Na narração de um fato, seja real ou fictício, a comunicação ocorre de forma direta, ainda que de diversas maneiras. Mário Vargas Llosa afirma, em relação aos romances em geral, que a história não escrita representa a maior parte da história real, já que esta “cobre um terreno maior do que aquele que qualquer escritor – mesmo o mais profícuo e loquaz, com o menor pendor para a economia narrativa – seria capaz de cobrir em seu texto”. De fato, cada narrador pode ressaltar, em sua versão, diferentes aspectos do ambiente, características físicas, psicológicas ou o estado emocional dos personagens envolvidos no episódio narrado.
Na função de expressar sentimentos com exatidão, por sua vez, palavras são limitadas, por serem discretas, enquanto sentimentos são contínuos, o que faz com que não haja uma correspondência linear ou biunívoca entre eles. Dessa limitação, ou impossibilidade, é que surge a poesia, a metáfora, o sentido figurado e é justamente como instrumento de nossa mente criativa que as palavras encontram sua mais extraordinária aplicação.
Ao mesmo tempo, do lado dos que recebem a informação, as asas da imaginação desapropriam o sentido próprio, desfiguram o sentido figurado, enfim, ilimitam o que, loucamente, cada louca mente capta. O resultado é uma tradução eficaz, que transforma uma única língua-fonte (a mente criadora) em inúmeras línguas-alvo (as mentes receptoras).
No ramo da música, Construção, de Chico Buarque, é um exemplo concreto de onde se pode chegar com o uso de palavras bem dispostas, a começar do título da canção, de uma propriedade absoluta, ao denotar tanto a construção gramatical quanto a civil. Em Vai passar (Chico Buarque/Francis Hime), o título exprime o sentido de transitar, claramente expresso na letra (“vai passar nessa avenida um samba popular”, “o estandarte do sanatório geral vai passar”), mas também pode ser lido como deixar de existir, acabar, numa possível referência ao iminente fim da ditadura militar, na época em que a canção foi lançada (pode ser em sentido desfigurado, mas é como minha mentecapta mente capta).
Como admirador da arte de batizar – que trago até no nome - ou intitular, seja um livro, um filme, um disco, uma canção, uma rua, um bar, um artigo ou um simples e-mail, considero esta uma das etapas mais importantes e empolgantes da criação. Afinal, o título é a porta de entrada do conteúdo, ainda que não seja de todo indispensável (Nada nos impediria de ler um livro, assistir a um filme ou escutar uma música sem nome, a mensagem seria recebida da mesma forma. Da mesma forma, na linguagem falada, conseguiríamos nos comunicar sem a presença deles, mas a vida seria bem mais difícil e chata assim).
Por fim, não é incomum nome próprio ser comum (e nome comum ser impróprio). Nesse sentido, existe até uma piada, comum em Angola, nação africana de tantos contrastes sociais e vítima do neocolonialismo. Dois turistas, de férias no país, discutiam a diferença entre jacaré e crocodilo e discordavam sobre qual seria a denominação correta de um certo espécime que avistaram. Para desfazer a polêmica, consultaram um nativo angolano, apontando para o réptil: “Como vocês chamam, aqui, este animal, jacaré ou crocodilo?”, ao que o cidadão respondeu: “Nenhum dos dois. Aqui, a gente conhece-o como Lacoste”.
A função de dar nome é bem específica e seu praticante não precisa, necessariamente, ser o dono ou autor da coisa intitulada, tampouco produzir todo seu conteúdo. Basta ser criativo e, noutro plano, tal Caetano, gostar de se dedicar a criar confusões de prosódia e profusões de paródias*. Assim como café não costuma faiá, mouse pede mouse pad, forró pede serra e o Carrefour, digo, o baticum é da Benetton, não, da beira do mar. Ou da mesa do bar, talvez um Johann Sebastian Bar. E que o Chico Buarque de Holanda nos resgaste.
* Língua (Caetano Veloso)
Gosta de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
"Minha pátria é minha língua"
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer, o que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé e Maria da Fé
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer, o que pode esta língua?
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.
26.3.10
4.3.10
Rádio patrulha
Havia uma marchinha da década de 70 que dizia: “Viva o Zé Pereira / Que a ninguém faz mal / E viva a bebedeira / Nos dias de carnaval”. Tal música, porém, não era da década de 70 do século XX, mas do século XIX. Pois é, os tempos ideais do velho Raul Moraes também tinham desses sucessos. Tudo bem, carnaval é festa essencialmente popular e, como tal, deve ser mesmo uma "momarquia" democrática e, na medida do possível, agradar a todos.
Ainda que seja na base do beijo ou do rebolation, no quatríduo momesco, o povo quer apenas cair no passo e a vida gozar. Tanto que certas bocas - de ouvidos menos atentos - costumam, nessa época, ferir os nossos, levando o frevo às páginas policiais, ao cantarem assim a Evocação nº 1 de Nelson Ferreira: “Ferido pelo soldado, Guilherme Fenelon, cadê teus blocos famosos?”, sem prestarem tanta atenção ao que está sendo dito. Claro que clássico é clássico (como disse Drummond, “E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno.”), mas não se deve exigir, por exemplo, que os mais jovens achem lindo ver o dia amanhecer com violões e pastorinhas mil (ainda que o seja), se isso não lhes emociona.
Seja ou não carnaval, música é algo que toca – e, mais do que isso, tem que tocar. Apenas certas canções (canções certas para uns, incertas para outros) têm esse dom, o que varia de pessoa para pessoa para Pessoa: “qualquer música, ah, qualquer / logo que me tire da alma / esta incerteza que quer / qualquer impossível calma”. A música que agrada aos ouvidos confunde-se um pouco com a realidade e a vivência de quem a escuta, o que torna quase impossível julgá-la com isenção. Há, ainda, uma busca por sintonia entre ritmo musical e ritmo de vida, o que explica por que, entre o vigor e ímpeto da juventude e a serenidade dos mais velhos, os sons vão diminuindo em volume e velocidade.
Patrulhamento musical (rádio patrulha) sempre existiu. A melhor política é desfazer-se de preconceitos ao escutar qualquer canção. Se, nesses termos, você apreciá-la, somente assim - e nesse ponto - faça valer a máxima de que gosto não se discute. Conforme atesta o crítico musical José Ramos Tinhorão em sua Pequena História da Música Popular, o maxixe e o samba-de-breque, por exemplo, eram considerados pela elite músicas de menor qualidade. Com o frevo, não foi diferente. Depois do frevo-de-rua, sua versão mais genuína e popular, foi que surgiu o de bloco, criação da classe média, que não queria se acabar de dançar, no meio do povo, o ritmo frenético das ruas. Hoje, os dois dividem espaços.
Tom Zé, em análise de trecho do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, comenta que, no Brasil, “aprecia-se uma espécie de culto no qual a inteligência, em vez de reunir os homens, os separa”. E completa: “Sérgio Buarque discute que, desde tempos imemoriais, o ato de pensar é exercido por nós, ibéricos, como se fosse um privilégio pessoal e classista. Isso dificulta o uso do pensamento como instrumento partilhado para a organização dos homens. Nós mesmos, que escrevemos em jornais, às vezes nos sentimos como ‘barõezinhos’”.
De fato, alguns indivíduos preferem segregar a agregar novos adeptos a seu exclusivíssimo clube dos que têm bom gosto. Para eles, se abrir demais, perde a graça e, nesse comportamento, pode estar embutido preconceito etário ou proletário. Alheio a esse patrulhamento – de modos e modas - e sem tantas satisfações a dar, os menos afortunados, ao menos nesse aspecto, são mais livres e, quando podem, divertem-se à vontade. É só comparar um concerto no teatro e um pagode na laje.
Caetano Veloso sempre procurou quebrar essa barreira subjetiva entre estilos musicais considerados de bom gosto ou não. Em Um frevo novo, provocou: “mete o cotovelo e vai abrindo o caminho” e ainda: “todo mundo na praça, muita gente sem graça no salão”. No auge do Tropicalismo, por ocasião da apresentação de Alegria, alegria no festival da Record, o cantor ressaltou assim sua simpatia pela liberdade de uso da guitarra na música brasileira: “No Rio de Janeiro, disseram: ‘Caetano vai usar guitarra numa música, quando chegar na Bahia vai tomar uma surra de berimbau’. O que eles não sabiam é que os baianos estão além.”.
Mantendo o tom, já que o assunto é a polêmica música boa x música ruim, vale ressaltar que Tom Zé, também tropicalista, em seu mais recente show, expõe impagável análise de um funk carioca (melhor ao vivo), desenvolvida com o intuito de confirmar informação, publicada em um jornal, de que seu disco Estudando a bossa sofrera influências desse ritmo. A propósito, um cara tão futurista, à frente do seu tempo e do tempo dos outros, só poderia mesmo ter nascido em Irará, futuro do futuro do verbo ir. Vamos atrás!
Certas Canções (Tunai / Milton Nascimento)
Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece
Como não fui eu que fiz?
Certa emoção me alcança
Corta-me a alma sem dor
Certas canções me chegam
Como se fosse o amor
Contos da água e do fogo
Cacos de vidas no chão
Cartas do sonho do povo
E o coração pro cantor
Vida e mais vida ou ferida
Chuva, outono, ou mar
Carvão e giz, abrigo
Gosto molhado no olhar
Calor que invade, arde, queima, encoraja
Amor que invade, arde, carece de cantar
Ainda que seja na base do beijo ou do rebolation, no quatríduo momesco, o povo quer apenas cair no passo e a vida gozar. Tanto que certas bocas - de ouvidos menos atentos - costumam, nessa época, ferir os nossos, levando o frevo às páginas policiais, ao cantarem assim a Evocação nº 1 de Nelson Ferreira: “Ferido pelo soldado, Guilherme Fenelon, cadê teus blocos famosos?”, sem prestarem tanta atenção ao que está sendo dito. Claro que clássico é clássico (como disse Drummond, “E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno.”), mas não se deve exigir, por exemplo, que os mais jovens achem lindo ver o dia amanhecer com violões e pastorinhas mil (ainda que o seja), se isso não lhes emociona.
Seja ou não carnaval, música é algo que toca – e, mais do que isso, tem que tocar. Apenas certas canções (canções certas para uns, incertas para outros) têm esse dom, o que varia de pessoa para pessoa para Pessoa: “qualquer música, ah, qualquer / logo que me tire da alma / esta incerteza que quer / qualquer impossível calma”. A música que agrada aos ouvidos confunde-se um pouco com a realidade e a vivência de quem a escuta, o que torna quase impossível julgá-la com isenção. Há, ainda, uma busca por sintonia entre ritmo musical e ritmo de vida, o que explica por que, entre o vigor e ímpeto da juventude e a serenidade dos mais velhos, os sons vão diminuindo em volume e velocidade.
Patrulhamento musical (rádio patrulha) sempre existiu. A melhor política é desfazer-se de preconceitos ao escutar qualquer canção. Se, nesses termos, você apreciá-la, somente assim - e nesse ponto - faça valer a máxima de que gosto não se discute. Conforme atesta o crítico musical José Ramos Tinhorão em sua Pequena História da Música Popular, o maxixe e o samba-de-breque, por exemplo, eram considerados pela elite músicas de menor qualidade. Com o frevo, não foi diferente. Depois do frevo-de-rua, sua versão mais genuína e popular, foi que surgiu o de bloco, criação da classe média, que não queria se acabar de dançar, no meio do povo, o ritmo frenético das ruas. Hoje, os dois dividem espaços.
Tom Zé, em análise de trecho do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, comenta que, no Brasil, “aprecia-se uma espécie de culto no qual a inteligência, em vez de reunir os homens, os separa”. E completa: “Sérgio Buarque discute que, desde tempos imemoriais, o ato de pensar é exercido por nós, ibéricos, como se fosse um privilégio pessoal e classista. Isso dificulta o uso do pensamento como instrumento partilhado para a organização dos homens. Nós mesmos, que escrevemos em jornais, às vezes nos sentimos como ‘barõezinhos’”.
De fato, alguns indivíduos preferem segregar a agregar novos adeptos a seu exclusivíssimo clube dos que têm bom gosto. Para eles, se abrir demais, perde a graça e, nesse comportamento, pode estar embutido preconceito etário ou proletário. Alheio a esse patrulhamento – de modos e modas - e sem tantas satisfações a dar, os menos afortunados, ao menos nesse aspecto, são mais livres e, quando podem, divertem-se à vontade. É só comparar um concerto no teatro e um pagode na laje.
Caetano Veloso sempre procurou quebrar essa barreira subjetiva entre estilos musicais considerados de bom gosto ou não. Em Um frevo novo, provocou: “mete o cotovelo e vai abrindo o caminho” e ainda: “todo mundo na praça, muita gente sem graça no salão”. No auge do Tropicalismo, por ocasião da apresentação de Alegria, alegria no festival da Record, o cantor ressaltou assim sua simpatia pela liberdade de uso da guitarra na música brasileira: “No Rio de Janeiro, disseram: ‘Caetano vai usar guitarra numa música, quando chegar na Bahia vai tomar uma surra de berimbau’. O que eles não sabiam é que os baianos estão além.”.
Mantendo o tom, já que o assunto é a polêmica música boa x música ruim, vale ressaltar que Tom Zé, também tropicalista, em seu mais recente show, expõe impagável análise de um funk carioca (melhor ao vivo), desenvolvida com o intuito de confirmar informação, publicada em um jornal, de que seu disco Estudando a bossa sofrera influências desse ritmo. A propósito, um cara tão futurista, à frente do seu tempo e do tempo dos outros, só poderia mesmo ter nascido em Irará, futuro do futuro do verbo ir. Vamos atrás!
Certas Canções (Tunai / Milton Nascimento)
Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece
Como não fui eu que fiz?
Certa emoção me alcança
Corta-me a alma sem dor
Certas canções me chegam
Como se fosse o amor
Contos da água e do fogo
Cacos de vidas no chão
Cartas do sonho do povo
E o coração pro cantor
Vida e mais vida ou ferida
Chuva, outono, ou mar
Carvão e giz, abrigo
Gosto molhado no olhar
Calor que invade, arde, queima, encoraja
Amor que invade, arde, carece de cantar
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