10.9.12

Até que a música os separe

Ao longo do tempo, a música passou por várias transformações, desde o modo de interpretação ao surgimento de novos ritmos. A temática predominante, porém, ainda que expressa de diferentes formas, pouco mudou e muitas relações amorosas foram formadas e desfeitas no compasso das canções. Amores de bolero, exacerbados, amores bossa-nova, contidos, todos casam bem com o despertar de emoções que nos provoca a união entre letra e música.

Dentre as composições musicais que tratam do tema das separações e desencontros amorosos, é mais frequente a descrição de um amor que resta unilateral, em que o amante lamenta a ausência da pessoa amada e sonha com um reencontro, indesejado pela outra parte. Ou ainda, de amores que nunca se concretizaram, impossíveis, platônicos. Uma terceira variante vislumbra a separação do ponto de vista da parte que, ainda que a custo, já a assimilou, ou como algo já aceito por ambas as partes, com o grau de desarmonia resultante a definir a trilha sonora dos “ex my loves”, em alto e bom som ou não, como veremos a seguir, numa pequena amostra.

Pode-se considerar como limites desse último e específico espectro musical, de um lado, Vingança*, de Lupicínio Rodrigues (“Mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada / Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar”), do outro, Drão, de Gilberto Gil (“Não há o que perdoar, por isso mesmo é que há de haver mais compaixão”). Creio que não se pode ser mais e menos tolerante do que, respectivamente, os personagens de uma e outra música, a segunda inspirada em separação real de Gil, de sua terceira esposa Sandra, a quem chamava Drão. Segundo ele, a canção foi das mais difíceis de compor, justamente por tratar, ao mesmo tempo, de amor e desamor, bem como por seu envolvimento pessoal no caso.

O mundo é um moinho (“De cada amor tu herdarás só o cinismo / Quando notares estás a beira do abismo / Abismo que cavaste com teus pés”) seria páreo para Vingança (pelo que sei, é incerta a versão de que Cartola a teria composto para uma filha ou enteada, o que a excluiria do escopo desta análise), mas, enquanto uma pragueja ferozmente contra o ser (des)amado, a outra “apenas” lhe prevê um futuro sombrio. Seguindo a linha gradativa de conflito, em ordem decrescente de intensidade, perto de Vingança estaria Fracassos, de Fagner (“Não chore se eu disser que já vou / Você quem quis assim, vai sofrer / … / Você tem que chorar se eu sofrer / Você tem que pagar se eu morrer”).

Um pouco mais sutil, mas com doses de rancor e inteligentes pitadas de ironia e sarcasmo, Olhos nos olhos**, de Chico Buarque, é primorosa e tem também seu lugar de destaque na parte de cima da lista. A alusão à obediência, na letra, é formidável (“Quando você me deixou, meu bem / Me disse pra ser feliz e passar bem / Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci / Mas depois, como era de costume, obedeci”). São de Chico, também, outros clássicos do tema, de versos menos ou mais pacíficos, como Trocando em miúdos, com Francis Hime (“Mas devo dizer que não vou lhe dar / O enorme prazer de me ver chorar / Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago / Meu peito tão dilacerado”) e Quem te viu, quem te vê (“Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua”).

No extremo mais amigável do espectro da separação, Drão vem acompanhada de Sonhos, de Peninha (“Não tem desespero não / Você me ensinou milhões de coisas / Tenho um sonho em minhas mãos / Amanhã será um novo dia / Certamente eu vou ser mais feliz”). De mesmo estilo harmonizador, também pode ser posta ao lado das duas a recente Depois, de Marisa Monte, com Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes (“Depois de sonhar tantos anos / De fazer tantos planos / De um futuro pra nós / Depois de tantos desenganos / Nós nos abandonamos / Como tantos casais / Quero que você seja feliz / Hei de ser feliz também”).

Numa posição intermediária, em que, se não há motivo para vingança, também não o há para sonhos, Ivan Lins e Vítor Martins contribuem para o ranking com Saindo de mim (“Você foi saindo de mim / Devagar e pra sempre / De uma forma sincera / Definitivamente”), Bilhete (“E por fim nosso caso acabou, está morto / Jogue a cópia das chaves / Por debaixo da porta / Que é pra não ter motivos / De pensar numa volta / Fique junto dos seus / Boa sorte, adeus”) e Começar de novo (“Começar de novo / E contar comigo / Vai valer a pena / Já ter te esquecido”), mais um clássico do tema. Por fim, para tornar a análise menos excludente quanto a estilo musical, nessa mesma posição da escala, poderia entrar Baba, de Kelly Key, que, apesar do cruel “Isso é pra você aprender a nunca mais me esnobar”, tem o atenuante “e pra não dizer que eu sou ruim...”.


* Vingança (Lupicínio Rodrigues)

 Eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que lhe encontraram
Bebendo e chorando
Na mesa de um bar

E que quando os amigos do peito
Por mim perguntaram
Um soluço cortou sua voz
Não lhe deixou falar

Eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que tive mesmo de fazer esforço
Prá ninguém notar

O remorso talvez seja a causa
Do seu desespero
Ela deve estar bem consciente
Do que praticou

Me fazer passar esta vergonha
Com um companheiro
E a vergonha
É a herança maior que meu pai me deixou

Mas, enquanto houver força em meu peito
Eu nao quero mais nada
E pra todos os santos vingança (Só vingança, vingança, vingança)
Vingança clamar (Aos santos clamar)

Ela há de rolar qual as pedras
Que rolam na estrada
Sem ter nunca um cantinho de seu
Pra poder descansar



**

2 comentários:

Anônimo disse...

A minha irmã Jacqueline me indicou o seu blog,eu vim e fiquei encantada. O seu texto é muito bem escrito.Parabéns.Gostaria só de dar uma sugestão para vc procurar ver as músicas de Dalva de Oliveira.Essa mulher cantava divinamente e vivia às turras com o marido,Herivelto Martins.As crises conjugais dos dois eram expostas ao público em suas músicas.Os dois tiveram 2 filhos,Pery e Ubiratan,que eram mudados de escola frequentemente ao sabor na conturbada relação conjugal dos pais. Neide Matsumoto

Paulo Bap disse...

Neide, agradeço a visita e fico satisfeito com suas boas impressões sobre o blog, recomendado pela querida amiga Jacque. Você tem razão, Dalva de Oliveira é inesquecível, mas, como o tema e o universo musical eram muito vastos, procurei me restringir apenas aos casos amorosos em que a parte cantante, bem ou mal, não mais sofre. A propósito, sobre Dalva, escrevi aqui no blog, em 2010, talvez você aprecie: Era do rádio (pena, não é mais).