Palavras foram criadas para facilitar a comunicação. A linguagem, portanto, pressupõe esse fim. De nada adianta ignorar ou execrar o linguajar popular, restringir-se à norma culta e não se fazer entender pela maioria das pessoas, como um brasileiro exilado em sua própria pátria. Afinal, que língua é essa que pouquíssimos brasileiros falam? Podemos chamá-la de língua oficial? A discussões desse tipo é que se propõe a exposição Menas: o certo do errado, o errado do certo (com curadoria de Ataliba Castilho e Eduardo Calbucci), em cartaz no Museu da Língua Portuguesa (SP, até 27 de junho próximo), que nos apresenta interessantes frases, como: “Se alguém usou uma palavra, ela existe.” ou “Todos têm sotaque. Ainda bem.”.
Tais discussões casam bem com o pensamento de Marcos Bagno, profissional graduado em Letras pela UFPE, doutor em Línguística pela USP, professor da UnB e autor de mais de 30 livros, entre eles Preconceito linguístico. Impossível ficar indiferente a suas convicções. De posições firmes, o escritor, tradutor e linguista mineiro costuma afirmar, por exemplo, que o professor Pasquale e suas concepções rígidas de 'certo' e 'errado' estão na contramão da história e não são aceitas nos maiores centros de pesquisa linguística brasileiros.
Bagno defende a ideia de que o preconceito linguístico esconde um imenso preconceito social (a forma caricata e inventada com que a rede Globo mostra o sotaque nordestino em suas produções é um claro exemplo disso) e constitui “um disfarce amplamente aceito para que uma pessoa seja discriminada e excluída dos bens sociais aos quais teria direito pelo simples fato de ser um cidadão”.
Em recente e interessante entrevista ao Jornal do Commercio (PE), o linguista sugeriu: “as aulas de língua materna têm que se destinar, antes de mais nada, à inserção dos aprendizes na cultura letrada, e isso se faz por meio da leitura, da escrita, da leitura, da escrita e principalmente da leitura e da escrita”. E concluiu: “Enquanto nossos professores acharem que é preciso ensinar dígrafo, oxítonas, preposições, oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo, epiceno e outras coisas cabalísticas desse tipo, nossa educação linguística continuará catastrófica como já está”.
Quanto a conclusões simplistas e precipitadas de que estaria fazendo apologia ao vale-tudo na língua portuguesa, afirma, com propriedade: “Nenhum linguista sensato jamais disse que não é preciso ensinar aos alunos as formas privilegiadas, normatizadas de uso da língua. O que dizemos é que essas não são as únicas formas válidas de uso da língua e que é preciso abordar em sala de aula a multiplicidade de usos idiomáticos que existe na sociedade. No entanto, como nossa sociedade só consegue pensar em termos de sim/não, preto/branco, certo/errado, um discurso que contemple a variação, a noção de pluralidade de falas, não consegue penetrar no senso comum”.
O escritor reconhece o viés político por trás de muitas de suas afirmações, o que considera inevitável. Entre os polêmicos, mas/e interessantes comentários encontrados em seus livros, cito dois, a título de ilustração. No primeiro, ele compara a morfologia verbal das línguas inglesa e portuguesa, ao observar que se I lived, you lived, he lived, we lived, they lived é recebido sem estranhamento, o mesmo não ocorre com eu morava, tu morava, ele morava, nós morava, eles morava, recebidos com “o riso, o deboche ou, no melhor dos casos, a compaixão pelos 'infelizes caipiras' que 'não sabem falar direito', como se fossem menos inteligentes ou até menos humanos que os demais falantes”.
O segundo comentário trata da troca do L pelo R na pronúncia de certas palavras, ao que ele se refere como “um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão”. Segundo ele, “as pessoas que dizem Cráudia, grobo, chicrete, pranta estão apenas dando livre curso à mesma tendência fonética que fez, por exemplo, com que o latim fluxu desse em português frouxo, com um R bem nítido, que plaga desse praga, que sclavu desse escravo, que blandu desse brando, que flaccu desse fraco, que gluten desse grude, que o germânico blank desse em português branco (...)”.
Para enriquecer a discussão, entrei em contato com o professor, que, gentilmente, comentou os seguintes pontos. Sobre a questão (que já foi bem pior) da valorização quase exclusiva da ortografia e das normas gramaticais, em detrimento da clareza na comunicação, ele afirmou: “O apego à tradição gramatical e à ortografia é muito antigo em toda a civilização ocidental, data de pelo menos três séculos antes de Cristo, quando foi criada a disciplina gramatical. Ao se fixar um modelo único de 'língua certa', inspirado nos usos de uns poucos escritores consagrados do passado, todos os demais usos da língua foram jogados na lata do lixo do 'erro'. As pesquisas linguísticas contemporâneas mostram o absurdo que é essa atitude, que carece de qualquer fundamentação científica, sendo integralmente ideológica”.
Com relação ao novo acordo ortográfico, disse ser a favor “porque, antes de tudo, retira de Portugal uma arma ideológica que sempre esteve nas mãos dos setores chauvinistas da sociedade portuguesa: a ideia de que a língua é 'deles' e que por isso toda decisão sobre os destinos do idioma cabem prioritariamente a Lisboa”. E completa: “Ora, 90% dos falantes de português vivem no Brasil. Se todos os demais países de língua portuguesa abandonassem a língua e a trocassem por outra, ainda assim o português brasileiro seria a terceira língua mais falada no Ocidente (…). Com o Acordo, todos os usuários da língua vão ter uma maneira única de escrever e isso decerto facilitará muito a divulgação do idioma e a circulação dos bens impressos. É preciso lembrar, sempre, que não se trata de uma 'uniformização da língua', como muitas pessoas equivocadamente têm dito. (...) o que vai mudar exclusivamente é a maneira de escrever a língua”.
O que concluo disso tudo é que se por um lado tenho o “vício” de seguir os rigores das regras gramaticais e até me incomodo ao perceber certos erros de grafia, por outro (ou pelo mesmo) comporto-me como um dinossauro jurássico sempre que sigo, por exemplo, o costume enraizado de respeitar regras de próclise e ênclise, como a de não iniciar frases com pronomes oblíquos* (quanto à mesóclise, ser-me-ia demais respeitá-la).
Não sou nenhum especialista no assunto, mas, em suma, mesmo sem concordar “em gênero e número igual”, reconheço, “com os nervos da cor da pele”, a singularidade do raciocínio do exímio linguista, cujas ideias, ainda que em primeira análise pareçam radicais e exageradas, suscitam reflexões, como a percepção de que a língua não é criada no papel, por acadêmicos, mas resulta, isso sim, da linguagem falada.
* Pronominais (Oswald de Andrade)
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da nação brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
2 comentários:
Por isso gosto tanto dos teus textos, Paulo: são leves, sem perder a força das ideias transmitidas.
Leio com frequência os artigos escritos por Marcos Bagno, publicados na "Caros Amigos", e já estou convencida de que ele é referência no estudo da linguagem.
Muito coerente, sensato e, além de tudo, inovador.
Sinceramente, conheço poucas pessoas que falam da mesma forma que escrevem. Sou um exemplo disso: durante um diálogo, não me preocupo com próclise e ênclise (muito menos com mesóclise... rsrs). Não fico escandalizada com "tou", "bichim", "a gente", que escorregam macio pela garganta. Diálogos cansativos, ou repletos de palavras difíceis e pouco usuais, demonstram superficialidade e, muitas vezes, não transmitem o que realmente pensamos.
Adorei o texto! Que sirva como mais um meio de repúdio ao preconceito linguístico.
Juliana, você é uma das leitoras mais antigas, constantes e fiéis do blog, estímulo pra seguir adiante com ele. Volte sempre. Também me identifiquei com as ideias de Marcos Bagno, justamente pelo repúdio ao preconceito linguístico que elas encerram, usando suas corretas palavras.
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