tereza” (Fagner e Abel Silva), “Galope Rasante” (Zé Ramalho), “Coito das Araras” (Cátia de França) e a melhor gravação de “Dia Branco” (Geraldo Azevedo e Rocha). O mesmo pode-se dizer de “Ave de Prata”, primeiro disco de Elba Ramalho, que tinha, entre as canções, marcantes interpretações de “Não Sonho Mais”, de Chico Buarque, e “Ave de Prata”, de Zé Ramalho. Dois excelentes LP’s, que ainda não foram relançados em formato de CD.
Em “Beleza”, Fagner contou com seus parceiros e compositores habituais e com excelentes arranjos de João Donato. Sua melancolia característica permaneceu presente neste trabalho, através de sua voz, dos arranjos, das melodias e sobretudo dos versos de belas canções, como “Noturno”**, “Asas” e “Beleza”, três de seus maiores sucessos, carregadas de uma tristeza que chegava ao ápice na última faixa do disco, “Elizete”, que ele fez para sua irmã, falecida num acidente de automóvel, naquele ano.
Tantos talentos indiscutíveis, surgidos em condições as mais adversas (parafraseando Belchior, sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindos do interior), servem-nos de orgulho, ao mesmo tempo em que nos fazem refletir e questionar quantos tantos outros são desperdiçados, por falta de oportunidade, até que a gente aprenda que “ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer desse lugar um bom país” (Milton Nascimento).
* Avôhai (Zé Ramalho)
Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas, de ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde coarava sua camisa e seu alforje de caçador
Oh meu velho e invisível Avôhai
Oh meu velho e indivisível Avôhai
Neblina turva e brilhante em meu cérebro, coágulos de sol
Amanita matutina e que transparente cortina ao meu redor
Se eu disser que é meio sabido você diz que é meio pior
É pior do que planeta quando perde o girassol
É o terço de brilhante nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo da porteira
Nem também da companheira que nunca dormia só, Avôhai
O brejo cruza a poeira
De fato existe um tom mais leve na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos que amargam as pessoas que fitar
Mas que bebem sua vida sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas, cabelos de Avôhai
Na pedra de turmalina e no terreiro da usina eu me criei
Voava de madrugada e na cratera condenada eu me calei
Se eu calei foi de tristeza, você cala por calar
E calado vai ficando só fala quando eu mandar
Rebuscando a consciência com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando a carrapeta no jogo de improvisar
Entrecortando eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa pra doutor não reclamar
Avôhai, Avôhai, Avôhai
** Noturno (Graco-Caio Sílvio)
O aço dos meus olhos
E o fel das minhas palavras
Acalmaram meu silêncio
Mas deixaram suas marcas
Se hoje sou deserto
É que eu não sabia
Que as flores com o tempo
Perdem a força
E a ventania vem mais forte
Hoje só acredito
No pulsar das minhas veias
E aquela luz que havia
Em cada ponto de partida
Há muito me deixou, há muito me deixou...
Ai, coração alado
Desfolharei meus olhos
Neste escuro véu
Não acredito mais
No fogo ingênuo da paixão
São tantas ilusões
Perdidas na lembrança
Nesta estrada
Só quem pode me seguir sou eu
Sou eu, sou eu, sou eu...
3.5.07
Nação nordestina – Parte I
Sempre foi difícil para um artista nordestino, ou de qualquer outro lugar do país que não o eixo Rio-São Paulo, conseguir espaço para seu trabalho. Nos anos 70, porém, um grupo de cantores e compositores da região, oriundos em sua maioria do sertão, enfrentou o desafio de sair de sua terra natal para tentar a sorte por lá, seguindo os passos e exemplos dos mestres e conterrâneos Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, mas levando no matulão, também, a guitarra e abrindo portas para outros, que viriam depois.
Assumiram o estereótipo do nordestino, de feições agrestes, sem maquiagens nem embelezamentos artificiais, com sotaque, vozes melancólicas, fortes, ásperas, lembrando a paisagem crua e seca do sertão. Tais características marcantes, aliadas a uma notável qualidade musical, chamou a atenção da mídia e do público.
Oe elementos do grupo, apesar de dispersos geograficamente por entre os estados nordestinos, tinham forte ligação entre si. A cantora cearense Amelinha, por exemplo, começou com o conterrâneo Fagner e foi casada com Zé Ramalho. Este, por sua vez, tinha algum parentesco com Elba Ramalho e começou tocando na banda de Alceu Valença, que era amigo de Geraldo Azevedo e junto com ele iniciou a carreira. Essa união, que persistiu ao longo dos anos, produzindo importantes trabalhos, resultou, em 1996, em mais um excelente disco, "O Grande Encontro", gravado ao vivo, que reuniu Alceu, Geraldo, Elba e Zé. Em 1997 e 2000, mais dois volumes de "O Grande Encontro" foram lançados, sem a participação de Alceu Valença.
Do Ceará, Raimundo Fagner e Belchior foram os que mais conseguiram destaque, tendo recebido, no início de suas carreiras, fundamental apoio de Elis Regina que, em 1972, gravou em seu disco a canção Mucuripe, dos dois compositores, também gravada por Roberto Carlos, em 1975. Bem antes de se tornar conhecido pelo grande público em 1978, com o disco "Quem viver chorará" e a música "Revelação" (Clodô/Clésio), Fagner já havia feito excelentes trabalhos, como o disco de estréia, "O último pau-de-arara", de 1973, que contava com a participação de Nara Leão e Naná Vasconcelos, produção de Roberto Menescal e Paulinho Tapajós e arranjos de Ivan Lins.
É deste disco a música "Canteiros", feita por Fagner, baseada em poesia de Cecília Meireles (Marcha), que o tornou réu em processo movido pelas filhas da poetisa. Por decisão da justiça, o disco teve que ser relançado, com a substituição de "Canteiros" por "Cavalo ferro" (Fagner/Ricardo Bezerra) e apenas em 2000 o músico pôde regravar a canção, num álbum duplo, gravado ao vivo. O processo envolvia, também, outra canção, "Motivo", também baseada em poema de Cecília Meireles, de mesmo nome, gravada por Fagner, em 1978. Novamente, o disco foi recolhido e relançado, com a faixa "Quem me levará sou eu" (Dominguinhos/Manduka), que acabara de vencer um festival da Rede Tupi de Televisão, em substituição a "Motivo".
Fagner musicou, também, outros poemas, como "Traduzir-se", de Ferreira Gullar, "Fanatismo" e "Fumo", da poetisa portuguesa Florbela Espanca, entre outros. Desde seus primeiros trabalhos, contou com parcerias freqüentes e de qualidade com o compositor baiano Capinan ("Pavor dos paraísos", "Natureza noturna"), os cearenses Fausto Nilo ("O astro vagabundo", "Calma violência"), Brandão ("Dois querer", "Beleza"*) e Belchior ("Mucuripe", "Moto I"), além do carioca Abel Silva ("Asa partida", "Sangue e pudins", "Asas"). Contou, também, com a qualidade dos arranjos de nomes como Hermeto Paschoal, João Donato, Wagner Tiso, Robertinho do Recife e o já citado Ivan Lins, um time de primeira.
A maioria de suas canções traziam, em comum, versos plangentes (e pungentes), em tom de lamento, desesperança, pessimismo e desilusão, que combinavam bem com sua voz melancólica e agradaram em cheio à juventude, geralmente perdida. Em meados da década de 80, seguiu em uma linha romântica, porém de letras mais fáceis, menos elaboradas, numa trajetória que poderíamos chamar "De Revelação a Deslizes".
Amelinha teve quase todos os seus discos concentrados entre 1977 e 1987, sendo o primeiro deles produzido por Fagner, que também produziu trabalhos de vários outros cantores.
Sua voz bonita e agradável foi logo enaltecida, bem como seu repertório. Ednardo, mais conhecido como o autor de "Pavão misterioso" e "Enquanto engomo a calça", foi outro destaque cearense surgido na época.
Os pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo começaram a carreira um pouco antes, em 1972, quando lançaram um disco juntos. São deles as canções "Caravana" e "Táxi Lunar", esta última em parceria com Zé Ramalho. Em 1984, Geraldo lançou mais um trabalho em grupo, com o paraibano Vital Farias e os baianos Elomar e Xangai, a partir de um show gravado ao vivo, o LP "Cantoria", aclamado pela crítica. Compositor de estilo romântico, embora tenha composto, também, em outros estilos, teve como principal intérprete de suas canções a cantora Elba Ramalho.
De estilo inovador, Alceu foi um dos pioneiros, em Pernambuco, a misturar ritmos regionais com solos de guitarra, tendo parte dos créditos pelo surgimento, na década de 90, do manguebeat. Lançou seu primeiro trabalho individual em 1974, o conceituado "Molhado de suor", recentemente relançado em CD, e alcançou maior sucesso junto ao público no início da década de 80, com as canções "Coração bobo", "Pelas ruas que andei" e "Tropicana".
* Beleza (Raimundo Fagner - Brandão)
Beleza só se tem quando se acende a lamparina
Iluminando a alma se entende a própria sina
E quando se vê o arame que amarra toda gente
Pendendo das estacas sob um sol indiferente
Beleza só depois de uma sangria desatada
Aberta na ferida dos perigos do amor
E quando se afasta a sombra triste do remorso
Que faz olhar pra dentro para enfrentar a dor
Repara este silêncio que se estende da janela
Repassa o teu passado e come o lixo que ele encerra
Vagar sem remissão é também parte da questão
Juntar estas migalhas para refazer o pão
Não é da natureza que ele surge confeitado
Mas é desta tristeza, deste adubo de rancor
Beleza é o temporal que suja e corta uma visão
E esmaga qualquer sonho com um grito de pavor
Assumiram o estereótipo do nordestino, de feições agrestes, sem maquiagens nem embelezamentos artificiais, com sotaque, vozes melancólicas, fortes, ásperas, lembrando a paisagem crua e seca do sertão. Tais características marcantes, aliadas a uma notável qualidade musical, chamou a atenção da mídia e do público.
Oe elementos do grupo, apesar de dispersos geograficamente por entre os estados nordestinos, tinham forte ligação entre si. A cantora cearense Amelinha, por exemplo, começou com o conterrâneo Fagner e foi casada com Zé Ramalho. Este, por sua vez, tinha algum parentesco com Elba Ramalho e começou tocando na banda de Alceu Valença, que era amigo de Geraldo Azevedo e junto com ele iniciou a carreira. Essa união, que persistiu ao longo dos anos, produzindo importantes trabalhos, resultou, em 1996, em mais um excelente disco, "O Grande Encontro", gravado ao vivo, que reuniu Alceu, Geraldo, Elba e Zé. Em 1997 e 2000, mais dois volumes de "O Grande Encontro" foram lançados, sem a participação de Alceu Valença.
Do Ceará, Raimundo Fagner e Belchior foram os que mais conseguiram destaque, tendo recebido, no início de suas carreiras, fundamental apoio de Elis Regina que, em 1972, gravou em seu disco a canção Mucuripe, dos dois compositores, também gravada por Roberto Carlos, em 1975. Bem antes de se tornar conhecido pelo grande público em 1978, com o disco "Quem viver chorará" e a música "Revelação" (Clodô/Clésio), Fagner já havia feito excelentes trabalhos, como o disco de estréia, "O último pau-de-arara", de 1973, que contava com a participação de Nara Leão e Naná Vasconcelos, produção de Roberto Menescal e Paulinho Tapajós e arranjos de Ivan Lins.
É deste disco a música "Canteiros", feita por Fagner, baseada em poesia de Cecília Meireles (Marcha), que o tornou réu em processo movido pelas filhas da poetisa. Por decisão da justiça, o disco teve que ser relançado, com a substituição de "Canteiros" por "Cavalo ferro" (Fagner/Ricardo Bezerra) e apenas em 2000 o músico pôde regravar a canção, num álbum duplo, gravado ao vivo. O processo envolvia, também, outra canção, "Motivo", também baseada em poema de Cecília Meireles, de mesmo nome, gravada por Fagner, em 1978. Novamente, o disco foi recolhido e relançado, com a faixa "Quem me levará sou eu" (Dominguinhos/Manduka), que acabara de vencer um festival da Rede Tupi de Televisão, em substituição a "Motivo".
Fagner musicou, também, outros poemas, como "Traduzir-se", de Ferreira Gullar, "Fanatismo" e "Fumo", da poetisa portuguesa Florbela Espanca, entre outros. Desde seus primeiros trabalhos, contou com parcerias freqüentes e de qualidade com o compositor baiano Capinan ("Pavor dos paraísos", "Natureza noturna"), os cearenses Fausto Nilo ("O astro vagabundo", "Calma violência"), Brandão ("Dois querer", "Beleza"*) e Belchior ("Mucuripe", "Moto I"), além do carioca Abel Silva ("Asa partida", "Sangue e pudins", "Asas"). Contou, também, com a qualidade dos arranjos de nomes como Hermeto Paschoal, João Donato, Wagner Tiso, Robertinho do Recife e o já citado Ivan Lins, um time de primeira.
A maioria de suas canções traziam, em comum, versos plangentes (e pungentes), em tom de lamento, desesperança, pessimismo e desilusão, que combinavam bem com sua voz melancólica e agradaram em cheio à juventude, geralmente perdida. Em meados da década de 80, seguiu em uma linha romântica, porém de letras mais fáceis, menos elaboradas, numa trajetória que poderíamos chamar "De Revelação a Deslizes".
Amelinha teve quase todos os seus discos concentrados entre 1977 e 1987, sendo o primeiro deles produzido por Fagner, que também produziu trabalhos de vários outros cantores.
Sua voz bonita e agradável foi logo enaltecida, bem como seu repertório. Ednardo, mais conhecido como o autor de "Pavão misterioso" e "Enquanto engomo a calça", foi outro destaque cearense surgido na época.
Os pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo começaram a carreira um pouco antes, em 1972, quando lançaram um disco juntos. São deles as canções "Caravana" e "Táxi Lunar", esta última em parceria com Zé Ramalho. Em 1984, Geraldo lançou mais um trabalho em grupo, com o paraibano Vital Farias e os baianos Elomar e Xangai, a partir de um show gravado ao vivo, o LP "Cantoria", aclamado pela crítica. Compositor de estilo romântico, embora tenha composto, também, em outros estilos, teve como principal intérprete de suas canções a cantora Elba Ramalho.
De estilo inovador, Alceu foi um dos pioneiros, em Pernambuco, a misturar ritmos regionais com solos de guitarra, tendo parte dos créditos pelo surgimento, na década de 90, do manguebeat. Lançou seu primeiro trabalho individual em 1974, o conceituado "Molhado de suor", recentemente relançado em CD, e alcançou maior sucesso junto ao público no início da década de 80, com as canções "Coração bobo", "Pelas ruas que andei" e "Tropicana".
* Beleza (Raimundo Fagner - Brandão)
Beleza só se tem quando se acende a lamparina
Iluminando a alma se entende a própria sina
E quando se vê o arame que amarra toda gente
Pendendo das estacas sob um sol indiferente
Beleza só depois de uma sangria desatada
Aberta na ferida dos perigos do amor
E quando se afasta a sombra triste do remorso
Que faz olhar pra dentro para enfrentar a dor
Repara este silêncio que se estende da janela
Repassa o teu passado e come o lixo que ele encerra
Vagar sem remissão é também parte da questão
Juntar estas migalhas para refazer o pão
Não é da natureza que ele surge confeitado
Mas é desta tristeza, deste adubo de rancor
Beleza é o temporal que suja e corta uma visão
E esmaga qualquer sonho com um grito de pavor
12.4.07
Meu rei mandou dizer...
Com todo o poder, audiência e experiência que as Organizações Globo possuem na televisão brasileira, era natural que se aventurassem, um dia, a fazer, também, cinema. Hoje, após passar por dificuldades e quase desaparecer durante o governo Collor, o cinema nacional voltou a ter grandes bilheterias, com o surgimento da Globo Filmes e todo o seu poder de divulgação, sem que isso signifique, contudo, ganho para todos. Seus filmes, sendo ou não meras transposições de produções da televisão para a tela grande, ficam, em geral, com cara de novela. E, assim como ocorre na TV, há um enorme desequilíbrio de forças, com a globalização a tomar espaço de produções menores, mas de maior qualidade.
A nova produção da Globo Filmes, “Ó Paí, Ó”, de Monique Gardenberg, que dirigiu, também, Benjamim, baseado em livro homônimo de Chico Buarque, deve seguir o caminho inverso, mas não menos direto, e virar seriado na TV. Parte, contudo, de uma boa idéia, a de mostrar as dificuldades e desventuras de uma comunidade pobre dos arredores do Pelourinho, no centro histórico de Salvador, e sua forte ligação com o carnaval.
Segundo a página oficial do filme (www.opaio.com.br), “Ó Pai, Ó faz uma rasura na superfície de uma reordenação urbanística do Pelourinho que violentou territorialidades negras em tentativas vãs de embranquecimento cultural e de desafricalização dos espaços públicos de Salvador”. Rasura, de fato, bem superficial e a lápis, resultando em papéis sem maiores riscos, pois o filme não foge à regra global e sofre da mesma miopia ou visão pouco aprofundada de questões importantes, visão essa decorrente do compromisso com o padrão Globo de qualidade, que a exige, em troca de uma boa divulgação, com direito a comentários na novela das oito e em seus programas.
Quando insinua tratar com seriedade de temas como o preconceito racial, o assunto é logo abortado, como se entrassem os comerciais. Isto acontece, claramente, numa cena em que o ator Lázaro Ramos mostra todo o seu potencial dramático, talvez menos conhecido (pelo menos na televisão) do que sua veia cômica. Ele rouba a cena e em seguida devolve-a ao público, já quase transformada em realidade, através de sua contundente (e convincente) expressão facial, no primeiro momento sério do filme até que... uma piada recoloca-o nos eixos mal traçados de uma comédia musical sem muita graça.
Um aspecto interessante é a divulgação do belo trabalho social, cultural e de resistência, que faz o Bando de Teatro Olodum na capital baiana. O filme, inclusive, é baseado em uma peça de teatro encenada pelo grupo, do qual saiu, também, boa parte do elenco. Um bando de bons atores, que têm a chance de serem conhecidos e reconhecidos nacionalmente, seguindo os passos de Lázaro Ramos e da cantora Virgínia Rodrigues, que começaram no grupo.
Além deles, “Ó Paí, Ó” conta com as participações de Stênio Garcia, Wagner Moura e Dira Paes. Merecem elogios, também, as atuações de Luciana Souza (dona Joana) e dos graciosos e espontâneos garotos Vinícius Nascimento e Felipe Fernandes (Cosme e Damião), bem como a beleza morena de Emanuelle Araújo, ex-vocalista da Banda Eva.
Na parte musical e nas cenas de carnaval, o filme também parece um pouco prejudicado pelos interesses comerciais, deixando um pouco de lado, por exemplo, o afoxé, ritmo que melhor representa a cultura carnavalesca negra baiana (o Araketu é bom demais, mas a coisa mais linda de se ver é o Ilê-Aiyê). Mesmo o samba-reggae, sempre posto, injustamente, como subproduto da chamada axé-music, mas de valor bem maior, poderia ter sido melhor explorado e ter substituído algumas faixas da trilha sonora (disponível em CD).
Se a primeira impressão é a que fica, porém, “Ó Paí, Ó” começa muito bem com a bela canção “É d’Oxum”* (na voz de Jauperi, ex-vocalista do Olodum), já gravada por Gal Costa. Termina bem, também, com “Protesto do Olodum – E lá vou eu”** (com participação de Margareth Menezes e Daniela Mercury), gravada em 1988 pela Banda Mel, que casa perfeitamente com a segunda e última cena séria do filme, protagonizada com destaque pela atriz Luciana Souza.
Outros destaques da trilha sonora são “Ilha de Maré”, que já foi sucesso na voz de Alcione em 1977; “Depois eu volto”, do tradicional sambista baiano Batatinha; “Vem meu amor” (por Lázaro Ramos), gravada anteriormente pelo Olodum; e “Canto do mundo”, de Caetano Veloso, que também assina “Ó Paí, Ó”, com Davi Moraes. A produção musical do filme é de Betão Aguiar, Davi Moraes e Luiz Brasil; a não-musical, de Augusto Casé, Sara Silveira e Paula Lavigne.
Saiu por uma porta, entrou pela outra. Meu rei mandou dizer que, em suma, a história e a trilha do filme valem como uma série ou especial da Globo, mas poderiam valer muito mais. Quem quiser que conte outra e tomara que queiram.
* É d’Oxum (Vevé Calazans/ Gerônimo Santana)
Nessa cidade todo mundo é d'Oxum
Homem, menino, menina, mulher
Toda essa gente irradia magia
Presente na água doce
Presente na água salgada
E toda cidade brilha
Seja tenente ou filho de pescador
Ou importante desembargador
Se der presente é tudo uma coisa só
A força que mora n'água
Nao faz distinção de cor
E toda cidade é d'Oxum
É d'Oxum, é d'Oxum
Eu vou navegar nas ondas do mar
Eu vou navegar, eu vou navegar
** Protesto do Olodum – E lá vou eu (Tatau)
Força e pudor
Liberdade ao povo do pelô
Mãe que é mãe no parto sente dor
E lá vou eu
Declara a nação,
Pelourinho contra a prostituição
Faz protesto manifestação
E lá vou eu
Aids se expandiu
E o terror já domina o brasil
Faz denúncia Olodum Pelourinho
E lá vou eu
Brasil liderança
Força e elite na poluição
Em destaque o terror Cubatão
E lá vou eu
Lá e cá nordestópia
Na Bahia existe Etiópia
Pro nordeste o país vira as costas
E lá vou eu
Moçambique, hei
Por minuto um homem vai morrer
Sem ter pão nem água pra beber
E lá vou eu
Mas somos capazes
O nosso deus a verdade nos trás
Monumento da força e da paz
E lá vou eu
Desmond Tutu
Contra o apartheid na África do Sul
Vem saudando o Nelson Mandela
O Olodum
A nova produção da Globo Filmes, “Ó Paí, Ó”, de Monique Gardenberg, que dirigiu, também, Benjamim, baseado em livro homônimo de Chico Buarque, deve seguir o caminho inverso, mas não menos direto, e virar seriado na TV. Parte, contudo, de uma boa idéia, a de mostrar as dificuldades e desventuras de uma comunidade pobre dos arredores do Pelourinho, no centro histórico de Salvador, e sua forte ligação com o carnaval.
Segundo a página oficial do filme (www.opaio.com.br), “Ó Pai, Ó faz uma rasura na superfície de uma reordenação urbanística do Pelourinho que violentou territorialidades negras em tentativas vãs de embranquecimento cultural e de desafricalização dos espaços públicos de Salvador”. Rasura, de fato, bem superficial e a lápis, resultando em papéis sem maiores riscos, pois o filme não foge à regra global e sofre da mesma miopia ou visão pouco aprofundada de questões importantes, visão essa decorrente do compromisso com o padrão Globo de qualidade, que a exige, em troca de uma boa divulgação, com direito a comentários na novela das oito e em seus programas.
Quando insinua tratar com seriedade de temas como o preconceito racial, o assunto é logo abortado, como se entrassem os comerciais. Isto acontece, claramente, numa cena em que o ator Lázaro Ramos mostra todo o seu potencial dramático, talvez menos conhecido (pelo menos na televisão) do que sua veia cômica. Ele rouba a cena e em seguida devolve-a ao público, já quase transformada em realidade, através de sua contundente (e convincente) expressão facial, no primeiro momento sério do filme até que... uma piada recoloca-o nos eixos mal traçados de uma comédia musical sem muita graça.
Um aspecto interessante é a divulgação do belo trabalho social, cultural e de resistência, que faz o Bando de Teatro Olodum na capital baiana. O filme, inclusive, é baseado em uma peça de teatro encenada pelo grupo, do qual saiu, também, boa parte do elenco. Um bando de bons atores, que têm a chance de serem conhecidos e reconhecidos nacionalmente, seguindo os passos de Lázaro Ramos e da cantora Virgínia Rodrigues, que começaram no grupo.
Além deles, “Ó Paí, Ó” conta com as participações de Stênio Garcia, Wagner Moura e Dira Paes. Merecem elogios, também, as atuações de Luciana Souza (dona Joana) e dos graciosos e espontâneos garotos Vinícius Nascimento e Felipe Fernandes (Cosme e Damião), bem como a beleza morena de Emanuelle Araújo, ex-vocalista da Banda Eva.
Na parte musical e nas cenas de carnaval, o filme também parece um pouco prejudicado pelos interesses comerciais, deixando um pouco de lado, por exemplo, o afoxé, ritmo que melhor representa a cultura carnavalesca negra baiana (o Araketu é bom demais, mas a coisa mais linda de se ver é o Ilê-Aiyê). Mesmo o samba-reggae, sempre posto, injustamente, como subproduto da chamada axé-music, mas de valor bem maior, poderia ter sido melhor explorado e ter substituído algumas faixas da trilha sonora (disponível em CD).
Se a primeira impressão é a que fica, porém, “Ó Paí, Ó” começa muito bem com a bela canção “É d’Oxum”* (na voz de Jauperi, ex-vocalista do Olodum), já gravada por Gal Costa. Termina bem, também, com “Protesto do Olodum – E lá vou eu”** (com participação de Margareth Menezes e Daniela Mercury), gravada em 1988 pela Banda Mel, que casa perfeitamente com a segunda e última cena séria do filme, protagonizada com destaque pela atriz Luciana Souza.
Outros destaques da trilha sonora são “Ilha de Maré”, que já foi sucesso na voz de Alcione em 1977; “Depois eu volto”, do tradicional sambista baiano Batatinha; “Vem meu amor” (por Lázaro Ramos), gravada anteriormente pelo Olodum; e “Canto do mundo”, de Caetano Veloso, que também assina “Ó Paí, Ó”, com Davi Moraes. A produção musical do filme é de Betão Aguiar, Davi Moraes e Luiz Brasil; a não-musical, de Augusto Casé, Sara Silveira e Paula Lavigne.
Saiu por uma porta, entrou pela outra. Meu rei mandou dizer que, em suma, a história e a trilha do filme valem como uma série ou especial da Globo, mas poderiam valer muito mais. Quem quiser que conte outra e tomara que queiram.
* É d’Oxum (Vevé Calazans/ Gerônimo Santana)
Nessa cidade todo mundo é d'Oxum
Homem, menino, menina, mulher
Toda essa gente irradia magia
Presente na água doce
Presente na água salgada
E toda cidade brilha
Seja tenente ou filho de pescador
Ou importante desembargador
Se der presente é tudo uma coisa só
A força que mora n'água
Nao faz distinção de cor
E toda cidade é d'Oxum
É d'Oxum, é d'Oxum
Eu vou navegar nas ondas do mar
Eu vou navegar, eu vou navegar
** Protesto do Olodum – E lá vou eu (Tatau)
Força e pudor
Liberdade ao povo do pelô
Mãe que é mãe no parto sente dor
E lá vou eu
Declara a nação,
Pelourinho contra a prostituição
Faz protesto manifestação
E lá vou eu
Aids se expandiu
E o terror já domina o brasil
Faz denúncia Olodum Pelourinho
E lá vou eu
Brasil liderança
Força e elite na poluição
Em destaque o terror Cubatão
E lá vou eu
Lá e cá nordestópia
Na Bahia existe Etiópia
Pro nordeste o país vira as costas
E lá vou eu
Moçambique, hei
Por minuto um homem vai morrer
Sem ter pão nem água pra beber
E lá vou eu
Mas somos capazes
O nosso deus a verdade nos trás
Monumento da força e da paz
E lá vou eu
Desmond Tutu
Contra o apartheid na África do Sul
Vem saudando o Nelson Mandela
O Olodum
29.3.07
Anos 80: o paradoxo estendido na areia
Com Eduardo e Mônica perto de completarem bodas de prata, vale a pena recordar o que acontecia quando eles se conheceram. Aquela festa estranha, com gente esquisita, não tinha uma trilha musical tão inovadora em termos de sonoridade, mas tornou-se uma identidade, imagem da juventude da época. Uma imagem tosca, mas real, talvez a única possível, diante das circunstâncias.
Tudo começou com Evandro Mesquita que, vindo do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, trouxe a linguagem teatral à sua banda Blitz, suas apresentações em palco e suas canções, a partir de “Você não soube me amar” que, em 1982, abriu as portas para o denominado BRock. Do grupo de teatro, também fazia parte a camaleoa Regina Casé. Da banda, Lobão e a carioca Fernanda Abreu. Marina Lima, Ritchie e Lulu Santos chegaram sozinhos, os dois últimos vindos de um grupo não muito conhecido, de nome Vímana, junto com Lobão. Num cantinho, meio deslocada, uma turma fazia uma festinha paralela: 14 Bis, Boca Livre e Roupa Nova.
Sem microcomputador, internet, telefone celular, CD e MP3, a informação era menos acessível. A televisão acabava de entrar na era dos vídeo-clips e as bandas de sucesso tocavam na rádio Fluminense e no Circo Voador, ambos no Rio de Janeiro, e apresentavam-se em programas de auditório como o Cassino do Chacrinha, da Rede Globo. Rolava de tudo: Miquinhos Amestrados, Abóboras Selvagens, Kid Abelha, Kid Vinil, Absyntho, Herva Doce, Sempre Livre, Camisa de Vênus. Difícil descrever, por exemplo, a loucura que era a apresentação dos Titãs, com seus oito integrantes se espalhando pelo pequeno palco em performances alucinantes, em meio à gritaria do auditório, estripulias de Chacrinha, toques de sirene e requebros das chacretes.
O Rock in Rio I, ocorrido em janeiro de 1985, ajudou a consolidar o BRock como algo rentável para as gravadoras e, por conseqüência, a disseminar o surgimento de bandas que apareciam por todas as bandas, de qualidade ou não. Mesmo não fazendo parte de suas atrações, os grupos Titãs, Legião Urbana, Ultraje a Rigor e RPM alcançaram um maior destaque após o festival, o qual ajudou, também, a alavancar a carreira de grupos que já se destacavam, como Kid Abelha, Blitz, Paralamas do Sucesso e Barão Vermelho, este último protagonista de um de seus melhores momentos, quando Cazuza cantou, abraçado à bandeira brasileira, “Pro dia nascer feliz”. Era o dia da votação que elegeria Tancredo Neves presidente da república.
Nas escolas, na década anterior, os filhos da “revolução” cresciam tendo aulas de “moral e cívica”, que reverenciavam “nossos” presidentes. O movimento estudantil não tinha mais força, as manifestações culturais eram censuradas, a televisão deixava-nos burros, muito burros demais. Todo esse cerceamento de liberdade teve conseqüências na formação intelectual dessa geração perdida, que parecia de outro mundo, uns aliens alienados, que não tinham outra cara pra mostrar. Eram o fruto de todo esse lixo, “toda essa droga que já vem malhada antes de eu nascer”. Não havia outra saída: “vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”.
Na década de 80, enfim, o sinal fechado do período de repressão tornou a abrir. Em 1979, veio a Lei da Anistia e em 1982, eleições diretas para governador, embora ainda não para presidente (Diretas já já). “Eu vejo a vida melhor no futuro”. Porém, o que fazer com essa senhora liberdade, que abria suas asas sobre nós? Que caminho seguir? Não sabíamos lidar com isso.
Por outro lado, se a política caminhava em direção a uma maior abertura, a liberdade sexual trilhava o caminho inverso: “meu prazer agora é risco de vida”. Frutos da revolução sexual dos anos 60, os jovens de então depararam-se com um vírus desconhecido, o qual, por ter sido, a princípio, entendido de maneira equivocada como exclusividade de homossexuais e africanos, alastrou-se rapidamente, resultado da filosofia egoísta dos “sem-risco”: “se não seremos atingidos, por que nos preocuparmos?”. Hoje, paga-se o preço por esse descaso.
Alienados, desiludidos, sem posições políticas definidas, “cansados de correr na direção contrária”, a seu jeito, os jovens protestavam: “indecente é você ter que ficar despido de cultura”, “as ilusões estão todas perdidas”, “os meus sonhos foram todos vendidos tão barato que eu nem acredito”, “meu partido é um coração partido”, “minha metralhadora cheia de mágoas”, “meu cartão de crédito é uma navalha”, “ideologia, eu quero uma pra viver”, “a gente não sabemos escolher presidente”, “ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação”. Que país é esse?
Outros, em crise de identidade, apenas experimentavam o inédito prazer de comprar um disco e gostar de uma banda da qual seus pais não gostavam, que tivesse suas caras. Como rebeldes sem causa (“como é que eu vou crescer, sem ter com quem me rebelar?”), querendo negar os preceitos de Belchior de que “nossos ídolos ainda são os mesmos” e que “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Como eles, queríamos nos sentir capazes de produzir algo de valor e não mais ter que repetir: “a gente somos inútil”.
Até que não nos saímos tão mal e, em meio ao lixo que cuspimos, pudemos garimpar e encontrar belas poesias expelidas por Cazuza, Renato Russo e Júlio Barroso, que poderiam ter feito muito mais, não fosse o destino tão cruel ao dizimar algumas das principais cabeças dessa geração (Herbert Vianna escapou por pouco). Outros talentos, porém, sobreviveram: Arnaldo Antunes, Nando Reis e Paulinho Moska, que à época rondava o lixo com música barata, junto com os Inimigos do Rei, entre outros.
O alívio definitivo e a certeza de que a década não fora perdida veio, então, quando escutamos Gal Costa, Caetano Veloso, Ney Matogrosso e Luiz Melodia cantando Cazuza, Chico Buarque cantando com Paula Toller, Tom Jobim com Marina Lima e Gilberto Gil cantando e compondo com os Paralamas do Sucesso, assim como exaltando o que acontecia, em seu “Roque santeiro – o rock”. O paradoxo estendido nas areias escaldantes, então, desfez-se, junto com um mar de dúvidas. Descobrimos, enfim, que poderíamos gostar desses expoentes da nossa geração sem romper com nossos grandes e insubstituíveis ídolos, os mesmos de nossos pais. Roqueiro brasileiro deixou de ter cara de bandido.
Roque santeiro - o rock (Gilberto Gil)
Outrora, só cabeludo
Agora, o menino é tudo de novo no front
Outrora, só rebeldia
Agora, soberania na noite neon
Outrora, mera fumaça
Agora, fogo da raça, fogoso rapaz
Outrora, mera ameaça
Agora, exige o direito ao respeito dos pais
E tem mais, e tem mais, e tem mais
Outrora, arraia miúda
Agora, lobão de boca bem grande a gritar
Outrora, pirado e louco
Agora, poucos insistem em negar-lhe o lugar
Outrora, frágil autorama
Agora, três paralamas de grande carreta de som
Outrora, simples bermuda
Agora, ultravestidos de elegante ultraje a rigor
E o amor, e o amor, e o amor
Só quem não amar os filhos
Vai querer dinamitar os trilhos da estrada
Onde passou passarada
Passa agora a garotada, destino ao futuro
Deixa ele tocar o rock
Deixa o choque da guitarra tocar o santeiro
Do barro do motocross
Quem sabe ele molde um novo santo padroeiro
Outrora, o seio materno
Agora, o meio da rua, na lua, nas novas manhãs
Outrora, o céu e o inferno
Agora, o saber eterno do velho sonho dos titãs
Outrora, o reino do Pai
Agora, o tempo do Filho com seu novo canto
Outrora, o Monte Sinai
Agora, sinais da nave do Espírito Santo
E o encanto, e o encanto, e o encanto
15.2.07
Cem e sem anos do frevo
“Ô, ô, saudade, saudade tão grande ...” (Antônio Maria) - A despeito de uma limitada divulgação nacional nos dias atuais, o frevo já viveu uma época de ouro, quando tocava e era tocado em todo o país, contando com o apoio de uma gravadora pernambucana, a Rozenblit, especialista em lançamentos do gênero, que saíam aos montes e com qualidade, principalmente quando o carnaval se aproximava. Compositores como Antônio Maria, Nelson Ferreira, Capiba e Edgar Moraes criavam canções que reverenciavam seus blocos preferidos e a eles declaravam amor fiel. Em algumas, prostituíam-se, declarando-se a vários ao mesmo tempo, como em “Valores do passado”, uma escalação do dream-team dos blocos de frevo, alguns deles ainda em atividade, como o “Bloco das flores”, fundado em 1921.
“Saudade que eu sinto do Clube das Pás, do Vassouras, passistas traçando tesouras nas ruas repletas de lá” (Antônio Maria) - Se a dança é derivada dos passos da capoeira, inventados pelos negros, a sonoridade e o instrumental são atribuídos a bandas marciais. Os primeiros clubes de frevo, como o “Clube das pás”, o “Vassourinhas” e o “Lenhadores”, datam do final do século XIX e continuam existindo até hoje. Como não se sabe ao certo quando a festa começou, escolheu-se, recentemente, como data de criação do frevo, o dia 9 de fevereiro de 1907, quando registrou-se a primeira referência à dança com este nome.
“Pode acabar o petróleo, pode acabar a vergonha, pode acabar tudo enfim, mas deixem o frevo pra mim” (Capiba) - No ano de seu centenário, o frevo foi registrado como patrimônio cultural imaterial do país, no livro das formas de expressão. Entre as características que justificaram tal registro, estão sua riqueza e simplicidade, singularidade e diversidade, e seu caráter libertário de resistência, a princípio apenas social, posto que surgiu entre os negros recém-libertados e, posteriormente, também cultural, diante da globalização do mercado musical.
“É lindo ver o dia amanhecer com violões e pastorinhas mil...” (Getúlio Cavalcanti) - O frevo é dividido em três gêneros principais. O frevo-de-rua é instrumental, executado por orquestras de metais e é o mais vivaz e ligeiro. Quando ganhou letra, virou frevo-canção, o mais abrangente e variado. O frevo-de-bloco, por sua vez, tem um ritmo mais suave e é geralmente executado por um coral de vozes femininas, acompanhado por uma orquestra de instrumentos de pau e corda.
“É de fazer chorar quando o dia amanhece e obriga o frevo a acabar ...” (Luiz Bandeira) - O processo de aculturação e discriminação por que passou Pernambuco com o golpe militar, refletiu, também, ou sobretudo, na área cultural, abandonada nos anos que se seguiram. O carnaval do Recife foi sumindo aos poucos, até chegar, ao final da década de 70, praticamente morto, restrito às comunidades. Blocos tradicionais de frevo, maracatu e caboclinho dispunham de pequena subvenção e desfilavam para um mirrado público no centro da cidade.
“Ei pessoal, vem moçada, carnaval começa no Galo da Madrugada” (José Mário Chaves) - Diante deste quadro, em 1979, fundou-se o “Clube de Máscaras Galo da Madrugada”, na intenção de reviver os velhos carnavais pernambucanos. O bloco foi, durante muito tempo, o único do carnaval recifense a atrair um grande público, crescente a cada ano. Hoje, embora não seja mais o único a cantar, o Galo segue seu grandioso desfile nos bairros de São José e Santo Antônio, abrindo o carnaval, no sábado de Zé Pereira, acompanhado por uma multidão.
“Entre confetes e serpentinas venho te oferecer com alegria o meu amor ...” (Clídio Nigro / Clóvis Vieira) - Ao mesmo tempo, Olinda virou reduto de resistência à dissolução das manifestações culturais do carnaval pernambucano. Blocos irreverentes foram criados, com nomes e hinos fazendo referência à situação política do país, como: “Eu acho é pouco”, “Siri na lata” e “Nóis sofre mais nóis goza” (este último no Recife), que se juntaram a blocos tradicionais da cidade como “Pitombeira dos Quatro Cantos”, “Elefante de Olinda” e aos seus tradicionais bonecos gigantes. O título de patrimônio cultural da humanidade, recebido pela cidade em 1982, contribuiu para dar maior visibilidade aos festejos nesta cidade.
“Batidas de bombos são maracatus retardados, chegando à cidade cansados, com seus estandartes no ar” (Antônio Maria) - Um evento conseguiu atravessar, incólume, o marasmo em que se encontrava o carnaval do Recife, tornando-se uma de suas maiores referências na mídia: a “Noite dos Tambores Silenciosos”, cerimônia que reproduz o ritual de escravos, suas preces e loas em busca de proteção, e reúne as mais tradicionais nações de maracatu de baque-virado, entre elas algumas fundadas ainda na época do império, antes da abolição da escravatura, como o “Nação Elefante”, de 1800 e o “Leão Coroado”, de 1863. Tais maracatus têm como características as figuras do rei e rainha, a religiosidade e os ritmos percussivos, de influência negra, bastante ligados à resistência da raça à situação vigente na época.
“Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu ...” (Caetano Veloso) - A inclusão de instrumentos eletrônicos nas orquestras foi viabilizada com a invenção do trio elétrico, quando compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Moraes Moreira deram nova energia ao ritmo. Mas, se em Pernambuco o frevo era ligado aos antigos carnavais e pouco se produzia de novo, o ritmo foi perdendo espaço também na Bahia, com o surgimento do samba-reggae e da axé-music, no início dos anos 90.
“Vem fazer parte desse cordão, Recife tem um lugar pra você dentro do coração” (Sérgio Andrade / Zezinho Franco) - Na década de 80, contribuíram para o ressurgimento do carnaval recifense as apresentações da Banda de Pau e Corda na praia de Boa Viagem e o projeto “Asas da América”, do compositor Carlos Fernando, que tentou recuperar a vivacidade e a energia de um frevo que vinha perdendo as forças e incentivou uma nova geração de artistas a compor e interpretar frevos-canção, entre eles Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho.
“Modernizar o passado é uma evolução musical” (Chico Science) - Em meados da década passada, dois outros fatores possibilitaram a revalorização da cultura popular pernambucana: a revitalização do outrora abandonado bairro do Recife, a qual viabilizou uma estrutura mais profissional, necessária ao evento e o rufo dos tambores, o eco das alfaias, a repercussão da percussão de Chico Science e Nação Zumbi, que se uniu ao som dos clarins de momo. Também passaram a receber mais atenção e destaque antigas manifestações culturais do interior do estado, como o maracatu rural, de Nazaré da Mata; os papangus, de Bezerros; os caboclinhos, de Goiana e os caretas, de Triunfo.
“Quero sentir a embriaguez do frevo, que entra na cabeça, depois toma o corpo e acaba no pé ...” (Luiz Bandeira) - O nome frevo vem de ferver e quem ouve os gritos e pulos da multidão, parecendo pessoas em ebulição logo aos primeiros acordes de “Vassourinhas”, espécie de hino do carnaval pernambucano, entende bem o porquê. A música faz uso de requintes de crueldade: começa de repente, sem introdução, sem preparar os corações dos pobres foliões e segue divertindo-se com a surpresa e as conseqüentes perdas de controle e compostura dos mesmos, presas fáceis, indefesas, vítimas emocionadas, enlouquecidas. Doidos varridos por vassourinhas que levantam a poeira e seguem causando impacto, bagunçando tudo, lavando suas almas, até terminarem a faxina, com a sensação do dever cumprido.
“E frevo ainda, apesar da quarta-feira, no cordão da saideira, vendo a noite se enfeitar ...” (Edu Lobo).
1.2.07
Rompendo as fronteiras dos jardins da razão
Em meio à apatia generalizada, metástase da impassibilidade em que se encontrava o Recife pós-golpe militar, quando pouco ou nada de novo conseguia emergir de seus becos, um grupo de amigos, liderados pelos músicos Chico Science e Fred Zero Quatro, reuniu-se, no início da década de 90, denunciando a estagnação, o vazio criativo e o depressivo quadro social em que viviam seus habitantes.
Suas idéias foram reunidas num tipo de manifesto, intitulado "Caranguejos com cérebro", no qual clamavam: "Um choque rápido ou o Recife morre de infarto", pela obstrução de suas artérias, a matança de seus rios e o aterramento de seus estuários. O texto falava do conceito de mangue, de sua importância para o equilíbrio ambiental e da cena musical que na cidade despontava, à qual eles deram o nome de manguebeat, ao mesmo tempo em que propunha uma saída, "para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos", através de uma mudança de atitude urgente: "Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.".
Chico Science criou a banda Nação Zumbi e Fred Zero Quatro, a Mundo Livre S/A. Após alguns shows em bares do Recife, ambos lançaram seus primeiros discos, "Da lama ao caos" e "Samba esquema noise", respectivamente, em 1994. Após se apresentarem na primeira edição do festival "Abril pro rock", que surgiu na mesma época, dividindo o palco com Gilberto Gil na canção "Macô", Chico Science e Nação Zumbi despertaram a atenção dos críticos para sua música. A mistura de sons da banda adveio, de forma natural, da formação musical de seus componentes, vindos parte de um grupo de rock, o Loustal (entre eles, o próprio Chico e o guitarrista Lúcio Maia), parte de um grupo de samba-reggae e outros ritmos afros, o Lamento Negro. Em 1996, lançaram o segundo disco, "Afrociberdelia".
A simbologia do mangue reproduzia bem as características do movimento, com sua diversidade de espécies representando a variedade de estilos, sua localização, entre o rio e o mar, entre a água doce e a salgada, equivalendo à mistura de ritmos e sua destruição representando o esvaziamento da alma da cidade. Seguindo o ímpeto tropicalista de misturar, o manguebeat tinha como imagem símbolo uma antena parabólica enfiada na lama do mangue. "Pernambuco debaixo dos pés e a mente na imensidão".
Nas letras, referências a revoltas e líderes populares, à concentração de riquezas, à discriminação, à fome e seus males, com citações à revolução praieira, a Antônio Conselheiro, Zumbi e Josué de Castro, este último espécie de ícone do manguebeat, com suas alusões ao "estranho mimetismo entre homens e caranguejos", tão bem representado por Chico Science nas canções e também no palco, em sua admirável e singular performance.
O fim do segundo milênio começava a despontar e uma pesquisa feita por um instituto da cidade de Washington – EUA, apontava o Recife como a quarta pior cidade do mundo para se viver, fato descrito por Chico Science em uma de suas canções. A cidade crescera rápida e desordenadamente. "A cidade não pára, a cidade só cresce. O de cima sobe e o de baixo desce". A exposição desses contrastes sociais e da dura realidade de uma "situação sempre mais ou menos, sempre uns com mais e outros com menos", contribuiu para que o manguebeat fosse bem melhor aceito na periferia, seu berço e fonte de inspiração.
A forte vibração vinda do mangue abalou um pouco as sólidas estruturas da sociedade conservadora recifense. Os respingos da lama nas varandas de seus apartamentos de luxo, qual "a chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma", desagradaram aos assustados e aflitos burgueses, protegidos em suas casas fortes, os quais, diferentemente das populações ribeirinhas, que (sobre)vivem em "mocambos entulhados à beira do Capibaribe", sempre apreciaram o mangue à distância, do alto dessas varandas, com vista para o rio. O duro retrato de uma manguetown miserável ("Tô enfiado na lama / é um bairro sujo / onde os urubus têm casas / e eu não tenho asas") não caiu nas graças dos mais abastados que, embora na mesma cidade, viviam em outro mundo, tampouco lhes cheirou bem ("ninguém foge ao cheiro sujo da lama da manguetown").
A modernização da sonoridade, por sua vez, aproximou o movimento dos mais jovens, deixando os mais velhos bem reticentes, quando não exclamativos, à teoria de que "modernizar o passado é uma evolução musical". Concordando ou não com essa teoria, temos que reconhecer o papel fundamental de Chico Science na revalorização da tradicional cultura popular do estado, na revitalização do carnaval do Recife e de ritmos como o coco e o maracatu.
Pernambuco sempre se fechou um pouco em sua forte tradição de cultura popular, regional e, talvez por isso, tenha tido, nas últimas décadas, pouco acesso à mídia, infelizmente cada vez mais globalizada (Alceu Valença, pioneiro, no estado, na mistura de rock com ritmos locais, foi uma das raras exceções). Chico Science e Nação Zumbi quebraram um pouco essa separação, modernizando a música regional, aproximando-a dos mais jovens e abrindo as portas para que outros músicos e grupos, que vieram em seus rastros, conseguissem mais espaço, quer seguindo a mistura e diversidade de estilos do manguebeat, quer não. Nomes como Otto, ex-Mundo Livre S/A; Siba Veloso, ex-Mestre Ambrósio; Silvério Pessoa, ex-Cascabulho; as bandas Devotos e Faces do Subúrbio e, mais recentemente, Cordel do Fogo Encantado e Mombojó.
Chico Science faleceu precocemente, aos trinta anos, em um acidente de carro, num domingo, dia 2 de fevereiro de 1997, dia de Iemanjá, entre o mangue e a praia, entre a lama e o caos, entre o rio e o mar, entre Recife e Olinda, entre rios, pontes e overdrives. Há dez anos. Seus preceitos de liberação da mente, expansão da consciência e tudo o mais que faça alguém ficar pensando melhor, continuam bem vivos e em sintonia com os anseios de quem está sempre à busca de romper as fronteiras dos jardins da razão.
23.1.07
Monte de sucesso
O ecletismo da produção musical de Marisa Monte reflete bem a trajetória de quem começou a carreira estudando canto lírico para, em seguida, aparecer ao público como revelação da música popular brasileira. Reflete, também, não apenas suas influências, mas suas amizades, seus amores, suas fases, sua vida pessoal.
De seu pai, ex-diretor-cultural da escola de samba carioca Portela, vieram os sambistas da Velha Guarda e com eles, Paulinho da Viola. De Nando Reis, vieram os Titãs e entre eles, Arnaldo Antunes (ou o contrário). De Davi Moraes, vieram os Novos Baianos e entre eles, Moraes Moreira, Pedro Baby e Dadi. Noves fora, Carlinhos Brown.
Finalmente, do seu filho, veio uma pausa de cerca de cinco anos nas apresentações em palco, que possibilitou o trabalho de pesquisa e a preparação de seus dois novos trabalhos, "Infinito particular" e "Universo ao meu redor", os quais melhoraram sua média anterior de cinco cd’s em 16 anos de carreira. Este maior espaçamento entre discos lançados e descompromisso de lançar um por ano são, em parte, responsáveis pela manutenção da qualidade em seu trabalho.
Em seu álbum preto, "Infinito particular", considerado por um crítico do jornal The New York Times o segundo melhor disco de 2006 em todo o mundo, todo o repertório é composto de canções suas, em diversas parcerias. Além da já habitual, com o concreto Arnaldo Antunes e o abstrato Carlinhos Brown, da qual ela tornou-se o equilíbrio, ela compôs, também, com Adriana Calcanhoto, Seu Jorge e Marcelo Yuka, entre outros.
Embora seja uma das cantoras que menos se expõe na mídia, sempre preservando seu infinito particular do universo ao seu redor (mesmo os discos são separados), Marisa vem mantendo uma boa parceria público-privada ao longo de sua carreira, preferindo mostrar suas caras na música, aos caros ouvintes, e não em revistas Caras, fúteis. "Gerânio", por exemplo, foi feita a partir de uma carta em que sua prima a descreve. Na canção que dá nome ao disco e é sua primeira faixa, por sua vez, a descrição pode se aplicar a ela mesma ou a sua música: "Eis o melhor e o pior de mim / O meu termômetro, o meu quilate / Vem, cara, me retrate / Não é impossível / Eu não sou difícil de ler / ... / Só não se perca ao entrar / No meu infinito particular".
"O rio" é uma bela e singela cantiga de ninar criança e gente grande também: "Quando amanhã por acaso faltar / Uma alegria no seu coração / Lembra do som dessas águas de lá / Faz desse rio a sua oração / Lembra, meu filho, passou, passará / Essa certeza a ciência nos dá / Que vai chover quando o sol se cansar / Para que flores não faltem".
Embora algumas de suas músicas, de estilo mais comercial, como "Já sei namorar", façam parte da sua cota "o pior de mim" (nesse caso, o termo privada, da PPP mencionada acima, pode, para alguns, assumir um outro significado), ela, de um modo geral, é competente nisso também (vide "Até parece" e "Pra ser sincero"). Ademais, sabe que tem um público diversificado e que a sociedade deformadora de opinião é bem mais condescendente com "pequenos deslizes" de cantores como ela que, embora definidos como de música popular brasileira, são tratados como genuínos representantes de uma música não-popular brasileira, na acepção elitista do termo.
"Pernambucobucolismo", idealizada durante um trajeto por entre plantações de cana-de-açúcar do interior de Pernambuco, remete-nos, realmente, ao doce silêncio e à leveza dos canaviais. Apenas baixo, percussão e sua voz, num arranjo puro, simples, bucólico, que tem como resultado uma revolução do interior (da pessoa e do lugar), não-praieira, pacífica, um movimento silencioso, um barulhinho bom. Para ouvir em silêncio absoluto. Também bucólica é "Vilarejo", que descreve um lugar onde o mundo tem razão e onde portas e janelas ficam sempre abertas pra sorte entrar. Peitos fartos, filhos fortes e em todas as mesas pão.
Dispondo de grande quantidade de material, após intensa pesquisa que contou com a ajuda de antigos compositores, Marisa, que já vinha gravando sambas em trabalhos anteriores, lançou, também, o álbum "Universo ao meu redor", só com músicas deste ritmo, entre composições antigas, mas ainda inéditas e outras mais recentes. Paulinho da Viola, de quem ela já gravara "Dança da solidão" e "Para ver as meninas", está muito bem representado nesse novo disco com "Para mais ninguém".
Ao ser indagada, em entrevista a uma revista, sobre novos talentos da música brasileira, Marisa Monte afirmou que, enquanto as pessoas estão sempre à procura do novo na juventude, ela busca o novo nas gerações anteriores. De fato, algumas músicas de "Universo ao meu redor" foram compostas há mais de cinqüenta anos e nunca haviam sido gravadas, entre elas "Meu canário" (Piu-piu, piu-piu, piu-piu, canta, meu canarinho, para amenizar a minha dor), do mesmo autor de "O pato" (O pato vinha cantando alegremente, quém, quém), o onomatopéico compositor Jayme Silva. A música estava registrada apenas no HD (head-disk) de Monarco, sambista da Portela.
Outro destaque da velha guarda é a canção "Lágrimas e tormentos", mas, como novo e antigo são adjetivos que denotam condição e não qualidade, sambistas mais novos como Adriana Calcanhoto e o trio Marisa, Brown e Arnaldo, atendem satisfatoriamente ao pedido final dos mais velhos, de não deixar o samba morrer, com suas canções "Vai saber" e "Universo ao meu redor", respectivamente.
Os arranjos, de Eumir Deodato, João Donato e Philip Glass, conseguem manter a atmosfera de simplicidade das canções, sem perderem o esmero e o apuro. Nos acompanhamentos, na bateria, Pupilo (Nação Zumbi) e em instrumentos de corda, Jacques Morelenbaum, Nicolas Krassik, Pedro Baby e o inseparável Dadi (A Cor do Som), entre outros. Toda essa mistura, meio bossa nova e rock’n roll, talvez revele o segredo de seu sucesso, a abrangência de seu público e sua percepção de que o Brasil não é só verde, anil e amarelo, o Brasil também é cor de rosa e carvão.
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