Além de dar nome ao documentário, Loki (que, imagino, Arnaldo Baptista relaciona a “louco” e, segundo a Wikipedia, é um deus da mitologia nórdica, visto ora como bom, ora como mau) é título do primeiro trabalho do músico (1974) após sua saída dos Mutantes, considerado por especialistas um dos melhores da nossa música (a diferença é que, no disco, o nome tem uma interrogação ao final: Loki?). O disco é emblemático e representa a passagem de sua fase mutante - com Rita Lee e Sérgio Dias -, para o início de sua atuação solo (do tom Lee-Sérgico para o lisérgico, mais ácido).
A ausência de Rita Lee, personagem importante na história do protagonista do filme, é sentida (em duplo sentido), mas só reforça sua presença na vida do músico. Um relacionamento forte que, como tal, deixou marcas. Num dos depoimentos impactantes do documentário, em que se refere à cantora, Arnaldo o faz aparentemente sem mágoa e com carinho. Diz que ela o colocou no hospício, mas observa: em parte com razão. A cantora, por sua vez, já afirmou, em entrevista à televisão, que o casamento entre eles foi uma brincadeira de amigos. Outro ponto interessante é que vários depoentes dizem que a cantora abandonou o grupo, enquanto ela sempre declarou ter sido expulsa.
Embora não tenha dado sua versão dos fatos neste filme, Rita cedeu todos os direitos de sua imagem ao documentário e, segundo o diretor Fontenelle, foi bastante gentil nesse aspecto: “... mesmo ela não tendo dado um depoimento, ela está presente o tempo todo no filme e de uma maneira bem bonita, dando um aspecto mais lírico ao filme. O filme mostra a Rita Lee da época dos Mutantes e como ela aparece na lembrança do Arnaldo, linda, imaculada.”.
Anos depois da separação dos Mutantes, Arnaldo tentou suicídio - segundo ele por estar sendo mal entendido -, jogando-se do terceiro andar de uma clínica, onde estava internado por problemas com drogas. Sobre o episódio, ele fala com serenidade e de forma comovente, com uma delicadeza própria de quem possui alma de criança, como o amigo e admirador Sean Lennon, filho de John e Yoko, bem o definiu. A visível admiração de Sean, em seu depoimento ao filme, apenas comprova o reconhecimento internacional do talento e da obra do músico brasileiro, perceptível, também, em outras passagens.
Um dos melhores depoimentos de Loki é o de Sérgio Dias, que reafirma toda a admiração que tem pelo irmão Arnaldo e faz um pedido público de desculpas, por não o ter entendido como deveria. Segundo Sérgio, a reaproximação deles – como na temporada de shows de retorno dos Mutantes, em 2006 - produziu um efeito que quinze anos de análise não produziriam (uma amiga observou bem que Rita Lee, ao não participar diretamente desses shows e do filme, negou esse bem a si mesma).
Ao longo do documentário, Arnaldo Baptista pinta uma espécie de quadro da sua vida, em que se destacam uma expressão (sinto muito) e uma imagem feminina. A primeira tanto pode ser uma expressão de pesar como uma afirmação de alguém dizendo-se muito sensível (sentir muito já é, por si só e literalmente, um duplo sentido, um sentir em dobro). A figura feminina, por sua vez, é desenhada com olhos azuis que, ao final, transformam-se em castanhos. A passagem é sutil aos olhos dos espectadores, mas essa imagem é definida, pelo próprio Arnaldo, como sendo a “transmutação do amor” e representa, segundo o diretor do filme, uma fusão das duas paixões do músico: Rita Lee e Lucinha Barbosa, atual esposa.
À pergunta título do disco solo de 1974 (Loki?), o filme de 2008 foi resposta definitiva: Loki. Não um louco qualquer, mas um mutante (segundo o Aurélio, alguém que apresenta características marcadamente distintas das de seus ascendentes). Um louco com quem me identifiquei, para além do sobrenome comum. Vai ver todo Baptista tem um pouco de loki dentro de si. Sinto muito.
“Arnaldo é responsável por quase tudo que aconteceu de 1967 para frente” (Rogério Duprat, responsável por apresentar os Mutantes a Gilberto Gil, por ocasião do festival da Record de 1967, quando estes interpretaram, juntos, a segunda colocada, Domingo no parque, da qual Duprat foi o arranjador).
“Missão e destino, herói de guerra, herói mítico, todo ferido. Não são feridas expostas, muitas vezes. São feridas internas, mas essas feridas são concentração de sabedoria, concentração de conhecimento” (Tom Zé)
“Ele parece que tá no mundo da lua, mas, na verdade, ele deu o jeito dele de ficar feliz” (Zélia Duncan, que substituiu Rita Lee no retorno dos Mutantes, em 2006).
“Faço a maior força possível pra alcançar esse âmbito de comunhão, onde eu falaria x e eles entenderiam x, não y” (Arnaldo Baptista).
Obs.: Clique aqui para escutar um trecho de Balada do louco (Arnaldo Baptista / Rita Lee) , ao vivo, no Barbican Theatre, Londres, 2006 e sinta muito.
Encantamento (Arnaldo Baptista)
Ênfase dou ao afeto
Contente com o tente ser feliz
Colecionando selos
Só porque sou louco e gosto
De sê-lo assim
Como uma gêmea siamesa
Que uma das duas cabeças
É careta, a outra...
Gosto não se discute
Psicodeliciosamente
Curto o encantamento
Simbiótico
Um comentário:
Que lindeza de texto e de documentário. Soube da existência do Arnaldo ano passado, quando comecei a ouvir Mutantes. A incompreensão, a imaginação fértil e a grande sensibilidade que ele tem, eu também tenho, e eu também sinto muito. Também me acho estranha no ninho.
Nayra.
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