14.5.07
Nação nordestina - Parte II
Sendo a Paraíba um dos estados que produz mais cantores e compositores por metro quadrado, era natural que não ficasse de fora quando os ventos do mercado voltaram-se para o nordeste.
Zé Ramalho chegou com estilo, com letras complexas, enigmáticas, de tom profético, apocalíptico, psicodélico. Segundo ele, “música é para botar as pessoas para viajar” e seus discos, realmente, poderiam muito bem ser chamados de “discos voadores”. Como seu primeiro trabalho, um disco experimental em parceria com Lula Côrtes, Paêbirú, de pouca divulgação (escutando-o no escuro, voa-se melhor). Zé tornou-se mais conhecido do público em 1977, quando lançou um disco que trazia uma versão instrumental de “Bicho de sete cabeças” e as canções “Avôhai”* (com Patrick Moraz, do grupo inglês Yes, nos teclados), “Chão de giz” e “Vila do sossego”, alguns de seus maiores sucessos até hoje, que têm histórias interessantes, por ele reveladas em alguns depoimentos, que nos ajudam a entendê-las um pouco melhor.
“Chão de giz” foi feita para um amor platônico dele por uma mulher casada e rica, enquanto “Vila do Sossego” era a casa de praia de uma tia, em João Pessoa. “Em 73, essa casa tornou-se um ponto de encontro de artistas de João Pessoa que se reuniam para fumar um baseado, tomar umas, conversar sobre arte e outros rumos. ... O que aparece na música são citações desses encontros.” (tá explicado!), afirmou o cantor em depoimento ao poeta Jorge Salomão, em 1998. “Avôhai”, por sua vez, ele fez em homenagem ao avô que o criou, o “velho e invisível Avôhai”. Se eu tivesse ido à Vila do Sossego, gostaria de discutir com ele a letra de “Pelo vinho e pelo pão”. Seria uma metamorfose kafkaniana?
Compositor de excelentes trabalhos autorais, Zé Ramalho foi um dos compositores mais gravados por essa geração, com destaque para as interpretações marcantes de Elba Ramalho. Em um de seus melhores discos, o excelente álbum duplo “Nação Nordestina”, lançado em 2000, porém, ele assina apenas seis das vinte faixas. Nas demais, uma gama de compositores nordestinos: Luiz Gonzaga, João do Vale, Geraldo Vandré, Dominguinhos e Gilberto Gil, entre outros. Destaque para a criativa capa, inspirada em “Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, e para o encarte, com belos desenhos e todas as faixas comentadas. Produção de Robertinho do Recife.
A também paraibana Elba Ramalho começou cantando e atuando nas peças musicais “Morte e Vida Severina” e “Ópera do Malandro”, experiência que lhe proporcionou uma excelente presença de palco. Sempre identificada com suas raízes, gravou canções de vários compositores nordestinos, às vezes discos inteiros, como “Leão do Norte”, “Flor da Paraíba” (com exceção de uma faixa) e “Baioque” (deste, apenas a canção-título, de Chico Buarque, não tinha, entre os compositores, alguém da região).
Em 1984, Elba gravou a polêmica canção “Nordeste independente” (Bráulio Tavares / Ivanildo Vila Nova), uma crítica ao descaso e à discriminação sofrida pela região que, naqueles tempos, viveu o auge do coronelismo, do clientelismo, do voto de cabresto. “Já que existe no sul esse conceito / Que o nordeste é ruim, seco e ingrato / Já que existe a separação de fato / É preciso torná-la de direito”, dizia a primeira estrofe da canção, que tinha como refrão: “Imagine o Brasil ser dividido e o nordeste ficar independente”.
O baiano Moraes Moreira começou como integrante do grupo Novos Baianos, cujo primeiro disco foi lançado em 1969, partindo para carreira-solo em 1975. Nessa mesma época, conheceu Armandinho, filho de Osmar Macedo, um dos criadores do trio-elétrico, invenção que completava, então, 25 anos, “desde os tempos da velha fubica”. Este encontro foi fundamental para a definição do estilo musical de Moraes, que se tornou um exímio compositor de músicas carnavalescas, sendo seu primeiro grande sucesso a música “Pombo-correio”, feita em parceria com Dodô e Osmar.
A partir de 1978, continuou a compor belas marchinhas, afoxés e frevos, em parcerias com Fausto Nilo (“Chão da praça”, “Bloco do prazer”, “De noite e de dia”), Capinan (“Cidadão”) e Abel Silva (“Festa do interior”), carnavalizando essa turma que, com Fagner, por exemplo, compunha canções mais intimistas. Em 1981, apresentou-se no festival de Montreux, na Suíça, com Toquinho e Elba Ramalho, o que resultou num disco ao vivo. Outras belas canções suas são “Meninas do Brasil”, com Fausto Nilo, do LP “Bazar brasileiro”, de 1980 e “Lá vem o Brasil descendo a ladeira”, com Pepeu Gomes, do disco de mesmo nome, de 1979.
O ano de 1979, aliás, foi prodigioso com essa turma, todos no auge do reconhecimento artístico, lançando alguns de seus melhores trabalhos. “A Peleja do diabo com o dono do céu”, de Zé Ramalho, por exemplo, contou com acompanhamentos instrumentais de Geraldo Azevedo, Jorge Mautner, Pepeu Gomes e de sua conterrânea Cátia de França. Todas as canções eram de sua autoria, entre elas várias de suas melhores músicas: além da faixa-título, destaque para “Admirável gado novo”, “Beira-mar”, “Garoto de aluguel”, “Pelo vinho e pelo pão” e a instrumental “Agônico”, em que Zé Ramalho toca todos os instrumentos. Merece destaque também a capa, com Zé do Caixão e a atriz Xuxa Lopes.
“Frevo Mulher”, de Amelinha, contou com o mesmo respeitável elenco de compositores, em sua maioria nordestinos, em outras tantas belas canções: “Santa Tereza” (Fagner e Abel Silva), “Galope Rasante” (Zé Ramalho), “Coito das Araras” (Cátia de França) e a melhor gravação de “Dia Branco” (Geraldo Azevedo e Rocha). O mesmo pode-se dizer de “Ave de Prata”, primeiro disco de Elba Ramalho, que tinha, entre as canções, marcantes interpretações de “Não Sonho Mais”, de Chico Buarque, e “Ave de Prata”, de Zé Ramalho. Dois excelentes LP’s, que ainda não foram relançados em formato de CD.
Em “Beleza”, Fagner contou com seus parceiros e compositores habituais e com excelentes arranjos de João Donato. Sua melancolia característica permaneceu presente neste trabalho, através de sua voz, dos arranjos, das melodias e sobretudo dos versos de belas canções, como “Noturno”**, “Asas” e “Beleza”, três de seus maiores sucessos, carregadas de uma tristeza que chegava ao ápice na última faixa do disco, “Elizete”, que ele fez para sua irmã, falecida num acidente de automóvel, naquele ano.
Tantos talentos indiscutíveis, surgidos em condições as mais adversas (parafraseando Belchior, sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindos do interior), servem-nos de orgulho, ao mesmo tempo em que nos fazem refletir e questionar quantos tantos outros são desperdiçados, por falta de oportunidade, até que a gente aprenda que “ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer desse lugar um bom país” (Milton Nascimento).
* Avôhai (Zé Ramalho)
Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas, de ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde coarava sua camisa e seu alforje de caçador
Oh meu velho e invisível Avôhai
Oh meu velho e indivisível Avôhai
Neblina turva e brilhante em meu cérebro, coágulos de sol
Amanita matutina e que transparente cortina ao meu redor
Se eu disser que é meio sabido você diz que é meio pior
É pior do que planeta quando perde o girassol
É o terço de brilhante nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo da porteira
Nem também da companheira que nunca dormia só, Avôhai
O brejo cruza a poeira
De fato existe um tom mais leve na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos que amargam as pessoas que fitar
Mas que bebem sua vida sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas, cabelos de Avôhai
Na pedra de turmalina e no terreiro da usina eu me criei
Voava de madrugada e na cratera condenada eu me calei
Se eu calei foi de tristeza, você cala por calar
E calado vai ficando só fala quando eu mandar
Rebuscando a consciência com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando a carrapeta no jogo de improvisar
Entrecortando eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa pra doutor não reclamar
Avôhai, Avôhai, Avôhai
** Noturno (Graco-Caio Sílvio)
O aço dos meus olhos
E o fel das minhas palavras
Acalmaram meu silêncio
Mas deixaram suas marcas
Se hoje sou deserto
É que eu não sabia
Que as flores com o tempo
Perdem a força
E a ventania vem mais forte
Hoje só acredito
No pulsar das minhas veias
E aquela luz que havia
Em cada ponto de partida
Há muito me deixou, há muito me deixou...
Ai, coração alado
Desfolharei meus olhos
Neste escuro véu
Não acredito mais
No fogo ingênuo da paixão
São tantas ilusões
Perdidas na lembrança
Nesta estrada
Só quem pode me seguir sou eu
Sou eu, sou eu, sou eu...
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2 comentários:
É isso aí Paulo, "as flores com o tempo perdem a força e a ventania vem mais forte". Embora ache que p/ alguns vem mais fraquinha, ou não, como diz Caetano. Talvez eles nem notem que é uma ventania.
Estou fazendo um trabalho sobre Caetano Veloso, Zé Ramalho, e Renato Russo, sobre a identidade do povo brasileiro.. Se vc puder contribuir ajudando a analisar as músicas alegria, alegria, cidadão(zé), e que país é esse, agradeço..cessandrade@hotmail.com
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