Por maior que tenha sido o impacto do surgimento da internet em nossas vidas, imagino que o da televisão não tenha ficado muito atrás, guardadas as proporções devidas aos diferentes cenários tecnológicos das duas épocas. Ambas as mídias provocaram mudanças – de comportamento, de hábitos, de paradigmas - e, se a televisão, consolidada no Brasil em fins da década de 50, trouxe como resultado inerente o culto à imagem (os trejeitos de Elvis, a cabeleira dos Beatles, a minissaia de Wanderléa, só pra começar), a internet proporcionou interatividade e pulverização da informação.
Antes do surgimento da televisão, o maior apelo era a voz, o que talvez justifique, em parte, o excesso de impostação típico dos cantores da época. Os artistas eram contratados pelas rádios, onde se apresentavam e divulgavam seus trabalhos. Acesso a música e audiência concentrados em um único meio de comunicação justificaram o surgimento de títulos como rainha da voz - atribuído a Dalva de Oliveira - e concursos como rainha do rádio, que coroou, além de Dalva, intérpretes como Emilinha Borba, Marlene e Linda Batista. Além disso, havia uma profusão de grandes compositores, muitos deles oriundos das classes mais pobres, o que Chico Buarque descreveu como um tempo em que o cidadão, sobretudo o cantor, subia o morro para se abastecer de música.
Esse mundo curioso, de rica musicalidade e também inovador, conhecido como a era do rádio, serviu de pano de fundo para a minissérie Dalva e Herivelto – uma canção de amor, de Maria Adelaide Amaral, exibida, recentemente, pela Rede Globo, cujo tema foi a trajetória artística e amorosa do casal de músicos Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, companheiros por cerca de dez anos. O livro Minhas duas estrelas – uma vida com meus pais (Globo, 2009), de Ana Duarte e do cantor Pery Ribeiro, filho do casal, foi uma das fontes de pesquisa do trabalho.
Dores de amores sempre inspiraram compositores e deram o tom (o que talvez explique o fato de as notas musicais começarem em dó). Não foi diferente na era do rádio, época em que encontros e desencontros amorosos escaparam às quatro paredes (o peixe pro fundo do mar, não das redes) e, mais do que comentários no rádio e em revistas, renderam belas composições, como as de Herivelto Martins (Cabelos brancos, Caminhemos, Segredo), dedicadas, em boa parte (ou má, no caso dos desencontros), a Dalva de Oliveira, com quem formou o Trio de Ouro, junto com o cantor Nilo Chagas. O público acompanhava, atento e admirado, o surgimento dessas canções que retratavam o conturbado relacionamento do casal.
Dalva deu voz às canções de Herivelto e de outros compositores, alguns dos quais a ajudaram nas respostas às provocações musicadas do ex-amor. Com boa parte dos discos, à época, gravados no formato 78 rotações - que comportava poucas canções -, era comum os cantores lançarem vários trabalhos por ano, o que explica, em parte, o tamanho da discografia da rainha da voz (talento e popularidade, certamente, explicam a outra parte), composta por mais de setenta títulos e interpretações marcantes como Bandeira branca, Que será, Segredo, Ave Maria no morro que, mesmo bastante regravadas, são, ainda hoje, associadas à sua voz.
Maria Bethânia, cujos arroubos de interpretação sempre a aproximaram dos músicos de gerações anteriores, tinha Herivelto e Dalva como uns de seus compositores e intérpretes preferidos. Seus discos dos anos 70 incluíram, dele, as canções Bom dia*, Camisola do dia, Atiraste uma pedra e A Bahia te espera, esta última uma das mais belas exaltações àquela que ele chama de “cidade da tentação”, que mostrava a ligação do compositor com o candomblé. Sobre Dalva de Oliveira, Bethânia escreveu, em texto do disco Pássaro da manhã (1977): “... A Dalva tinha a coragem, o jeito de cantar no palco o que até então eu só tinha coragem e jeito de cantar dentro da minha casa”. A leitura do texto antecedia Há um Deus (Lupicínio Rodrigues), outrora gravada por Dalva.
Versos escritos na segunda pessoa gramatical (Rosa, Carinhoso, Orgulho) eram forte tendência entre os antigos compositores e Herivelto Martins foi um dos mestres dessa prática que, se por um lado denota aproximação e intimidade com o interlocutor, por outro rebusca os versos e distancia-os da linguagem coloquial, em que, na maior parte do país, o pronome tu é pouco utilizado. Ademais, “você atirou uma pedra no peito de quem só lhe fez tanto bem” não encerraria tanto sentimento numa mesma afirmação quanto os versos originais. O charme resultante, aliado a um certo ar romântico, poético, justifica essa tendência de uso da segunda pessoa ter perdurado até hoje, mesmo em menor frequência. “Tu não vales nada, mas eu gosto de ti”, por exemplo, ficaria mais suave, concordas?
* Bom dia (Herivelto Martins – Aldo Cabral)
Amanheceu, que surpresa
Me reservava a tristeza
Nessa manhã muito fria
Houve algo de anormal
Tua voz habitual
Não ouvi dizer bom dia
Teu travesseiro vazio
Provocou-me um arrepio
Levantei-me sem demora
E a ausência dos teus pertences
Me disse, não te convences
Paciência, ele foi embora
Nem sequer no apartamento
Deixaste um eco, um alento
Da tua voz tão querida
E eu concluí num repente
Que o amor é simplesmente
O ridículo da vida
Num recurso derradeiro
Corri até o banheiro
Pra te encontrar, que ironia
E que erro tu cometeste
Na toalha que esqueceste
Estava escrito bom dia
2 comentários:
"Tu não vales nada, mas eu gosto de ti" foi ótimo, Paulo!
E o pior foi que eu, tão inconformada que ando com essas músicas (se é que podem ser chamadas assim), percebi mesmo o tom suave que o pronome tu pode conferir a uma frase.
Adorei o texto, pra variar...
A "guerra" entre Dalva e Herivelto acabou por nos privilegiar com canções lindas, interpretadas magistralmente pela estrela (que me encantou).
Que música linda! Faz paarrrteee do repertório familiar. Essa é antiga!
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