Roberto Carlos Braga é brega? Chega de briga. Como previ, há alguns meses, não adianta nem tentar lhe esquecer. O cantor e compositor vem, desde o ano passado, comemorando seus cinquenta anos de carreira e, no ano que vem, completará setenta de idade, o que motivará, mais uma vez, merecidas comemorações. Por sinal, ele estará puxando o bloco dos setentões, que se aproxima, com Chico e Caetano, entre outros, logo atrás.
Uma dessas homenagens prestadas, nos últimos meses, ao rei, está ao alcance de quem andar por São Paulo por esses dias: a exposição Roberto Carlos – 50 anos de música, que acontece na Oca do Parque do Ibirapuera e que ele mesmo ajudou a organizar. A exposição aproxima-se do final e traz, entre as atrações, documentários e vídeos sobre sua carreira, bem como depoimentos de pessoas importantes em sua trajetória artística, como o parceiro Erasmo Carlos, Wanderléa, Gal Costa, Maria Bethânia e Caetano Veloso.
Gal, em seus primeiros discos, gravou várias canções da dupla Roberto e Erasmo, como Se você pensa e Eu sou terrível, além de uma interpretação definitiva e insuperável de Sua estupidez, cuja bela letra é uma forma mais rebuscada e poética de dizer “você não vale nada, mas eu gosto de você”. Sua estupidez é do disco Fatal, de 1971 - fatal, inclusive, no excelente repertório (só para dar uma ideia... não dá para dar uma ideia a não ser enumerando quase todas as músicas, então deixo apenas a ideia da ideia).
Engraçado que essas canções, bem apropriadas ao perfil ou estilo criado, à época, pela cantora baiana, diziam frases fortes que o próprio RC, hoje em dia, em outra fase, ou Bethânia, por exemplo, não diriam (pior pra eles), como “você tem que aprender a ser gente” e “use a inteligência uma vez só” (só faltou Quero que vá tudo pro inferno). Nesse mesmo período, Gal recebeu da dupla a canção Meu nome é Gal, feita especialmente para ela, como não é difícil perceber. Bethânia, por sua vez, além de ser um dos poucos artistas a ter participação em algum disco de Roberto (em 1982, na faixa Amiga), gravou disco inteiro, As canções que você fez pra mim (1994), com composições do rei.
Caetano, em seu incentivo à luta contra qualquer tipo de preconceito musical, sempre se preocupou, ao longo da carreira, em desfazer qualquer rivalidade entre Tropicalismo, Bossa Nova e Jovem Guarda. Depois de uma troca de amabilidades que nos proporcionou interpretações marcantes de músicas de sua autoria por parte de Roberto (Como dois e dois, Muito romântico, Força estranha) e vice-versa (Debaixo dos caracóis de seus cabelos), coroou bem sua linha de comportamento ao participar, recentemente, do trabalho que reuniu essas três vertentes da produção musical dos anos 60: o disco Roberto Carlos e Caetano Veloso e a música de Tom Jobim (2008), em que o rei da Jovem Guarda e o mestre do Tropicalismo uniram-se, em reverência ao maestro da Bossa Nova.
Sou de um tempo em que aguardar os lançamentos de trabalhos desses artistas, ano após ano, já era, por si só, atividade extremamente aprazível, seguida de plena recompensa, exercício do qual os discos de Roberto Carlos faziam parte. Por isso, em época de tantas homenagens a esse astro da nossa música, acrescento mais essa, que tem motivos de sobra para acontecer especificamente por esses dias. Primeiro, o aniversário do cantor, que ocorreu esta semana, depois, o dia das mães que se aproxima e que nos remete à lembrança de uma das maiores mães da MPB, a quem devemos sua vinda ao mundo - Lady Laura*, reverenciada pelo filho em um desses discos esperados -, por meio de quem homenageio todas elas.
* Lady Laura (Roberto Carlos / Erasmo Carlos)
Tenho às vezes vontade de ser novamente um menino
E na hora do meu desespero gritar por você
Te pedir que me abrace e me leve de volta pra casa
Que me conte uma história bonita e me faça dormir
Só queria ouvir sua voz me dizendo sorrindo:
Aproveite o seu tempo, você ainda é um menino
Apesar da distância e do tempo eu não posso esconder
Tudo isso eu às vezes preciso escutar de você
Lady Laura, me leve pra casa
Lady Laura, me conte uma história
Lady Laura, me faça dormir
Lady Laura
Lady Laura, me leve pra casa
Lady Laura, me abrace forte
Lady Laura, me faça dormir
Lady Laura
Quantas vezes me sinto perdido no meio da noite
Com problemas e angústias que só gente grande é que tem
Me afagando os cabelos você certamente diria:
Amanhã de manhã você vai se sair muito bem
Quando eu era criança podia chorar nos seus braços
E ouvir tanta coisa bonita na minha aflição
Nos momentos alegres sentado ao seu lado eu sorria
E nas horas difíceis podia apertar sua mão
Tenho às vezes vontade de ser novamente um menino
Muito embora você sempre acha que eu ainda sou
Toda vez que te abraço e te beijo sem nada dizer
Você diz tudo que eu preciso escutar de você
25.4.10
12.4.10
De versão e arte
A prática de criar versões de textos provenientes de outras línguas tem o mérito de aproximar culturas, na medida em que as torna mais acessíveis aos que não têm acesso aos escritos, não dominam seus idiomas de origem ou mesmo não conhecem o trabalho feito em outros países.
Em se tratando de poesias e canções, esse trabalho de traduzir ou “versionar” é especialmente difícil, pois, se na tradução de textos em geral, procura-se ser o mais fiel possível ao conteúdo original, nas adaptações de versos - sejam de poesias ou canções -, por questões sobretudo de métrica, mudanças fazem-se necessárias, desde que não comprometam o contexto. Nesses casos, busca-se fugir a uma simples tradução literal (transcrição), com adaptações engenhosas (criação), mas sem se afastar do tema original, algo bem definido pelo neologismo “transcriação”. No caso das canções, almeja-se, ainda, manter a letra ajustada à melodia. Esse ajuste pode ser feito apenas pela sonoridade das palavras (mal) ou pela métrica como um todo (bem).
Quando a canção original é bem conhecida, o trabalho de tradução torna-se ainda mais delicado e difícil, pois é comum haver um estranhamento, quando a sonoridade já tão familiar de letra e música juntas é quebrada. Isso talvez explique o porquê de Yesterday (Lennon/McCartney), uma das canções mais gravadas de todos os tempos - cuja melodia, curiosamente, surgiu em um sonho de McCartney, como ele revela em sua biografia -, nunca ter recebido uma versão em português.
Por falar em Beatles, a Jovem Guarda, movimento surgido no Brasil por influência deles e de outros astros do rock de então, era bem servida de versões, aqui interpretadas por conjuntos como Renato e seus Blue Caps, Golden Boys, The Fevers, entre outros. De lá pra cá, grandes compositores da nossa música têm se esmerado em versões de qualidade, que fazem jus ao termo transcriação e, nos últimos tempos, bandas de forró tudo-menos-pé-de-serra têm traduzido até pensamento.
Gilberto Gil, como se não bastasse ser especial na criação de suas próprias canções, é um exemplo de compositor competente também em versões. Em Só chamei porque te amo – versão para I just called to say I love you, de Stevie Wonder -, Gil acrescentou a esses citados objetivos de versões musicais um toque de regionalismo que, além de facilitar a decodificação da mensagem, deixa uma doce impressão: nem carnaval, nem São João, nenhum balão no céu, nem luar do sertão. A canção cita bons motivos para se procurar por alguém, apenas para dizer que nenhum deles ocorreu e, ao descartá-los, apresentar o motivo fundamental da busca: só chamei porque te amo. Sem mais explicações, a não ser a falta de motivo ou razão (quando a saudade vem, não tem explicação).
Em Não chore mais – versão para No woman, no cry, do repertório de Bob Marley -, Gil também fez uso do recurso de adaptação à realidade local, com referências à repressão da ditadura militar então vigente no Brasil (Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais. Tais recordações, retratos do mal em si, melhor é deixar pra trás). Se na letra original o cenário é um jardim público em Trenchtown, Jamaica, a versão brasileira desloca-se para a grama do Aterro, no Rio de Janeiro. No fim, porém, a mensagem de esperança é a mesma: everything’s gonna be all right / tudo, tudo, tudo vai dar pé.
Milton Nascimento, durante temporada nos Estados Unidos, nos anos 70, escutou uma canção que falava sobre amigos que partiam. Inspirado nesta música, compôs outra (Unencounter, de seu disco Journey to dawn, de 1979), também em inglês, sobre o mesmo tema, em parceria com Fernando Brant. Flávio Venturini, que à época fazia parte do grupo 14 Bis, adorou a canção e quis gravá-la, mas achou que ela merecia uma versão brasileira. Brandt, então, traduziu a letra para o português. O resultado foi Canção da América, uma celebração à amizade que, como tal, transpôs fronteiras, rompeu limites, desfez distâncias, com um apelo universal que não carece de tradução: o que importa é ouvir a voz que vem do coração.
Em bom português, versões podem constituir grandes versos, sem os quais não haveria fascinação nem ternura. Não saberíamos o amor, doce mistério da vida, nem o sabor do gesto. Não entenderíamos a natureza humana nem a aquarela da vida. Não saberíamos, com Chaplin, simplesmente, sorrir*.
* Sorri (Charles Chaplin/G.Parson/J. Turner - versão: Braguinha)
Sorri
Quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos, vazios
Sorri
Quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador
Sorri
Quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados, doridos
Sorri
Vai mentindo a tua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz
Em se tratando de poesias e canções, esse trabalho de traduzir ou “versionar” é especialmente difícil, pois, se na tradução de textos em geral, procura-se ser o mais fiel possível ao conteúdo original, nas adaptações de versos - sejam de poesias ou canções -, por questões sobretudo de métrica, mudanças fazem-se necessárias, desde que não comprometam o contexto. Nesses casos, busca-se fugir a uma simples tradução literal (transcrição), com adaptações engenhosas (criação), mas sem se afastar do tema original, algo bem definido pelo neologismo “transcriação”. No caso das canções, almeja-se, ainda, manter a letra ajustada à melodia. Esse ajuste pode ser feito apenas pela sonoridade das palavras (mal) ou pela métrica como um todo (bem).
Quando a canção original é bem conhecida, o trabalho de tradução torna-se ainda mais delicado e difícil, pois é comum haver um estranhamento, quando a sonoridade já tão familiar de letra e música juntas é quebrada. Isso talvez explique o porquê de Yesterday (Lennon/McCartney), uma das canções mais gravadas de todos os tempos - cuja melodia, curiosamente, surgiu em um sonho de McCartney, como ele revela em sua biografia -, nunca ter recebido uma versão em português.
Por falar em Beatles, a Jovem Guarda, movimento surgido no Brasil por influência deles e de outros astros do rock de então, era bem servida de versões, aqui interpretadas por conjuntos como Renato e seus Blue Caps, Golden Boys, The Fevers, entre outros. De lá pra cá, grandes compositores da nossa música têm se esmerado em versões de qualidade, que fazem jus ao termo transcriação e, nos últimos tempos, bandas de forró tudo-menos-pé-de-serra têm traduzido até pensamento.
Gilberto Gil, como se não bastasse ser especial na criação de suas próprias canções, é um exemplo de compositor competente também em versões. Em Só chamei porque te amo – versão para I just called to say I love you, de Stevie Wonder -, Gil acrescentou a esses citados objetivos de versões musicais um toque de regionalismo que, além de facilitar a decodificação da mensagem, deixa uma doce impressão: nem carnaval, nem São João, nenhum balão no céu, nem luar do sertão. A canção cita bons motivos para se procurar por alguém, apenas para dizer que nenhum deles ocorreu e, ao descartá-los, apresentar o motivo fundamental da busca: só chamei porque te amo. Sem mais explicações, a não ser a falta de motivo ou razão (quando a saudade vem, não tem explicação).
Em Não chore mais – versão para No woman, no cry, do repertório de Bob Marley -, Gil também fez uso do recurso de adaptação à realidade local, com referências à repressão da ditadura militar então vigente no Brasil (Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais. Tais recordações, retratos do mal em si, melhor é deixar pra trás). Se na letra original o cenário é um jardim público em Trenchtown, Jamaica, a versão brasileira desloca-se para a grama do Aterro, no Rio de Janeiro. No fim, porém, a mensagem de esperança é a mesma: everything’s gonna be all right / tudo, tudo, tudo vai dar pé.
Milton Nascimento, durante temporada nos Estados Unidos, nos anos 70, escutou uma canção que falava sobre amigos que partiam. Inspirado nesta música, compôs outra (Unencounter, de seu disco Journey to dawn, de 1979), também em inglês, sobre o mesmo tema, em parceria com Fernando Brant. Flávio Venturini, que à época fazia parte do grupo 14 Bis, adorou a canção e quis gravá-la, mas achou que ela merecia uma versão brasileira. Brandt, então, traduziu a letra para o português. O resultado foi Canção da América, uma celebração à amizade que, como tal, transpôs fronteiras, rompeu limites, desfez distâncias, com um apelo universal que não carece de tradução: o que importa é ouvir a voz que vem do coração.
Em bom português, versões podem constituir grandes versos, sem os quais não haveria fascinação nem ternura. Não saberíamos o amor, doce mistério da vida, nem o sabor do gesto. Não entenderíamos a natureza humana nem a aquarela da vida. Não saberíamos, com Chaplin, simplesmente, sorrir*.
* Sorri (Charles Chaplin/G.Parson/J. Turner - versão: Braguinha)
Sorri
Quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos, vazios
Sorri
Quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador
Sorri
Quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados, doridos
Sorri
Vai mentindo a tua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz
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