Após a efervescência dos anos 60, período de tantos movimentos culturais de renovação, a década seguinte representou a colhida dos frutos, a consolidação e o auge da MPB, bem representada por nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, entre outros.
Depois da bonança, vem a tempestade e, com esses nomes já consolidados, era hora de buscar movimentos rumo a outras direções, deixar-se levar por outros ventos. De posse de régua e compasso baianos (aquele abraço), que definiram um novo eixo musical para a MPB - ou ampliaram-no para além do Rio-São Paulo -, foi só seguir a reta ou reforçar a que, mais atrás, fora traçada por Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, para o baião e o forró. Foi assim que, misturando todos esses estilos, uma nova leva de retirantes invadiu o sudeste, entre eles Elba Ramalho, que se tornou uma espécie de musa nordestina da geração pós-festivais, no final dos anos 70*.
De Pernambuco, fizeram parte dessa turma Alceu Valença e Geraldo Azevedo, reforçando uma tendência de pouca presença feminina na música do estado (e não só nela, na política, por exemplo, também). Sempre que a música pernambucana despontou nacionalmente, os nomes de destaque foram, com raras exceções, do sexo masculino, seja na MPB de Lenine, seja na época áurea do frevo (Antônio Maria, Nelson Ferreira, Capiba), do forró (Luiz Gonzaga, Dominguinhos) ou do manguebeat (Chico Science, Fred Zero Quatro, Otto). A paraibana Elba Ramalho, por sua relação bem próxima com Pernambuco, cobriu um pouco essa lacuna.
Também por essa afinidade recíproca, o aniversário de 473 anos do Recife, comemorado no último dia 12 de março, teve como principal atração o show de Elba, que celebrou, também, seus trinta anos de carreira. A apresentação foi registrada e resultou em seu trigésimo trabalho, marco zero - ao vivo, que acaba de ser lançado pela gravadora Biscoito Fino, em CD.
Para quem não conhece a capital pernambucana, vale salientar que o título do disco faz referência ao local onde ocorreu o evento. A praça Rio Branco, no bairro do Recife (também conhecido como Recife Antigo), centro histórico do município, ficou conhecida pelo nome de praça do Marco Zero, a partir de 2000, quando, por ocasião das comemorações da virada do milênio, foi reformada e ampliada (sob certo protesto, por ter derrubado algumas árvores), transformando-se, a partir de então, no principal palco de apresentações ao ar livre local, sobretudo durante o carnaval. O nome é referência ao fato de ali ter surgido a cidade e dali serem medidas todas as distâncias aos demais pontos do município e do estado.
Discos comemorativos de datas especiais, por terem uma certa obrigação de serem representativos de um período – e é difícil que seja diferente -, tornam-se uma espécie de mais do mesmo e mesmo de mais. Em marco zero - ao vivo, Elba repetiu essa fórmula, mas procurou equacioná-la com outras variáveis. Contou com participações especiais (Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Lenine, Alcione, Chico César e André Rio) e, de alguns compositores constantes em sua carreira, escolheu canções que ainda não faziam parte de seu repertório, como Anunciação, de Alceu Valença, que abre o show e o disco***.
Dentro do mais do mesmo, Zé Ramalho, por exemplo, não poderia ficar de fora. Dele, foram quatro canções: Banquete de Signos, Chão de Giz, Admirável Gado Novo e Frevo Mulher, sendo as duas últimas inéditas no repertório de Elba. Geraldo Azevedo e Nando Cordel contribuíram com duas, o primeiro com Canta coração e Chorando e cantando, o segundo com É só você querer e De volta pro aconchego** – uma das canções mais bonitas e representativas da carreira de Elba.
Chico Buarque marcou presença com O meu amor, outra canção importantíssima do repertório da cantora (da Ópera do Malandro), que abriu as portas para o seu reconhecimento nacional (ao lado de sua atuação na peça Morte e Vida Severina) e Morena de Angola, mais conhecida na voz de Clara Nunes. Não sonho mais, também de Chico e, essa sim, a cara de Elba, ficou de fora e fez falta. Completando o disco, Pavão Mysterioso (Ednardo), Chuva de sombrinhas (André Rio / Nena Queiroga), frevo pouco conhecido nacionalmente, mas sucesso no carnaval pernambucano e Queixa (Caetano Veloso), de cujo autor ela recebeu o apelido de Flor da Paraíba, que virou título de um de seus discos (1998).
Lenine, outro parceiro constante, sugeriu participar não com uma canção de sua autoria, mas na interpretação de Queixa, num dueto com Elba. Outra curiosidade do disco, dentro da porção diferente do mesmo, foi a presença de um único forró, resgate do disco anterior, Balaio de amor (2009): É só você querer, certamente não o mais importante ou representativo da carreira da cantora. Logo ela, que levou o popular ritmo de volta às FM’s, com qualidade, por meio de inúmeros sucessos, desde Não sonho mais e Bodocongó, do primeiro disco, Ave de prata (1979), cuja canção-título, por sinal, não é um forró, mas também merecia ter entrado no novo disco, dentro do quinhão que coube a Zé Ramalho.
* Leia também: Nação nordestina – Parte I e Nação nordestina – Parte II
** De volta pro aconchego (Dominguinhos / Nando Cordel)
Estou de volta pro meu aconchego
Trazendo na mala bastante saudade
Querendo um sorriso sincero um abraço
Para aliviar meu cansaço
E toda essa minha vontade
Que bom poder estar contigo de novo
Roçando teu corpo e beijando você
Pra mim tu és a estrela mais linda
Teus olhos me prendem fascinam
A paz que eu gosto de ter
É duro ficar sem você vez em quando
Parece que falta um pedaço de mim
Me alegro na hora de regressar
Parece que eu vou mergulhar
Na felicidade sem fim
*** Abertura do show no Marco Zero (12/03/2010)
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