23.9.11

Que a vida começasse em 85


A primeira edição do festival Rock in Rio, ocorrida em janeiro de 1985, foi desses eventos que acontecem no momento certo, no lugar certo. Com um público total de 1.380.000 pessoas, o maior de todas as edições, tornou-se uma espécie de versão brasileira de Woodstock, sem o mesmo caráter libertário e alternativo, mas com semelhante apelo de um período musical fértil por trás, guardadíssimas as devidas proporções.

O Rock in Rio I foi, ao mesmo tempo, divisor de águas e ponto médio no percurso ascendente que a nova onda roqueira percorria no país, a começar da data em que foi realizado, bem no meio da década de 80. Mesmo com o rock nacional já consolidado, o festival contribuiu para seu crescimento mais acelerado e uma maior profissionalização do negócio como um todo, o que gerou oportunidade para novas bandas que não paravam de surgir, fossem de boa ou má qualidade aos olhos e ouvidos críticos. Por outro lado, durante o evento, muito se queixou da diferença de tratamento dispensado aos músicos locais em relação aos estrangeiros, estes com mais exigências e regalias.

Para o público, o clima do festival foi o melhor possível. Refletia o astral do país, que encerrava, na ocasião, um período de 21 anos de ditadura militar e virava a tal página infeliz da nossa história. Além de grandes nomes da MPB, como Ney Matogrosso, Ivan Lins, Erasmo Carlos, Rita Lee, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Alceu Valença, Moraes Moreira e de artistas do rock nacional que despontavam a olhos vistos e não vistos (Blitz, Kid Abelha, Lulu Santos, Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso), o festival teve como atrações internacionais os grupos Queen, Yes, AC/DC, Iron Maiden e os cantores James Taylor e Rod Stewart, entre outros.

Bandas como Legião Urbana, Titãs, Ultraje a Rigor e RPM, que logo despontariam para o sucesso, não participaram do evento. Diferentemente de edições posteriores, o Rock in Rio I contou com apenas um palco, sem abrir espaço para revelações. Mesmo dentre os novos talentos, preferiu investir em nomes mais conhecidos ou já consagrados. O Ultraje a Rigor, não obstante, foi homenageado no show dos Paralamas do Sucesso, que cantaram Inútil* (de Roger Moreira, líder do grupo), num dos grandes momentos do festival.

Passados 25 anos da última eleição direta para presidente e com o fracasso recente da campanha Diretas Já (que virou diretas já já), a letra de Inútil, por meio de um linguajar que remetia ao sucateamento da educação, à má qualidade do ensino e à baixa escolaridade do brasileiro, começava com a constatação: “A gente não sabemos escolher presidente”. Com inflação, crise, dívida externa e FMI na pauta dos assuntos econômicos, prosseguia: “A gente pede grana e não consegue pagar” e, após sucessivos fracassos nas copas de 74, 78 e 82, terminava com outro fato inegável: “A gente joga bola e não consegue ganhar”. Em suma: “A gente somos inútil”.

Vários outros momentos marcaram o evento e, mesmo quem não o acompanhou à época, deve ter deparado, depois, com imagens como as emocionantes interpretações de Love of my life pelo grupo Queen ou You've got a friend por James Taylor. Taylor, pouco depois, viria a compor Only a dream in Rio, canção em que declara seu amor à cidade e fala da experiência pela qual passou no festival carioca: “Eu estava lá naquele dia / E meu coração voltou a viver / Havia mais do que as vozes que cantavam / Mais do que rostos me olhando / E mais do que olhos brilhando”.

A nível nacional, muitos dos momentos inesquecíveis do Rock in Rio I tiveram relação com as mudanças políticas por que passava o país, com a redemocratização. Mesmo versos de canções que não tinham, originalmente, ligação com o tema, acabaram por ganhar essa conotação, como: “Tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais” (Anunciação** – Alceu Valença) e “Estamos, meu bem, por um triz, pro dia nascer feliz” (Pro dia nascer feliz – Cazuza / Frejat ).

Em 15 de janeiro de 85, Tancredo Neves foi eleito, de forma indireta, presidente da República, o que marcou o fim dos governos militares no país. Naquele mesmo dia, o grupo Barão Vermelho apresentou, no festival, um show emocionante, com os componentes da banda em total sintonia com a plateia, todos imbuídos do mesmo espírito patriótico, revestidos por trajes e bandeiras verde-amarelas. No ponto máximo do show, Cazuza clamou: “Que o dia nasça lindo pra todo mundo amanhã. Um Brasil novo, com a rapaziada esperta”, após cantar Pro dia nascer feliz***, para delírio do público.

A quarta edição do festival em território brasileiro terá início nesta sexta-feira, 23 de setembro. A programação é diversificada e tem como maiores destaques internacionais Elton John e Stevie Wonder. A ideia de um espaço alternativo foi mantida e promete alguns bons shows. Nada comparável àquela edição que, não só em termos de atrações, mas sobretudo pelo momento cultural e político do país, parece ser insuperável. Afinal, uma esperança clara por dias melhores combina perfeitamente com o espírito juvenil, que, por sua vez, casa muito bem com um festival de rock. E não é todo dia que esse amoroso triângulo é formado, que a Lua está na sétima casa e Júpiter alinhado a Marte.



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Um comentário:

Mulher dos gatos disse...
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