26.4.12

Arruda fields forever

(O sonho não acabou)


 Naquele dia, acordei com o som de um carro tocando algo no estilo tchê tchererê tchê tchê em altos decibéis e pensei, ainda atordoado: é um sonho ou estarei, logo mais, frente a frente com um ex-beatle? Depois de Ringo Starr, cri que minha cota de beatles a domicílio tinha-se esgotado, já que achava impossível uma vinda de Paul McCartney ao nordeste brasileiro. E os demais, John Lennon e George Harrison, ainda que não menos atraentes, eu não queria ver tão cedo...

Anos atrás, não imaginaria estar a menos de sete mil quilômetros de distância de Paul. Ele não viria ao Brasil. Veio. Refiz os cálculos e passei, então, a imaginar que a distância entre nós nunca seria menor do que dois mil quilômetros. Ele não sairia do eixo Rio-São Paulo. Saiu. Por alguns dias, estive a menos de três quilômetros dele. Por algumas horas, a menos de cem metros. Por alguns segundos, a menos de três metros. Uma longa e sinuosa estrada levou-me ao campo. Segui caminhando, sem preocupações, olhando aquelas pessoas solitárias, sem saber de onde vinham. Chegando lá, embaixo do céu azul suburbano, senti algo que não pude esconder. Todos os meus problemas pareciam bem distantes. Só aguardava esse momento pra ser livre. Noites solitárias nunca mais. Arruda Fields Forever.

Embaixo do céu suburbano e estrelado, eis que surgiu mais uma estrela, a maior da música pop mundial, cujo brilho fez-se ainda mais intenso por sua disposição e simpatia demonstrados ao longo do show e em toda sua estada na capital pernambucana. De dentro do carro que o levava, vidro aberto, acenou para o público, na chegada ao estádio do Arruda (os três metros de que falei acima), entrou e saiu do hotel sempre pela porta da frente, posou para fotos com policiais militares que iriam trabalhar durante o show, distribuiu autógrafos, levou gente ao palco e interagiu com o público durante incríveis três horas de um espetáculo pontual (quase quarenta canções, com algumas variações do primeiro para o segundo dia), entre várias outras demonstrações de gentileza.

Não sabia que seria possível admirá-lo ainda mais. Vê-lo cantar All my loving, logo nos primeiros minutos da apresentação, vestido com o mesmo modelo de terno, tocando baixo do mesmo jeito, com os mesmos movimentos corporais do passado e com imagens dos Beatles no fundo do palco foi uma experiência encantadora. Sensação semelhante a visitar um lugar que se conhecia apenas, mas intensamente, dos livros de história. Outros arroubos foram Eleanor Rigby, Yesterday ao violão, no segundo bis e, da fase pós-Beatles (com o grupo Wings), Band on the run e Live and let die, com belos efeitos especiais. Empaulgação ilimitada, para quem presenciava um momento histórico.

Ao piano, Paul cantou três de suas mais belas canções: Hey Jude, Let it be e The long and winding road. Sobre esta, o cantor revelou, em Many years from now (Barry Miles, 1997), sua biografia autorizada: “É uma canção triste, porque fala do inatingível. (…) É a estrada em que nunca se chega ao fim.” e confessou: “Gosto de compor músicas tristes”. Neste mesmo livro, ele citou Bach como um dos compositores prediletos dos Beatles e uma de suas fontes de inspiração, como na canção Blackbird, também cantada no Arrudão, que alude à luta dos negros americanos por direitos civis e lembrou-me, também, o nosso Íbis. Vê-se que a boa qualidade harmônica e melódica das 'músicas tristes' dos rapazes de Liverpool não era casual.

Reverências aos ex-companheiros de banda – John, George e Ringo – e de vida – Linda e Nancy – foram mais alguns dos inúmeros momentos marcantes da apresentação. George Harrison foi homenageado com algo do que fez de melhor: Something, Ringo com Yellow submarine e Lennon com Here today, composta por Paul como um tributo ao companheiro. My valentine *, canção que fez para Nancy, sua atual esposa e que está em seu novo disco Kisses on the bottom, mostra que o gentleman Paul não perdeu a fórmula da boa música.

Em entrevista à revista Época, dias antes do show, Paul McCartney fez interessante comparação entre o público que o prestigiava no tempo dos Beatles e o atual: “Percebo que o público que vem aos shows hoje é formado por crianças, adolescentes e adultos. É engraçado porque, no tempo dos Beatles, as coisas eram muito diferentes. A gente cantava rock para jovens que expressavam por meio da música sua rebeldia em relação aos pais. Era o conflito de gerações típico dos anos 1960. Hoje não há mais conflito de gerações. As famílias vão aos concertos de rock. (...) Sinto-me muito bem nessa situação que talvez parecesse excêntrica há 50 anos, porque sou um sujeito bem família”.

Essa diversidade de público foi perceptível no show do Arruda, em que seus fãs de carteirinha portavam desde as estudantis até as de idosos. Em se tratando de show em estádio, o som pareceu impecável e o cuidado com este aspecto em suas apresentações também foi frisado por Paul nessa entrevista. Quanto ao fato de apresentar-se no Recife e em Florianópolis, ele afirmou que, desde a época dos Beatles, sempre quis ir aos mais diversos lugares, o que nem sempre foi possível.

A predisposição do cantor, aliada ao crescimento econômico do Brasil - mais especificamente, do nordeste do país – e a consequente e crescente percepção, por parte de produtores musicais, de que o mundo não gira apenas em torno do eixo Rio-São Paulo, tornou possível este acontecimento inédito e inesquecível. Como disse um amigo, impossível ficar em casa sabendo que Paul estaria tocando aqui perto. Para mim e demais torcedores do Santa Cruz presentes, assistir ao show do ídolo em casa foi um privilégio ainda maior.

* My valentine (Paul McCartney)

1.4.12

Raul toca

Eu devia estar sorrindo e orgulhoso por ter finalmente vencido na vida, mas eu acho isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa” (Raul Seixas)


Abrindo as portas de abril, que se apresenta como mês promissor para os apreciadores da música pop(ular) em vários gêneros, com shows especiais como Maria Rita interpretando Elis Regina, o retorno do grupo Los Hermanos, nova turnê brasileira de Paul McCartney e novo show de Chico Buarque, entrou em cartaz nos cinemas nacionais o filme RaulSeixas – O início, o fim e o meio, de Walter Carvalho (Cazuza – O tempo não para, Budapeste).

No filme, a carreira do cantor e compositor baiano é mostrada em interessante paralelo com seus relacionamentos afetivos, dos quais, em meio a depoimentos de amigos, admiradores e parceiros, os testemunhos de parentes são os mais reveladores. Dentre as mulheres com quem o músico viveu, apenas a primeira não quis ser entrevistada: escreveu uma carta, em que afirma não querer falar no assunto. As demais companheiras, bem como suas filhas, referem-se a ele de forma, em geral, carinhosa. Uma das mulheres apresenta o neto adolescente do maluco beleza, nascido nos EUA, como o filho que Raul não teve. A semelhança entre avô e neto impressiona.

O início – Nos anos 60, contagiado pela onda roqueira que assolava o mundo e o país, Raul Seixas aproximou-se de um dos destaques da Jovem Guarda, Jerry Adriani, a quem acompanhou em shows. Pouco depois, lançou seu primeiro disco, Raulzito e os Panteras e trabalhou, também, como produtor musical. No início dos anos 70, lançou outro trabalho, junto com Sérgio Sampaio, Miriam Batucada e Edy Star: Sociedade da grã-ordem kavernista apresenta sessão das dez.

O fim – O filme de Walter Carvalho aborda, por meio de depoimentos e imagens, um aspecto polêmico do final da carreira de Raul Seixas, em que ele aproximou-se do também cantor e compositor Marcelo Nova, ex-vocalista e líder da banda Camisa de Vênus. A discussão deu-se em relação ao comportamento de Marcelo Nova, visto por uns como oportunista - que estaria se aproveitando da fama de Raul - e por outros como solidário, que o estaria ajudando, num momento em que ele estava debilitado e um tanto esquecido.

O meio - Em 1973/74, Raul Seixas fez dois de seus melhores e mais destacados discos, Krig-ha Bandolo e Gita, que têm no repertório vários de seus clássicos: Metamorfose ambulante, Medo da chuva, Mosca na sopa, Sociedade alternativa, O trem das sete, Ouro de tolo e Gita, as três últimas também gravadas por Zé Ramalho (fez um disco inteiro cantando Raul), Caetano Veloso e Maria Bethânia, respectivamente. Neles, teve início sua parceria com Paulo Coelho, que duraria até perto do final da década, com algumas canções de Mata virgem* (78). Nessa época, as trilhas sonoras nacionais das novelas da Globo eram encomendadas a um único artista ou grupo e, não bastassem os dois citados discos, as canções de O rebu (1974) ficaram a cargo da prolífica dupla.

A irreverência, característica tão agradável aos olhos infantis, ajuda a explicar a empatia que certos grupos musicais despertam nas crianças ao longo do tempo. Essa irreverência é percebida não só na obra do conjunto - a música em si -, mas no conjunto da obra - as atitudes, a postura, a aparência, as vestimentas dos músicos. Na década de 70, esse comportamento foi visto, de forma mais intensa, tanto nos Secos & Molhados, como em Raul Seixas. Duas das composições que mais marcaram os infantes daquela geração vieram deles: O vira, dos primeiros e Mosca na sopa, do segundo. Indiferentes a qualquer sentido político-social da letra de Mosca na sopa, era a interpretação literal que agradava às crianças, além do ritmo, uma mistura de baião com rock.

Falando em baião e rock, Luiz Gonzaga e Elvis Presley sempre foram identificados por Raulzito como suas maiores fontes de inspiração e é perceptível a mistura dos estilos dos dois músicos em suas composições. É empolgante uma cena do filme em que ele, ao citar essas influências, emenda uma música de Elvis com a Asa Branca de Gonzagão, num encaixe perfeito, que fala por si só. É mosca na sopa. Já nos exagerados anos 80, em que a irreverência foi mais regra que exceção, Raul voltou a se aproximar do universo infantil com Carimbador Maluco - tema do especial Plunct Plact Zuuum, da Rede Globo -, para surpresa de seus já crescidinhos fãs.

Parecido com o que ocorreu com o público infantil, a identificação dos jovens com Raul deu-se, em boa parte, por conta de sua postura rebelde. Por meio de suas canções, ele expôs ao público um ponto de vista divergente ou alternativo quanto a conceitos firmados como vencer na vida ou ser normal, tratados como absolutos por quem tem aquela velha opinião formada sobre tudo, inclusive sobre o que é vencer na vida ou ser normal.




* Mata virgem (Raul Seixas / Tania Menna Barreto)

Você é um pé de planta
Que só dá no interior
No interior da mata
Coração do meu amor

Você é roubar manga
Com os moleques no quintal
É manga rosa, espada
Guardiã no matagal

Qual flor de uma estação
Botão fechado eu sou
Se amadurecendo
Pra se abrir pro meu amor

Úmida de orvalho
Que o sol não enxugou
Você é mata virgem
Pela qual ninguém passou

É capinzal noturno
Escuro e denso protetor
De um lago leve e morno
Teu oásis seu amor