“O amor é feito capim, mas veja que absurdo, a gente planta, ele cresce, aí vem uma vaca e acaba tudo” (Rodrigo Mell / Elvis Pires)
Impelido a expelir todo ar de superioridade que porventura pudesse correr debaixo do meu nariz, sempre busquei dar ouvidos ao que “vem debaixo e me atinge”, àquilo que não sei, mas quero saber e não tenho raiva de quem sabe. Um estilo musical que, embalado com diferentes rótulos, do cafona ao brega, queira ou não, tem embalado nossos ouvidos ao longo do tempo e não pode ser ignorado. Mesmo assim, e supondo conhecer uma boa quantidade de músicas brasileiras, percebo, impressionado, o mundo à parte das canções que, geralmente restritas à periferia das cidades, rompem a barreira do som, levadas pelas carrocinhas de cd’s, que as transportam a outros habitat’s (como a citada acima, que escutei outro dia, na praia).
Sob outro aspecto, que não o social, por vezes, chama-se de brega tudo aquilo que parece vir repleto de exagero sentimental, preferencialmente de forma pouco ortodoxa em relação à cartilha tradicional. Nesse ponto, os conceitos de brega e romântico aproximam-se. Lembrando Fernando Pessoa, todas as cartas de amor, todas as palavras esdrúxulas, como os sentimentos esdrúxulos, são naturalmente ridículas. Já nos versos de Caetano Veloso, ser romântico é cantar somente o que não pode mais se calar. Outras vezes, ainda, o termo brega é confundido com antigo, o que torna o rótulo transitório. Qualquer que seja o conceito, temos todos um lado brega, que não resiste a sair cantarolando músicas verdadeiramente populares.
É próprio do ser humano procurar seguir um comportamento padrão e evitar se distanciar muito daquilo que é definido como convencional, desde que o padrão e o convencional, aí, sejam aqueles determinados por seus iguais, num círculo vicioso e retroalimentado. Algo que o diferencie ou destaque perante os demais, como se existisse um padrão A e um padrão B, divisão, em geral, definida pelo lado A. Enfim, uma busca por ser igual aos iguais, mas diferente dos diferentes.
Ainda que próprio da natureza humana, no ramo musical, esse pensamento delineou-se de forma mais clara entre os anos 60 e 70. Uma das demonstrações disso foi o surgimento, nesse período, da sigla MPB para designar uma música diferenciada, curiosamente denominada música popular brasileira (se bem que o popular, aí, está em oposição a erudito). Era época de mudanças, em que a polarização entre correntes políticas refletiu-se, também, na música. De um lado, canções de protesto, nacionalismo, de outro, Tropicalismo, guitarras elétricas. De um lado, a Bossa Nova dos universitários e intelectuais, do outro a Jovem Guarda da juventude despolitizada, um dos pilares do estilo que viria a ser caracterizado como brega.
Nessa época, popularizou-se o rótulo de cafona, para designar o mau gosto e, por conseguinte, cantores e músicas consideradas de qualidade inferior. Vem daí minha primeira referência desse estilo de música:
Eu não sou cachorro não, de Waldick Soriano, que virou até título de livro sobre o tema. O compositor Paulo Sérgio Valle, autor de
O cafona, tema de novela de mesmo nome da Globo, ironicamente, representou um caso emblemático de trânsito livre entre os diversos caminhos musicais: compôs
Viola enluarada e
Preciso aprender a ser só, com o irmão Marcos Valle,
Sábado e
Evidências, com José Augusto.
Nos anos 70, multiplicaram-se os fenômenos (Amado Batista, Odair José, Fernando Mendes) de uma música que, livre de qualquer patrulhamento ou direcionamento por parte da
intelligentsia, ou
burritsia, transbordava temas passionais, dramáticos, bizarros, de que
O fruto do nosso amor é exemplo clássico:
“No hospital, na sala de cirurgia, pela vidraça, eu via você sofrendo a sorrir. E seu sorriso aos poucos se desfazendo, então vi você morrendo, sem poder me despedir”. Outras honravam discriminados ou excluídos, como empregadas domésticas (
Deixa essa vergonha de lado*), prostitutas (
“Eu vou tirar você desse lugar / Eu vou levar você pra ficar comigo / E não interessa o que os outros vão pensar”), cadeirantes (
Cadeira de rodas) e anônimos (
A desconhecida).
Nos anos 80, o cafona virou brega e aquela avacalhação positiva da época, da qual Chacrinha foi a melhor representação, provocou uma rearrumação e juntou tudo num só caldeirão: o brega invadiu as fm’s. Vieram, em seguida, como uma avalanche, o pagode, o forró estilizado e o sertanejo, variações mais simplificadas, em letra e melodia, dos tradicionais samba, forró pé-de-serra e música caipira. O amor permanecia como tema central, a cicatrizar cotovelos doloridos, por meio de canções como
Não aprendi dizer adeus e
Nuvem de lágrimas (sucessos de Leandro e Leonardo, Chitãozinho e Xororó), em shows caros e bem produzidos.
Não tardou a se tentar nova separação, inclusive no dial, torcido junto com o nariz dos descontentes. Além disso, de lá pra cá, a pirataria - que não se restringe à camada menos favorecida da população -, a despeito de seus aspectos negativos, teve o mérito de tornar o mercado de discos mais acessível a esse grupo, tornando-se, para os sem-internet, uma alternativa aos
downloads em banda larga. Surgiu, então, uma espécie de brega do b, um mercado paralelo, reivindicando de volta para si o que fora apropriado por ouvidos medianos (de classe média), frequentadores dos caros
hall's da vida.
O conceito de brega na música, vale salientar, engloba não apenas a canção, mas também o intérprete - sua voz, postura, vestuário e o que mais possa ser objeto de comparação, ou seja, tudo. E tudo depende da maneira como se vê, o que explica como uma mesma canção pode ser recebida de maneiras diferentes, quando interpretada por nomes da MPB ou por cantores mais populares. A elite narcisista acha feio o que não é espelho.
Obs.: Escute aqui outro clássico do cancioneiro brega: Prometemos não chorar (Barros de Alencar), com destaque para o imenso esnobismo do personagem e o barulhinho da xícara em “- seu café está esfriando”.
* Deixe essa vergonha de lado (Odair José / Andreia Teixeira)
Eu já sei que nessa casa onde você diz morar
Onde todo dia no portão eu venho lhe esperar
Não é a sua casa
Eu já sei que o seu quarto fica lá no fundo
E que se você pudesse fugia desse mundo
E nunca mais voltava
Eu já sei que esse garoto que você leva pra brincar
E que todo dia na escola você vai buscar
Não é o seu irmão
Ele é filho dessa gente importante
E às vezes também é seu por um instante
Apenas dentro do seu coração
Deixe essa vergonha de lado
Pois nada disso tem valor
Por você ser uma simples empregada
não vai modificar o meu amor
Eu já sei por que você não me convida pra entrar
E se falo nessas coisas você procura disfarçar
Fingindo não entender
Eu já sei por que você não me apresenta aos seus pais
Eu entendo a razão de tudo isso que você faz
É medo de me perder
Eu já sei que na verdade nada disso você quis
você simplesmente pensou em ser feliz
Aí não quis dizer
Mas você de uma coisa pode ter certeza
O amor que você tem por mim é a maior riqueza
Que eu preciso ter