Num passado recente do nosso país, há apenas 120 anos, homens eram subjugados por seus semelhantes, com a conivência das leis e da maior parte da sociedade. Em trecho de relatório de cônsul britânico no Recife a um conde inglês, em 1843, constante do livro "Children of God's Fire – A documentary history of black slavery in Brazil" de Robert Edgar Conrad, publicado nos EUA, percebe-se uma síntese da época da escravidão no Brasil, quando se mutilava corpo e alma de seres humanos e as leis serviam de pretexto para quem se beneficiava da situação vigente:
"In a word, my Lord, all the worst features of slavery exist in this province; the endeavour of the master is to suppress alike the intellect, the passions, and the senses of these poor creatures, and the laws aid them in transforming the African man into the American beast"*.
Mais de um século após a quebra das correntes, uma outra corrente vem consolidando, em nosso país, o entendimento de que a abolição da escravatura pela princesa Isabel apenas corrigiu uma injustiça secular e a data não ressalta a luta dos negros pela libertação. Em seu lugar, vem se firmando, a cada ano, a comemoração do dia da consciência negra, em 20 de novembro, instituído pela lei 10.639/2003 - a mesma que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. O dia, que coincide com a morte de Zumbi dos Palmares, símbolo de resistência à escravidão e luta pela liberdade, é feriado em várias cidades brasileiras, em sua grande maioria dos estados do Mato Grosso, Rio de Janeiro e São Paulo, incluindo suas capitais.
As leis mudaram e a escravidão acabou (?), tarde demais, a vergonha permanece. Como no canto das três raças**, ecoa noite e dia. Nada redime nossa sociedade de ato tão vil e covarde, o qual contribuiu bastante para a desigualdade de condições que se experimenta até hoje em dia, desde o primeiro abrir de olhos. Olhos que podem ser vistos, por exemplo, nas primeiras e fortes cenas do filme "Última Parada 174", de Bruno Barreto, no rosto de um bebê que é tomado dos braços da mãe como "pagamento" de dívidas relacionadas ao tráfico de drogas ou de uma criança que vê a mãe assassinada.
A página em branco da vida dos dois garotos, como a de outros tantos, começa ali a ser preenchida, em linhas tortas, deixando antever os garranchos de seu capítulo final. Um caminho tortuoso e de certa forma previsível, em que violência e crime não são apenas a última parada, nem simples casos de polícia, mas um problema social. O filme é baseado em história real. Um dos dois garotos sobreviveu à chacina da Candelária e, anos depois, matou uma refém e foi morto por policiais, no desfecho do seqüestro de um ônibus, no Rio de Janeiro.
Em filmes como esse (outros exemplos são "Cidade de Deus" e "Tropa de Elite"), a exposição de cenas de violência tem sempre como justificativa o objetivo que as acompanha, qual seja o de chamar a atenção para algo que de fato existe. Isolados do mundo que nos cerca, fechamos os olhos e vemos miséria e violência como algo distante, enquanto isso é possível. Nesses filmes, porém, somos postos frente a frente com essas mazelas.
Tal método é discutível, em ambos os sentidos: que se pode discutir e que é contestável, duvidoso, pois há quem seja - ou procure ser - consciente de outras formas, preferindo a denúncia implícita, que não precisa ser escancarada para ser compreendida. Eu, por exemplo, prefiro a poesia de "Central do Brasil". Há que se reconhecer, porém, nos três filmes citados, o lado mais positivo do princípio maquiavélico de que os fins justificam os meios. Certamente, os fins desses filmes fazem-nos sair do cinema reflexivos.
* Em uma palavra, meu senhor, todas as piores características da escravidão existem nesta província; o esforço dos mestres é, igualmente, de suprimir o intelecto, as paixões e os sentimentos destas pobres criaturas, e as leis ajudam-lhes a transformar o homem africano na besta americana.
** Canto das três raças (Paulo César Pinheiro – Mauro Duarte)
Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou
E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor
E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador
Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas como um soluçar de dor
Um comentário:
Tudo o que é dito sobre o "fim" do sistema escravista no Brasil e sobre a importância de se discutir as nefastas conseqüências de séculos de exploração, marginalização e exclusão social é muito mais contemporâneo e forte do que o relato de um único período da história do país, como você bem ressaltou.
Visualisarmos a nós mesmos como escravos de nossas próprias convicções parece muito mais difícil do que assumirmos que
"violência e crime não são apenas a última parada, nem simples casos de polícia, mas um problema social".
Tendência absurda essa de atribuir a violência e o crime a tudo aquilo que nos é estranho e incompreensível. Como se, de forma inegavelmente maniqueísta, constituíssemos o lado bom e puro do país.
Parabéns pelo texto!
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