Enquanto no âmbito de nosso microuniverso - sobretudo nas grandes cidades - vivemos enclausurados, pouco interagindo com o próximo, no mundo globalizado rompemos barreiras e limitações de distância, num paradoxo que tem tornado o mundo cada vez mais uniforme e com menos peculiaridades regionais. Nesse cenário, recebemos mais influências de uma antena parabólica ou de um modem 3G do que de um vizinho de porta, um transeunte do bairro, um zé da praça ou um amigo da esquina.
As esquinas das cidades resgatam esse sentido de algo familiar, próximo, um ponto de encontro, ao mesmo tempo em que remetem a uma ideia de passagem, multiplicidade de caminhos, transitoriedade, alternativas, fim e começo, diferentes pontos de vista. Num lugar qualquer de Belo Horizonte, músicos criaram, na década de 70, o Clube da Esquina que, se não era um clube real, traduzia no nome todo esse espírito, bastante apropriado. O encontro desses jovens músicos resultou em dois discos, Clube da Esquina (1972) e Clube da Esquina 2 (1978).
Nesses trabalhos coletivos, Milton Nascimento, Lô Borges e Beto Guedes revezaram-se nos vocais e instrumentos, contando com a parceria de Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Márcio Borges na maioria das composições, com um excelente time de instrumentistas, entre eles Toninho Horta e, ainda, com arranjos de Wagner Tiso e Eumir Deodato.
As canções tinham forte apelo instrumental, marca registrada do grupo. Algumas tinham melodias iguais para letras diferentes, outras eram puramente instrumentais e duas delas - Cais e Um gosto de sol* – possuíam uma mesma passagem melódica, bem conhecida. Era como se a mensagem estivesse mais no som do que nas letras e aquele, disposto em linhas melódicas bem trabalhadas e não triviais, precisasse ser mais enfatizado.
De fato, as letras suscitavam reflexões (Maria, Maria e Nada será como antes são bons exemplos), mas, em boa parte, não continham mensagens lineares, diretas ou claras, o que, de certa forma, aproximava-os, ainda que por estilos bem diferentes, de seus contemporâneos Secos & Molhados, Raul Seixas e Novos Baianos. Ivan Vilela, músico e professor da USP, em artigo publicado no museu virtual Clube da Esquina, observa que, nas letras das canções, "pouco se encontra da estrutura de romance ou de narrativas, histórias ou situações das quais se pode tirar alguma moral ou mensagem".
A ideia de transitoriedade revela-se, nas canções, em temas como dia e noite, manhã e tarde, lua e estrela, sol e chuva, estrada e terra, vento e poeira, mar e rio, céu e chão. Luzes, paisagens, sonhos e cidades - saídas e bandeiras, sonho virando terra, pedra virando corpo, um girassol da cor do seu cabelo. Outra característica é a celebração ao amor e à amizade.
Crescia, à época, a ligação entre músicos da América Latina, e Milton foi personagem fundamental nesse processo. No primeiro Clube da Esquina, a canção Os povos, dele e de Márcio Borges, é dedicada à juventude consciente da Venezuela. No segundo disco, Chico Buarque divide os vocais com Milton, em uma adaptação sua a Canción por la unidad latinoamericana, de Pablo Milanés. O coração americano é exaltado, também, em San Vicente (Milton Nascimento / Fernando Brant). Havia, também, a influência dos Beatles.
Como os sonhos não envelhecem, vieram discípulos como Flávio Venturini (que também fez parte do Clube da Esquina 2) e Samuel Rosa (Skank), que, em parceria com Lô Borges, compôs, recentemente, a bela Dois Rios. Em 1996, Márcio Borges, um dos sócios do clube, escreveu o livro "Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina". Histórias de um grupo de jovens que fez a música brasileira renascer e dobrar a esquina, tendo à frente um cara que iniciou a trajetória com travessia, tem na voz um instrumento e no nome a palavra nascimento.
"Se Deus cantasse, cantaria com a voz de Milton Nascimento" (Elis Regina)
* Um gosto de sol (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos)
Alguém que vi de passagem
Numa cidade estrangeira
Lembrou os sonhos que eu tinha
E esqueci sobre a mesa
Como uma pêra se esquece
Dormindo numa fruteira
Como adormece o rio
Sonhando na carne da pêra
O sol na sombra se esquece
Dormindo numa cadeira
Alguém sorriu de passagem
Numa cidade estrangeira
Lembrou o riso que eu tinha
E esqueci entre os dentes
Como uma pêra se esquece
Sonhando numa fruteira
Um comentário:
Lindo, Paulo! Eu adoro esses caras e sinto uma admiração especial por Milton Nascimento, Beto Guedes e Flávio Venturini.
Criações tão belas quanto as deles lembram mesmo um fim de tarde, à sombra, com amizade e amor inspirando tanta criatividade.
Arte como essa é mesmo o sal da terra, é alimento para o coração.
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