29.2.08

Tirando de letra

“Ai, mina, aperta a minha mão, alá meu only you, no azul da estrela”. Se alguém vier com essa conversa pro seu lado, desconverse, não dê ouvidos, diga que tá ocupado e saia de fininho, a menos que esse alguém complete: “Aliás, bazar da coisa azul, meu only you, é muito mais que o azul de Zanzibar Paracuru, o azul da estrela”. Aí, pode ser caso de internação.

Brincadeiras (nem tão) à parte, a primeira impressão de uma canção, em geral, vem da melodia, mas logo passamos a prestar atenção à letra, a qual podemos entender ou não. É sobre essas letras obscuras ou ininteligíveis, mas nem por isso desinteressantes, que me proponho a discutir a seguir, ressaltando que admiro todos os malucos mencionados, bem como suas músicas, e que criar letras assim não é pra qualquer um, é mais do que simplesmente rimar amor e dor, paixão e coração. É saber o que quer, o que pode essa língua, criar confusões de prosódia, profusão de paródias, outras palavras, como diz um dos membros dessa especial e admirável confraria dos metaforistas aloprados, Caetano Veloso.

Para uma introdução ao tema, Zé Ramalho é uma boa opção. Conhecido por seu estilo apocalíptico, ele é capaz de unir a melodias harmoniosas, letras estranhas, místicas, indecifráveis, fazendo a gente cantá-las como se fossem declarações de amor, como: “Quantos dentes eram tristes, quantos eram solidão, outros eram diferentes, não nasceram para o chão. Claros pêlos evidentes nascerão em cada mão, lívidos e conscientes, pelo vinho e pelo pão” ou “meu treponema não é pálido nem viscoso, os meus gametas se agrupam no meu som”, e por aí vai.

Entre essas letras, que mais parecem de médico, há, mesmo, declarações de amor - e bem incomuns - como: “Apesar de colher as batatas da terra, com essa mulher eu vou até pra guerra”. Isso é proposta que se faça? Garanto que ela não iria querer, ainda que fosse a mesma mulher devorada por Djavan, a qual inspirou o Criador a fazer os dinossauros e devia ser, portanto, um pouco feia. Mas, não se avexe não, baião de dois, deixe de manha, deixe de manha e vamos caetanear o que há de bom. Como diz a esfinge devoradora Djavan (decifra-me ou te devoro), também membro do grupo, “a paixão, puro afã, místico clã de sereia, castelo de areia, ira de tubarão, ilusão, o sol brilha por si”. Noutras palavras, o amor é lindo.

Citando, agora, outro mestre da palavra, Gilberto Gil: “ao poeta cabe fazer com que na lata venha a caber o incabível”*. No caso das canções, outros fatores também entram em jogo na concepção de seus versos, como questões fonéticas, compasso, harmonia entre melodia e letra e tudo o mais que diferencia esta da poesia, que se basta. Assim, deve haver alguma explicação para todas essas letras e o segredo para entendê-las talvez seja não levá-las tão ao pé da letra, ou ainda, a partir delas, criar nossas próprias metáforas, as quais podem coincidir ou não com as do autor.

Com Jorge Benjor e Carlinhos Brown, que também fazem malabarismo com as palavras e não têm papas na língua, essa tática da conclusão pessoal pode não funcionar, simplesmente porque, certas vezes, não conseguimos concluir nada. Quando Brown diz: “Magamalabares Acqua Marã, o parquinho oxáiê. Quem esteve aqui, viu barquinho de gazeta ancorar no mistério”, mistério mesmo é o que ele quer dizer com isso. Nesse caso, não é questão de levar ou não ao pé da letra, pois trata-se de letra sem pé (nem cabeça?), do tipo que W/Brasil, de Benjor, é outro bom exemplar: “Cuidado com o disco voador, tira essa escada daí, essa escada é pra ficar aqui fora, eu vou chamar o síndico”.

Se no final, então, tudo nos sugere uma mistura de letras, lembrando o saudoso Gonzaguinha, eu fico com a pureza da resposta de um popular que, entrevistado na rua por Oswaldo Montenegro, num programa musical de televisão (Letras Brasileiras), ao ser indagado sobre qual a letra que tinha marcado sua vida ou que era mais importante pra ele, tirou de letra e respondeu, literalmente: “a letra B”. No mais, estou indo embora...

P.S.: “Zanzibar”, citada no parágrafo inicial, é de autoria de Armandinho e Fausto Nilo, e foi gravada pelo grupo “A cor do som”.



* Metáfora (Gilberto Gil)

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo-nada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

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