Naquele dia, acordei com o som de um carro tocando algo no estilo tchê tchererê tchê tchê em altos decibéis e pensei, ainda atordoado: é um sonho ou estarei, logo mais, frente a frente com um ex-beatle? Depois de Ringo Starr, cri que minha cota de beatles a domicílio tinha-se esgotado, já que achava impossível uma vinda de Paul McCartney ao nordeste brasileiro. E os demais, John Lennon e George Harrison, ainda que não menos atraentes, eu não queria ver tão cedo...
Anos atrás, não
imaginaria estar a menos de sete mil quilômetros de distância de
Paul. Ele não viria ao Brasil. Veio. Refiz os cálculos e passei,
então, a imaginar que a distância entre nós nunca seria menor do
que dois mil quilômetros. Ele não sairia do eixo Rio-São Paulo.
Saiu. Por alguns dias, estive a menos de três quilômetros dele. Por
algumas horas, a menos de cem metros. Por alguns segundos, a menos de
três metros. Uma longa e sinuosa estrada levou-me ao campo. Segui
caminhando, sem preocupações, olhando aquelas pessoas solitárias,
sem saber de onde vinham. Chegando lá, embaixo do céu azul
suburbano, senti algo que não pude esconder. Todos os meus problemas
pareciam bem distantes. Só aguardava esse momento pra ser livre.
Noites solitárias nunca mais. Arruda Fields Forever.
Embaixo do céu
suburbano e estrelado, eis que surgiu mais uma estrela, a maior da
música pop mundial, cujo brilho fez-se ainda mais intenso por sua
disposição e simpatia demonstrados ao longo do show e em toda sua
estada na capital pernambucana. De dentro do carro que o levava,
vidro aberto, acenou para o público, na chegada ao estádio do
Arruda (os três metros de que falei acima), entrou e saiu do hotel
sempre pela porta da frente, posou para fotos com policiais militares
que iriam trabalhar durante o show, distribuiu autógrafos, levou
gente ao palco e interagiu com o público durante incríveis três
horas de um espetáculo pontual (quase quarenta canções, com
algumas variações do primeiro para o segundo dia), entre várias
outras demonstrações de gentileza.
Não sabia que seria
possível admirá-lo ainda mais. Vê-lo cantar All my loving, logo nos primeiros minutos da
apresentação, vestido com o mesmo modelo de terno, tocando baixo do
mesmo jeito, com os mesmos movimentos corporais do passado e com
imagens dos Beatles no fundo do palco foi uma experiência
encantadora. Sensação semelhante a visitar um lugar que se conhecia
apenas, mas intensamente, dos livros de história. Outros arroubos
foram Eleanor Rigby, Yesterday
ao violão, no segundo bis e, da fase pós-Beatles (com
o grupo Wings), Band on the run
e Live and let die,
com belos efeitos especiais. Empaulgação ilimitada,
para quem presenciava um momento histórico.
Ao piano, Paul cantou
três de suas mais belas canções: Hey Jude, Let it be e
The long and winding road.
Sobre esta, o cantor revelou, em Many years from now
(Barry Miles, 1997), sua biografia autorizada: “É uma
canção triste, porque fala do inatingível. (…) É a estrada em
que nunca se chega ao fim.” e
confessou: “Gosto de compor músicas tristes”.
Neste mesmo livro, ele citou Bach como um dos compositores prediletos
dos Beatles e uma de
suas fontes de inspiração, como na canção Blackbird,
também cantada no Arrudão, que alude à luta dos negros americanos
por direitos civis e lembrou-me, também, o nosso Íbis. Vê-se que a
boa qualidade harmônica e melódica das 'músicas tristes' dos
rapazes de Liverpool não era casual.
Reverências aos
ex-companheiros de banda – John, George e Ringo – e de vida –
Linda e Nancy – foram mais alguns dos inúmeros momentos marcantes
da apresentação. George Harrison foi homenageado com algo do que
fez de melhor: Something,
Ringo com Yellow submarine
e Lennon com Here today,
composta por Paul como um tributo ao companheiro. My valentine *,
canção que fez para Nancy, sua atual esposa e que está em seu novo
disco Kisses on the bottom,
mostra que o gentleman
Paul não perdeu a fórmula da boa música.
Em entrevista à revista Época, dias antes do show, Paul
McCartney fez interessante comparação entre o público que o
prestigiava no tempo dos Beatles e o atual: “Percebo que o
público que vem aos shows hoje é formado por crianças,
adolescentes e adultos. É engraçado porque, no tempo dos Beatles,
as coisas eram muito diferentes. A gente cantava rock para jovens que
expressavam por meio da música sua rebeldia em relação aos pais.
Era o conflito de gerações típico dos anos 1960. Hoje não há
mais conflito de gerações. As famílias vão aos concertos de rock.
(...) Sinto-me muito bem nessa situação que talvez parecesse
excêntrica há 50 anos, porque sou um sujeito bem família”.
Essa diversidade de
público foi perceptível no show do Arruda, em que seus fãs de
carteirinha portavam desde as estudantis até as de idosos. Em se
tratando de show em estádio, o som pareceu impecável e o cuidado
com este aspecto em suas apresentações também foi frisado por Paul
nessa entrevista. Quanto ao fato de apresentar-se no Recife e em
Florianópolis, ele afirmou que, desde a época dos Beatles, sempre
quis ir aos mais diversos lugares, o que nem sempre foi possível.
A predisposição do
cantor, aliada ao crescimento econômico do Brasil - mais
especificamente, do nordeste do país – e a consequente e crescente
percepção, por parte de produtores musicais, de que o mundo não
gira apenas em torno do eixo Rio-São Paulo, tornou possível este
acontecimento inédito e inesquecível. Como disse um amigo, impossível ficar em casa sabendo que Paul estaria
tocando aqui perto. Para mim e demais torcedores do Santa Cruz
presentes, assistir ao show do ídolo em casa foi um privilégio
ainda maior.
* My valentine (Paul McCartney)