A cidade de São Paulo, característica comum às metrópoles, é formada por várias tribos que pouco ou nada se misturam, buscam cada qual seus espaços e traduzem o lugar de várias maneiras, em diferentes dialetos. A música vinda de lá reflete essa característica, a de ter várias características (e ao mesmo tempo nenhuma, como ser regional ou folclórica, a despeito da legítima música caipira ou sertaneja, vinda do interior do estado).
Uma dessas traduções paulistanas – a mais completa, segundo Caetano Veloso - é a de Rita Lee, cantora que, por sua irreverência inteligente, sempre foi interessante de se escutar - cantando, mas sobretudo falando. Abrindo um parêntese para ilustrar essa irreverência, lembro de duas frases que já escutei ou li em entrevistas dela. Uma em que afirmava querer morrer no palco, o que, segundo ela, seria ótimo para o currículo e outra em que dizia não acreditar em avião: “Acredito em disco-voador, em avião, não”. Além disso, Rita foi transgressora desde o início da carreira, com os Mutantes, com quem formou a banda paulista do tropicalismo.
A vanguarda paulistana foi outra tradução interessante, seja pelo experimentalismo do músico Arrigo Barnabé (paranaense da turma paulista), pelas músicas faladas do grupo Rumo, de letras simplesmente inteligentes, pela irreverência do grupo Língua de Trapo ou pela marginalidade - no ótimo sentido - de Itamar Assumpção. Por terem perfil alternativo e independente, porém, não chegavam à grande massa. E para ser a mais completa, a tradução teria que unir todas essas qualidades: irreverência, inteligência, popularidade, transgressão, simplicidade.
O cantor francês Manu Chao – e ele não é o único - costuma dizer que quando quer conhecer bem uma cidade, costuma ir à rodoviária local. Segundo ele, é lá que se conhece, de verdade, o povo de um lugar, aquele que constitui sua melhor expressão e que não se encontra nos livros de história. E é nesse aspecto, da proximidade com seu povo, da simplicidade, sem perder a citada irreverência inteligente e transgressora, que o compositor Adoniran Barbosa – que faria cem anos hoje, 6 de agosto de 2010 - pode ser considerado a tradução mais completa das terras paulistanas. Um zumbi a despertar o samba de seu túmulo, novo quilombo de Zumbi, mais uma vez lembrando Caetano. Sampa, aliás, é outra completa tradução paulistana.
No hábito de contar histórias e falar sobre sua terra do ponto de vista de suas camadas populares, valendo-se de um linguajar de rica simplicidade, Adoniran Barbosa está para São Paulo como Noel Rosa pra o Rio de Janeiro, Dorival Caymmi para a Bahia e Luiz Gonzaga para Pernambuco. Entre as histórias que eles contam e criam, não sabemos bem o que é verdade ou lenda - e fazemos questão de não saber.
Um desses episódios que envolvem Adoniran diz que ele trabalhou como vendedor numa loja da rua 25 de março, na capital paulista e foi demitido por atender os clientes fazendo batucada no balcão. Outro caso diz que, após muitos anos trabalhando na rádio Record, o compositor paulista resolveu pedir aumento. O responsável pela gravadora disse-lhe que iria estudar o caso e que ele voltasse depois. Quando voltou, ao obter a resposta de que o caso ainda estava em estudo, saiu-se com esta: “Tá certo, o senhor continue estudando e quando chegar a época da sua formatura me avise”. O que menos importa é a veracidade, nesses casos.
Adoniran teve como maiores intérpretes de suas canções a cantora Elis Regina e o conjunto Demônios da Garoa, que registraram belas gravações de suas músicas mais conhecidas, Saudosa maloca e Trem das onze (essa última recebeu, também, excelente versão de Gal Costa). O compositor, que também foi humorista, direcionou a leveza de seu humor para versos como “Nóis se gosta muito mais / Nóis não usa os bleque tais” e canções como Tiro ao Álvaro, Samba do Arnesto ou mesmo a tragicômica Iracema, em que a protagonista da letra morre atropelada.
Nem só de alegria eram feitas as composições do sambista. Com Vinícius de Moraes, ele compôs Bom dia tristeza, de uma tristeza ímpar e a citada Saudosa maloca, de versos pungentes como “Que tristeza que nóis sentia / Cada táuba que caía / Doía no coração”*. Dia desses, citei, em texto, a poesia da frase “como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar” (Romaria - Renato Teixeira). Considero Saudosa maloca da mesma linha, quer pela simplicidade da linguagem, quer por expressar o mais puro sentimento, assim como Cidadão (de Lúcio Barbosa, cantada por Zé Geraldo), Súplica cearense (Gordurinha e Nelinho) e Assum preto (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) que, nesses aspectos, beiram a perfeição.
A mudança de estilo de Adoniran Barbosa em Bom dia tristeza é algo que me faz lembrar Waldick Soriano, que, taxado de brega, sempre gerou comentários perplexos, por cantar, ao mesmo tempo, a nada sutil Eu não sou cachorro não e a romântica Tortura de amor, sucesso, tempos atrás, na voz de Maria Creuza (“Hoje que a noite está calma e que minh'alma esperava por ti, apareceste, afinal, torturando este ser que te adora...”). Mas tradução completa é assim mesmo: não deixa faltar nada. E joga as cascas pra lá!
Disco comemorativo (vários intérpretes): http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/3060453/adoniran-100-anos/?ID=42F947637DA08010A262D0962&PAC_ID=30927
* Saudosa Maloca (Adoniran Barbosa)
Se o sinhô não tá lembrado
Dá licença de contar
Ali onde agora está
Este edifício arto
Era uma casa véia, um palacete assobradado
Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca
Mas um dia
Nóis nem pode se alembrá
Veio os home com as ferramenta
E o dono mandô derrubá
Peguemos todas nossas coisas
E fumos pro meio da rua
Apreciá a demolição
Que tristeza que nóis sentia
Cada táuba que caía
Doía no coração
Matogrosso quis gritar
Mas em cima eu falei
Os home tá com a razão
Nóis arranja outro lugar
Só se conformemo
Quando o Joca falou
Deus dá o frio conforme o cobertor
E hoje nóis pega as paia
Nas grama do jardim
E pra esquecer nóis cantemos assim:
Saudosa maloca, maloca querida
Que dim donde nóis passemo dias feliz de nossas vida
Nenhum comentário:
Postar um comentário