Quando iniciei este blog, comentei que não poderia fazê-lo em melhor estilo, ao falar de um certo carioca que, na ocasião, acabara de lançar novo trabalho. Com este texto, estou completando cem posts, mais de cinco anos depois de ter inaugurado o “Engenho e Arte” e, com um pouco de engenho e arte da minha parte, a data coincide com o lançamento do novo disco desse carioca.
Chico Buarque já foi descrito de todas as maneiras, a maioria das vezes de modo superlativo, fazendo jus a sua excelência como compositor: “Francisco Buarque de Hollanda é a única unanimidade nacional” (Millôr Fernandes), “Chico Buarque é o jeito mais digno de fazer música brasileira” (Toquinho). A correspondência e adequação poética de sua música com as situações de nossa vida real são tão perfeitas que me dão a impressão, como já falei, que sua sequência de DNA é um pentagrama, preenchido pelas partituras de suas canções, e que seu genoma está precisamente refletido em sua obra, que, por sua vez, reflete nossos sentimentos.
Os três primeiros discos de Chico confundem-se e completam-se: “Um disco é continuação do outro. São de uma fase (hoje eu falo de carreira), mas na época eu não tinha a menor idéia de que estava criando pra mim uma profissão, uma carreira. Era uma brincadeira.” – afirmou ele em entrevista, há mais de vinte anos. Nessa entrevista, o compositor divide assim sua obra: primeiro, esses três discos “de brincadeira”, depois, um disco de transição, feito rapidamente (nº 4). Em seguida, de Construção até Meus caros amigos, os trabalhos de cunho político, com músicas de protesto contra a ditadura vigente (um marco do início dessa fase foi Apesar de você, gravada em compacto, em 1970, antes de ter a difusão proibida).
Por último, Chico agrupa os discos “que respiram melhor”. Aqueles que, mesmo ainda abordando temas políticos, o fazem de forma mais leve, seja pela liberação de canções por parte da censura (Apesar de você entre elas), como no disco de 78 - conhecido como o “das samambaias”, as quais fazem figuração na capa -, seja pela visão mais otimista do futuro, como no disco de 84, que tem Pelas tabelas e uma de suas obras de arte, Vai passar (com Francis Hime), as quais falam da redemocratização por que passava o país. Da evolução da liberdade até o dia clarear. De repente, impunemente. Sua autoanálise laboral termina nos anos 80, década em que foi concedida a tal entrevista.
A partir de Francisco (87), depois do fim da ditadura, Chico voltou-se (ou re-voltou-se) ao lirismo, muito bem representado nesse disco por Todo sentimento (com Cristóvão Bastos). Da década de 90 em diante, sua produção musical passou a ser mais escassa, intercalada com a literária. Foram quatro discos de inéditas nos últimos dezoito anos, contando com Chico, seu novo trabalho, lançado esta semana (Antes, houve divulgação em site, com vídeos contendo clipes de todas as faixas e comentários. Num deles, Chico narra, às gargalhadas, o espanto que teve ao deparar-se com comentários de notícias a seu respeito na internet - ‘Esse velho!’, ‘O que o álcool não faz com a pessoa!’ -, algo que vem conhecendo há pouco e aos poucos).
Se o samba foi ritmo predominante e constante em suas composições, sobretudo no início da carreira, quando a influência da Bossa nova, de tão recente, era bem forte, ele nunca se limitou a um único gênero e sempre procurou, também, passear por outros, os mais variados, de Frevo diabo a Baioque. Como se já não tivesse feito tanto e tudo, Chico, em Chico, fez questão de fazer de tudo um tanto, indo do blues ao baião, claro, sem esquecer o samba, aí também muito bem representado.
Chico, o disco, tem dez canções, de arranjos mais enxutos e a base do conjunto que o acompanha ainda é a mesma montada para o programa Chico & Caetano, dos anos 80. Segundo Chico, o cantor, esse trabalho foi construído aos poucos, com um intervalo de um a três meses entre uma música e outra. Em seis delas, além dos vocais, ele toca violão, o que pode ser atribuído aos ensaios prévios no estúdio caseiro do maestro Luiz Cláudio Ramos - antes das gravações definitivas -, que o deixaram mais à vontade: “Eles não disseram nada, eu fui tocando”, diz ele, brincando. Amante do futebol, ele diz não ter com as mãos a mesma habilidade que tem com os pés, o que o faz, frequente e literalmente, meter os pés pelas mãos.
Por falar em pés, mais de duas décadas depois de ter composto Valsa brasileira (com Edu Lobo), Chico, o compositor, confirma ser um legítimo pé-de-valsa ao compor, agora, uma valsa russa, Nina*. Uma das melhores canções de Chico - disco e compositor -, em que ele brinca com a sonoridade russa de ‘embora nova’, como fizera à francesa com 'o mar, marée, bateau' (o mar me arrebatou) e ‘acorda, acorda’ (d’accord, d’accord) em Joana francesa. Nina vem se juntar a Rita, Rosa, Carolina, Iolanda, Bárbara, Geni e demais musas reverenciadas no intervalo de tempo transcorrido desde que Madalena foi pro mar até Renata Maria sair de lá.
Outro destaque é Querido diário, narrativa, em tom de diário, do cotidiano (um novo Cotidiano, segundo Chico): “Hoje topei com alguns conhecidos meus / Me dão bom-dia, cheios de carinho / Dizem pra eu ter muita luz, ficar com Deus / Eles têm pena de eu viver sozinho”. Como é bastante comum em suas composições, as canções do álbum Chico não têm refrão, com exceção dos sambas que fez em parceria: Sou eu e Sinhá, com melodias de Ivan Lins e João Bosco, respectivamente. Sinhá, em sentido estrito, não chega a ter um refrão, mas um simples e gostoso ieriêre, by João Bosco, que pode ser considerado como tal. Rubato é outra feita em parceria - com Jorge Hélder, músico que o acompanha há algum tempo. As demais são puro Chico.
Tipo um baião termina com versos singelos que lembram as típicas canções de Luiz Gonzaga, citado, inclusive, na letra: “Meu coração / que você sem pensar / ora brinca de inflar / ora esmaga / igual que nem / fole de acordeão / tipo assim um baião do Gonzaga”. Sem você 2, ele diz ter feito inspirado em Sem você, de Tom e Vinícius. Se eu soubesse tem participação especial da cantora Thaís Gulin, que já tinha gravado a música em seu disco, com participação de Chico: “Ah, se eu soubesse não andava na rua... Não ia enfim cruzar contigo jamais... Mas acontece que eu saí por aí e aí larari, lariri...”. Outras participações no disco são de Wilson das Neves em Sou eu e de João Bosco em Sinhá, sua segunda obra com Chico.
Chico faz arte com a naturalidade de uma criança. Faz arte como quem faz arte. Com quase cinquenta anos de carreira e mais de vinte encantadoras brincadeiras criadas, não sei se já se deu conta disso, mas, caso a pensar para suas artes vindouras, ele tem canções com títulos iniciando com todas as letras do alfabeto, com exceção de Z - e por pouco, já que Angélica foi feita para Zuzu Angel (a Tom e Vinícius falta o X, que não falta a Caetano e que Chico usou em Xote da navegação). Esse velho é mesmo um compositor com todas as letras, de A a X.
* Nina (Chico Buarque)
Nina diz que tem a pele cor de neve
E dois olhos negros como o breu
Nina diz que, embora nova
Por amores já chorou que nem viúva
Mas acabou, esqueceu
Nina adora viajar, mas não se atreve
Num país distante como o meu
Nina diz que fez meu mapa
E no céu o meu destino rapta
O seu
Nina diz que se quiser eu posso ver na tela
A cidade, o bairro, a chaminé da casa dela
Posso imaginar por dentro a casa
A roupa que ela usa, as mechas, a tiara
Posso até adivinhar a cara que ela faz
Quando me escreve
Nina anseia por me conhecer em breve
Me levar para a noite de Moscou
Sempre que esta valsa toca
Fecho os olhos, bebo alguma vodca
E vou
P.S.: Agradeço a vocês, parentes, amigos, anônimos, leitores, seguidores e incentivadores, desde os mais antigos, que, ao longo desses cem posts, sempre me estimularam, com seus comentários generosos, a prosseguir neste trabalho, até os mais recentes que, vez por outra, encontro nos corredores reais ou virtuais e descubro, gratificado, que também fazem parte dessa minha turma.
Um comentário:
A-me-i, muito0 bom, e estou feliz pelo apreço com que tratas a boa música.
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