6.5.10
Transações políticas e transições sexuais (e vice-versa)
Já se discutiu, ao longo do tempo, a relação entre política e sexo, entre companheiro de luta e companheiro de leito. Meu partido é um coração partido, já dizia Cazuza, nos relativamente despolitizados anos 80. Desde a transformadora década de 60, porém, política e sexo já andavam um tanto descompassados em nosso país. As práticas livres adquiridas com a revolução sexual, fruto das conquistas do movimento hippie, foram refreadas, do lado de baixo do Equador, pelas ditaduras instaladas por essas bandas. Na década de 80, por sua vez, a liberdade política conquistada com o fim das ditaduras, veio acompanhada da repressão sexual provocada pela descoberta do vírus da AIDS. Como resultado, no ramo da música, fatos curiosos ocorreram.
Sexo, política e rock’n roll. Nos anos 60, as canções de protesto combatiam o momento político e refletiam bem o clima de repúdio à situação vigente e a esperança num futuro melhor. Já as ingênuas canções da Jovem Guarda, e mesmo as da Bossa Nova, não refletiam tanto a revolução sexual em curso. Se bem que, pouco depois, os Secos & Molhados viriam a distorcer, sem discursos panfletários, apenas com seus requebros, a rígida coluna vertebral da dita ditadura, característica que, junto com o forte apelo visual e músicas como O vira, tornou o grupo bastante admirado, também, pelas crianças.
Por sua vez, a cena musical dos anos 80, que já não via mais como novidade as canções de duplo sentido ou de apelo sexual, presentes desde a década anterior com Genival Lacerda e Gretchen, entre outros, recebia reforços nesse estilo. Músicas como Serão extra (Eu fui dar mamãe / Fui dar mamãe / Fui dar um serão extra / Trabalhei com o patrão), do grupo Dr. Silvana & Cia., Amante profissional (Pra qualquer tipo de transação / Sem compromisso emocional / Só financeiro), do Herva Doce e Dentro do coração (Põe devagar), do Rádio Táxi, brincavam com o sexo de maneira despretensiosa, em contrapeso à dura realidade que despontava, evidenciada por Cazuza em Ideologia: Meu prazer agora é risco de vida.
No campo político, a década coincidiu com o período de abertura e o fim da censura aos meios de comunicação, esse último tendo gerado calorosas discussões entre o que podia e o que não podia ou quais seriam os limites do bom senso. Alheios a essa discussão e como crianças que ganham um brinquedo novo, os compositores daquela geração, mesmo sem o apuro e a sutileza de um Chico Buarque, queriam mais era experimentar ao máximo a novidade que surgia. Ao mesmo tempo, como todo principiante - pássaro novo longe do ninho -, não sabiam como lidar com a incipiente liberdade. Foi assim, então, que o público pôde presenciar, pelas primeiras vezes, o uso aberto do palavrão, em canções como Faroeste caboclo (Renato Russo).
O tema censura foi, inclusive, ironizado pelo irreverente Léo Jaime, em Solange, do disco Sessão da tarde (1985), versão para a música de Sting, So lonely: “Eu tinha tanto pra dizer / metade eu tive que esquecer / E quando eu tento escrever / Seu nome vem me interromper / ... / Solange, Solange, Solange / É o fim, Solange”. Solange Hernandes foi diretora da Divisão de Censura de Diversões Públicas do Departamento da Polícia Federal, setor extinto em 1988.
Renato Russo, que faria 50 anos em 2010, embora só tenha chegado ao sucesso após a leva de bandas surgidas na primeira metade da década de 80, que teve o Rock in Rio como marco divisório, foi um dos ícones da juventude da época e compôs duas canções que, junto com Brasil, de Cazuza, viraram hinos políticos daquela geração: Que país é este? e Geração Coca-Cola*. E já que falamos de sexo e política, vale lembrar que outra canção dele, Eduardo e Mônica, recebeu uma análise (Mônica e Eduardo) um tanto política e sexualmente incorreta, na qual o autor inverte o senso comum de que Mônica é inteligente e engajada, enquanto Eduardo é alienado. Não obstante as ditas incorreções, o texto merece uma leitura mais leve, por ser passional – o que o torna mais engraçado - e criativo.
Faroeste caboclo, que se assemelha a uma espécie de ópera-rock, seja pela duração de cerca de nove minutos, seja por contar uma história – de desfecho trágico, por sinal - ou ainda pelas alternâncias melódicas que acompanham o sentimento do que vai sendo narrado, não deixa de lado o toque político, ainda que solto, no último verso: “E João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília com o diabo ter / Ele queria era falar com o presidente pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer” (a extensa música, contrariando as lógicas de mercado, tocava bastante em rádio e era quase uma obrigação, para os jovens de então, saberem sua letra de cor e não salteado). A saga de João de Santo Cristo, narrada na canção, vai virar filme, em breve.
Mas foi a forma peculiar de narrar, por meio da música, conflitos existenciais próprios da juventude – os quais, numa geração dita perdida, pareciam ainda mais comuns -, que tornou tão idolatrado o cara que ousou cantar “e eu gosto de meninos e meninas”. Conflitos traduzidos em versos como “ainda estou confuso, só que agora é diferente”, “mudaram as estações e nada mudou”, “não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas”. E olhe que sexo verbal nem fazia seu estilo.
* Geração Coca-Cola (Renato Russo / Fê Lemos)
Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados
Dos U.S.A., de nove às seis
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Depois de vinte anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser
Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
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