Entre os anos 20 e 30 do século passado, as escolas de samba do Rio de Janeiro tinham como mestres nomes como Cartola e Ismael Silva. Surgidas no subúrbio, tais escolas eram manifestações do povo, pelo povo e para o povo, numa democracia musical, afinada e harmônica. Depois, vieram Martinho da Vila, Paulinho da Viola, entre tantos outros que contribuíram para fazer do samba esse ritmo tão popular.
Com o passar dos anos, ao mesmo tempo em que o desfile das escolas foi se consolidando como um espetáculo, o carnaval carioca foi sumindo das ruas, tornando-se um tanto elitista (isso vem mudando, vide Monobloco, Simpatia é quase amor, Cordão do Boitatá e outros blocos de rua). Porém, ai porém, ser ou não ser elitista, como tudo na vida, depende do ângulo de visão, no caso o de quem assiste ou o de quem faz. Olhando de cima, de fora pra dentro ou do ponto de vista dos espectadores dos desfiles, sim, pois paga-se caro para assisti-lo e o ingresso é bastante disputado. Olhando por baixo, de dentro pra fora ou do ponto de vista de quem está desfilando, não, pois trata-se, em sua maior parte, de gente das comunidades, que trabalha o ano inteiro, a vida toda, para fazer uma boa apresentação e tem nesse ofício sua razão de viver.
Gente de um outro Rio de Janeiro, não o que tem braços abertos no cartão postal, mas o que tem Jesus e está de costas, que não figura no mapa, do subúrbio de Chico, berço do samba, que nos legou os laralaiás das canções. Um Rio que passou em minha vida, na minha infância, quando escutava belíssimas canções saídas das mentes sensíveis da turma da Velha Guarda da Portela, como “O mar serenou”, de Candeia e “Quantas lágrimas”, de Manacea, grandes sucessos nas vozes de Clara Nunes e Cristina Buarque, respectivamente.
Um rio que deságua na Lapa da nova geração real de sambistas (a imperatriz Teresa Cristina à frente), trazendo afluentes influentes como Paulinho da Viola e Marisa Monte, o primeiro, idealizador do grupo formado por ex-integrantes da Portela – nunca vi coisa mais bela - e produtor do primeiro disco da Velha Guarda, “Portela passado de glória”; a segunda, filha de ex-diretor da escola e produtora do último disco dos veteranos sambistas, “Tudo azul”, com músicas antigas, porém inéditas, algumas gravadas apenas em suas memórias.
Do trabalho de pesquisa para a composição do repertório de “Tudo azul”, surgiu o documentário “O mistério do samba”, de Carolina Jabor e Lula Buarque de Holanda, após quase dez anos de filmagens, a partir de 1998. O filme registra depoimentos de vários integrantes da Velha Guarda da Portela, entre eles Argemiro e Jair do Cavaquinho - falecidos durante o período das filmagens -, bem como os encontros do grupo com Marisa Monte, que também colabora como produtora e roteirista. Entre as canções do filme estão “Quantas lágrimas” e “Esta melodia”, esta última já gravada por Marisa em “Verde anil amarelo cor de rosa e carvão”, aquela do refrão: “Não suporto mais tua ausência / já pedi a Deus paciência”, mais uma que começa com um delicioso laralaiá.
Em depoimento ao documentário, Paulinho da Viola, ao se referir à emoção que a música e outras artes proporcionam, dispensa, de forma genial, maiores explicações: “você pode até explicar, mas não é o mais importante”. Eis o mistério do samba. O que difere a música da ciência é justamente que esta precisa do conhecimento, da medida, da precisão, da explicação para ser entendida, enquanto a música só precisa do sentimento. Não dá pra definir, é como aquele azul da Portela, que não era do céu nem era do mar e conquistou Paulinhos num certo dia de carnaval...
Foi um rio que passou em minha vida (Paulinho da Viola)
Se um dia
Meu coração for consultado
Para saber se andou errado
Será difícil negar
Meu coração tem mania de amor
Amor não é fácil de achar
A marca dos meus desenganos ficou, ficou
Só um amor pode apagar
Porém
Há um caso diferente
Que marcou um breve tempo
Meu coração para sempre
Era dia de carnaval
Eu carregava uma tristeza
Não pensava em novo amor
Quando alguém que não me lembro anunciou
Portela, Portela
O samba trazendo alvorada
Meu coração conquistou
Ah, minha Portela
Quando vi você passar
Senti meu coração apressado
Todo o meu corpo tomado
Minha alegria a voltar
Não posso definir aquele azul
Não era do céu
Nem era do mar
Foi um rio que passou em minha vida
E meu coração se deixou levar
2 comentários:
MUITO BOM PAULO! A MÚSICA É COMO "AS COISAS DO AMOR, QUE NINGUÉM SABE EXPLICAR"....
Ao ler o título do post, imediatamente imaginei que gostaria muito do texto. E foi exatamente o que aconteceu.
As composições de Paulinho da Viola são muito bonitas e esse samba é especialmente querido.
Só não imaginava que Marisa Monte era tão envolvida com projetos relacionados ao samba, e isso me fez admirar ainda mais o trabalho que desenvolve.
Grata pelos textos, Paulo.
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