Gonzaga
- de pai pra filho*, de Breno Silveira (Dois
filhos de Francisco, À beira do caminho), é
mais uma merecida homenagem a Luiz Gonzaga, no ano de seu centenário.
Com um competente elenco, o filme enfoca a vida do nosso mestre desde
a adolescência e percorre toda sua carreira - o começo difícil, o
auge, o ostracismo e a volta, com destaque para seu relacionamento
conturbado com o filho Luiz Gonzaga Júnior.
O
nascimento do filho, em 1945, coincidiu com outros eventos de grande
importância e mesmo determinantes na vida futura de Luiz Gonzaga,
desde a gravação dos primeiros discos como cantor, até o encontro
com Humberto Teixeira, com quem criaria o baião, ritmo que dominaria
o cenário da música brasileira até o surgimento da bossa nova, em
1958. Gonzaga viu-se, então, entre a carreira - incipiente, mas
ascendente - e a criação do filho, cuja mãe morrera precocemente.
Sem poder cuidar dos dois, optou pela carreira, com o pensamento de
viabilizar, mais pra frente, a dupla responsabilidade, o que, por uma
série de fatores, e entre uma e outra tentativa malsucedida, nunca
vingou. O menino foi criado no morro de São Carlos pelos padrinhos,
Dina e Henrique, casal de amigos que recebera seu pai no Rio de
Janeiro.
O fato de
terem crescido em ambientes e culturas tão díspares só realçou as
diferenças entre pai e filho, o que, aliado a uma natural denegação
da influência do primeiro sobre o segundo, refletiu-se na música
deste, bastante desvinculada do viés nordestino da música daquele.
Outra diferença: Gonzaguinha compunha quase sempre só, Gonzaga,
quase sempre não. Em comum, o talento para a música, transmitido de
pai pra filho.
A música
de Luiz Gonzaga e seus parceiros carrega a emoção mais contida do
sertanejo, o falar cantando, o aboio em forma de canção, o norte.
Quer em ritmo de alegria, leveza ou ingenuidade com um toque de
malícia, quer em tom de introspecção, lamento, saudade ou
resignação, os sentimentos e comportamentos são sempre
confrontados com elementos comuns à realidade sertaneja, voltados
àquele microuniverso, por meio de linguagem própria e bem peculiar:
“Mandacaru
quando fulora na seca / é o sinal que a chuva chega no sertão /
toda menina que enjoa da boneca / é sinal de que o amor já chegou
no coração”, “Assum preto, meu cantar / é tão triste como o
teu / também roubaram o meu amor / que era a luz, ai, dos olhos
meus”, “Saudade assim faz roer e amarga que nem jiló”, “Quando
a ribaçã de sede / bateu asas e voou / foi aí que eu vim me embora
/ carregando a minha dor”, “Ai, juazeiro / ela nunca mais
voltou”, “Tendo um coração vazio / vivo assim a dar psiu /
sabiá vem cá também”, “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação”...
A música
de Gonzaguinha é urbana e reflete o ritmo de vida acelerado, de
emoções exacerbadas, o cantar falando, verbos soltos em desabafo, o
desnorte. Expõe nossas limitações e os limites a que somos
expostos diante desse quadro, de forma incisiva: “não
dá mais pra segurar, explode coração”, “só sinto no ar o
momento em que o copo está cheio e que já não dá mais pra
engolir”, “coração na boca, peito aberto, vou sangrando”.
Não por um linguajar contundente, mas pelo caráter autobiográfico,
Com a perna no mundo**
tem forte carga emocional e beleza redobrada.
Ao mesmo
tempo, e em contraponto, Gonzaguinha destila versos doces, como em
Espere por mim, morena ou Diga lá, coração e
mensagens afirmativas: “eu acredito é na
rapaziada / que segue em frente e segura o rojão”, “eu sei que a
vida devia ser bem melhor e será”, “fé na vida, fé no homem,
fé no que virá”, “eu apenas queria que você soubesse que
aquela alegria ainda está comigo”. Maria
Bethânia, Simone e Elis Regina foram suas melhores intérpretes.
Posicionamento
político era outra diferença visível entre pai e filho. Gonzaga
Jr. pertence a uma geração cujo fim da adolescência coincide com o
início do período de ditadura militar no Brasil. Durante a
faculdade, iniciou seu engajamento político, junto com sua carreira
musical, ao participar do movimento artístico universitário (MAU),
ao lado de Ivan Lins, Aldir Blanc e outros. O movimento prosperou e,
no início dos anos 70, gerou como frutos disco e programa de tv (Som
Livre Exportação). Logo depois, Gonzaguinha
lançou seu primeiro LP, que incluía Comportamento geral, sua irônica e
mais conhecida canção de protesto (“Você
merece, você merece / Tudo vai bem, tudo legal / Cerveja, samba e
amanhã, seu Zé / Se acabarem com teu carnaval?”).
O filme
faz uma retrospectiva da vida de Luiz Gonzaga, tomando por base um
depoimento real do rei do baião a Gonzaguinha. Num interessante
recurso, os momentos mais importantes de suas carreiras são
mostrados ora em cenas filmadas, ora em imagens reais, culminando com
o primeiro encontro entre pai e filho no palco, num show em 1981,
cantando Vida de viajante. A volta de
Gonzaga a Exu, depois da fama, por tantas e brilhantes vezes contada
e cantada por ele, é bem ilustrada no filme, bem como sua boa
relação com o pai Januário e a grande influência deste em sua
carreira.
Um Luiz,
outro Luiz. Quase partiram juntos. Um luz, outro reluz. Não importa
que Exu e São Carlos não sigam a mesma doutrina, que a longa
avenida de gás neon não se encontre com a estrada de Canindé ou
que o riacho do navio não deságue no lindo lago do amor. Nesse
imenso salão ou numa sala de reboco, num pé de serra pernambucano
ou num morro carioca, no sertão ou perto do mar, a essência da arte
é a mesma: vida (e vice-versa). E essas duas, particularmente, os
seguintes versos de Gonzaguinha parecem, por simples acaso, definir
com precisão: “Para quem bem viveu o amor,
duas vidas que abrem não acabam com a luz. São pequenas estrelas
que correm no céu, trajetórias opostas, sem jamais deixar de se
olhar”.
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