22.1.09

Quando o coração fala mais alto

Por esses dias, o nome da cantora Maysa voltou a ser celebrado, graças à minissérie da Rede Globo “Maysa – Quando fala o coração”, baseada em arquivos de família, notícias de jornais e diários escritos por ela própria, mesmo material utilizado pelo livro “Maysa: Só numa multidão de amores”, de Lira Neto (ed. Globo, 2007). O escritor, não obstante, desaprovou a minissérie de Manoel Carlos, dirigida por Jayme Monjardim, filho da cantora *.

Guardadas as proporções devidas aos apelos novelesco-filiais - aceitáveis para um meio de comunicação tão amplo e abrangente como a televisão -, a obra (que bem poderia ter como subtítulo: Quando fala o coração de um filho), mais do que apresentar o trabalho de Maysa a um público novo, proporcionou a uma geração nascida antes de sua morte, mas que não chegou a acompanhar sua carreira, a oportunidade de entender e desmistificar a imagem vaga e distante que fazia dela.

Na época em que faleceu, há trinta e dois anos completados hoje e aos quarenta de idade, sua canção mais famosa, “Meu mundo caiu”, fez parte da trilha sonora da novela “Estúpido Cupido”, da Rede Globo, sendo esse meu primeiro contato com sua obra. A composição de Maysa destacava-se pelo tom melancólico, o que me causava certo desconforto, afinal, à parte o trocadilho, não há nada mais pra baixo que a expressão “meu mundo caiu”.

Ademais, como parte dessa geração a que me referi, que cresceu e despertou para a música depois da Bossa Nova, da Jovem Guarda e do Tropicalismo, eu estranhava um pouco o vozeirão característico dos cantores que surgiram antes desses movimentos e que, depois deles, viraram exceção em vez de regra, como era o caso de Maysa. Com tal prevenção, só bem depois procurei conhecer melhor seu trabalho – e apreciei -, como por meio do disco: “Maysa – Essa chama que não vai passar”, com vários cantores interpretando canções que ela gravou ao longo da carreira, lançado em 2006.

Lira Neto afirma que poucos tiveram vida e arte ligadas de forma tão indissociável quanto Maysa. Na arte, ela manteve-se fiel a seu estilo, mesmo ao decantar (exaltar) a decantada (enxuta) Bossa Nova e gravar canções de Ronaldo Bôscoli - com quem manteve relações musicais e (nem tanto) amorosas -, Tom e Vinícius. O termo brega ainda não era comum, então os ávidos em categorização classificaram tal estilo como cafona, boco moco. Os traços de personalidade que a cantora deixava transparecer em suas autobiográficas composições **, se hoje seriam vistos como sinais de depressão, termo à época ainda não banalizado, eram, então, sintomas de fossa, os quais a tornaram assim conhecida, como cantora de fossa.

Na vida, Maysa reuniu ingredientes de forte apelo popular: riqueza, fama, casos amorosos, autodestruição, transgressões, escândalos provocados por bebedeiras e vice-versa, necessariamente nessa desordem. Vítima da síndrome vínico-jobiniana de tristeza-e-melancolia-que-não-sai-de-mim, seu temperamento forte parecia querer disfarçar uma insegurança que, por sua vez, provocava-lhe a necessidade de ser admirada, aceita, elogiada e de aparecer, a despeito dos desentendimentos frequentes com atitudes invasivas da mídia. Nos relacionamentos em geral, parecia buscar nos outros atitudes paternais sem, contudo, ser maternal, haja vista a relação distante com o filho.

Na minissérie, os números musicais foram um bom recheio, sobretudo pelo fato de as letras das canções encaixarem-se tão bem com a trama, devido a seu já citado conteúdo autobiográfico. A atriz Larissa Maciel, no papel de Maysa, fez um bom trabalho. É no choro que se reconhece um bom ator e, interpretando uma personagem por natureza tão melancólica, era natural que ela tivesse que passar por esse teste. E passou bem, como na cena de um show em Lisboa, em que dedica “Hino ao amor” - versão de uma canção de Edith Piaf -, ao ex-marido, recém-falecido. O coração falou mais alto.



* Trecho inicial do artigo “Minissérie global simplifica e distorce biografia de Maysa”, do escritor Lira Neto, publicado na Folha de São Paulo em 14/1/2009:

Ao assistir aos capítulos de “Maysa - Quando Fala o Coração”, logo me veio à lembrança o dia em que um jornalista quis saber a opinião da escritora Rachel de Queiroz a respeito da adaptação de seu romance “Memorial de Maria Moura” para a televisão, à época também levada ao ar na forma de minissérie. Rachel, com irresistível senso de humor, sapecou: “Até estou gostando; eles lá na Globo é que não gostaram muito de meu livro, pois trataram de mudar tudo na história” (Leia aqui o artigo completo).



** Resposta (Maysa)

Ninguém pode calar dentro em mim
Essa chama que não vai passar
É mais forte que eu
E não quero dela me afastar
Eu não posso explicar quando foi
E como ela veio
E só digo o que penso
Só faço o que gosto
E aquilo que creio
Se alguém não quiser entender
E falar, pois que fale
Eu não vou me importar com a maldade de quem nada sabe
E se alguém interessa saber
Sou bem feliz assim
Muito mais do que quem já falou ou vai falar de mim

8.1.09

Falando a mesma língua – parte II: abrindo um parêntese

O ano novo chegou, junto com o novo acordo ortográfico da língua portuguesa, o qual entrou em vigor, no Brasil, em seu primeiro dia. Devido às dificuldades em sua aprovação – o acordo atingiu a maioridade no ano passado -, ficou decidido que, para a mudança tornar-se oficial, seria necessária a ratificação de apenas três dos oito países da comunidade lusófona (o que ocorreu em 1º de janeiro de 2007) e não de todos, como de início. Até o momento, metade dos países que fazem parte do acordo já o ratificaram: Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Portugal, além do Brasil. A outra metade parece não tê-lo aprovado ainda apenas por ter outras prioridades, não por lhe ser contrária.

Ora, ora, pois, pois, mas estou cá a pensar que a maior parte das análises a respeito desse acordo tem sido feita a partir do ponto de vista luso-brasileiro, sem levar em conta, na discussão dos prós e contras, as situações bem específicas dos demais países envolvidos, sobre os quais não nos chegam muitas informações. Volto ao assunto, então, para escutarmos o outro lado do disco: em lugar de um fado tropical - da linda mulata com rendas do Alentejo e do rio Amazonas que, numa pororoca, deságua no Tejo -, um puro semba africano. Parafraseando Gil, só quem sabe onde é Luanda saberá lhe dar valor.

O escritor angolano José Eduardo Agualusa, defensor do acordo, apresenta importante argumento a seu favor. Com uma produção de livros ainda incipiente, Angola precisa importar bastantes livros de Brasil e Portugal e, num país com alto índice de analfabetismo, o acesso a livros com diferentes grafias aumenta a dificuldade de aprendizado da língua, ainda que sejam poucas as palavras que tiveram alterações gráficas. Para diminuir o problema, os livros didáticos provêm, em geral, exclusivamente de Portugal o que, para ele, justifica, em parte, a resistência desse país à aprovação do acordo: com ele, os portugueses perdem mercado editorial nos países africanos.

Essa redução da influência de Portugal sobre Angola, porém, já vem ocorrendo em outras áreas. No que Agualusa chama de vingança de ex-colônia, a música popular angolana tem sido predominante no mercado português, o que tem feito com que os jovens lusitanos imitem o jeito de falar dos angolanos (algo como o que ocorre com o sotaque carioca em relação ao Brasil), a ponto de ele – natural de Angola, mas, apenas por ser branco, confundido com português -, ao falar em locais públicos de Lisboa, ser interpretado como um português querendo ser moderno ou falar como um jovem.

Um ponto pacífico (e, por isso, também atlântico) é que, mesmo com a cooperação de um sem-número de super-homens, ou talvez por isso mesmo, o recém-nascido acordo foi supereconômico nas mudanças no emprego do hífen, sinal dia a dia crítico. A dificuldade de autoaprendizagem e a necessidade de esforço extraordinário, quase sobre-humano, para assimilar os anti-intuitivos contraexemplos não cessaram de todo. Ainda que tal contrassenso tenda a nos tornar super-resistentes - pra não dizer ultrarresistentes a essas regras -, fazendo-nos sentir semianalfabetos com hífen, lembremos que o supracitado acordo não caiu de paraquedas, foi bem debatido por seus coautores, inclusive com consulta pública – ainda que malsucedida - quanto a sua implementação.

Segundo um caro amigo, só dois ou três chatos deviam entender as anteriores regras do hífen, o que não deve mudar tanto: agora, talvez uns quatro ou cinco venham a entendê-las. Para servir como base para os futuros dicionários, dirimir dúvidas e etc., o documento oficial será o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que está sendo concluído e deverá ser divulgado em breve.

O gramático Evanildo Bechara, membro da Academia Brasileira de Letras, a qual participou ativamente da elaboração do texto do acordo, afirma que a nossa língua era a única, dentre as faladas em mais de um país, em que a grafia não era unificada. Outro acadêmico critica o uso do termo "norma culta" no texto do acordo, termo que, segundo ele, traz uma incorreção política, pois você dizer que um jeito de falar ou escrever é culto, vulgar ou chulo é fazer juízo de valor, quando a melhor maneira de falar, na verdade, é a que vem de dentro de cada um, adequada a suas vivências e experiências, de forma natural e espontânea. Como diria a cantora Ana Carolina, é isso aí!