Gonzaga
- de pai pra filho*, de Breno Silveira (Dois
filhos de Francisco, À beira do caminho), é
mais uma merecida homenagem a Luiz Gonzaga, no ano de seu centenário.
Com um competente elenco, o filme enfoca a vida do nosso mestre desde
a adolescência e percorre toda sua carreira - o começo difícil, o
auge, o ostracismo e a volta, com destaque para seu relacionamento
conturbado com o filho Luiz Gonzaga Júnior.
O
nascimento do filho, em 1945, coincidiu com outros eventos de grande
importância e mesmo determinantes na vida futura de Luiz Gonzaga,
desde a gravação dos primeiros discos como cantor, até o encontro
com Humberto Teixeira, com quem criaria o baião, ritmo que dominaria
o cenário da música brasileira até o surgimento da bossa nova, em
1958. Gonzaga viu-se, então, entre a carreira - incipiente, mas
ascendente - e a criação do filho, cuja mãe morrera precocemente.
Sem poder cuidar dos dois, optou pela carreira, com o pensamento de
viabilizar, mais pra frente, a dupla responsabilidade, o que, por uma
série de fatores, e entre uma e outra tentativa malsucedida, nunca
vingou. O menino foi criado no morro de São Carlos pelos padrinhos,
Dina e Henrique, casal de amigos que recebera seu pai no Rio de
Janeiro.
O fato de
terem crescido em ambientes e culturas tão díspares só realçou as
diferenças entre pai e filho, o que, aliado a uma natural denegação
da influência do primeiro sobre o segundo, refletiu-se na música
deste, bastante desvinculada do viés nordestino da música daquele.
Outra diferença: Gonzaguinha compunha quase sempre só, Gonzaga,
quase sempre não. Em comum, o talento para a música, transmitido de
pai pra filho.
A música
de Luiz Gonzaga e seus parceiros carrega a emoção mais contida do
sertanejo, o falar cantando, o aboio em forma de canção, o norte.
Quer em ritmo de alegria, leveza ou ingenuidade com um toque de
malícia, quer em tom de introspecção, lamento, saudade ou
resignação, os sentimentos e comportamentos são sempre
confrontados com elementos comuns à realidade sertaneja, voltados
àquele microuniverso, por meio de linguagem própria e bem peculiar:
“Mandacaru
quando fulora na seca / é o sinal que a chuva chega no sertão /
toda menina que enjoa da boneca / é sinal de que o amor já chegou
no coração”, “Assum preto, meu cantar / é tão triste como o
teu / também roubaram o meu amor / que era a luz, ai, dos olhos
meus”, “Saudade assim faz roer e amarga que nem jiló”, “Quando
a ribaçã de sede / bateu asas e voou / foi aí que eu vim me embora
/ carregando a minha dor”, “Ai, juazeiro / ela nunca mais
voltou”, “Tendo um coração vazio / vivo assim a dar psiu /
sabiá vem cá também”, “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação”...
A música
de Gonzaguinha é urbana e reflete o ritmo de vida acelerado, de
emoções exacerbadas, o cantar falando, verbos soltos em desabafo, o
desnorte. Expõe nossas limitações e os limites a que somos
expostos diante desse quadro, de forma incisiva: “não
dá mais pra segurar, explode coração”, “só sinto no ar o
momento em que o copo está cheio e que já não dá mais pra
engolir”, “coração na boca, peito aberto, vou sangrando”.
Não por um linguajar contundente, mas pelo caráter autobiográfico,
Com a perna no mundo**
tem forte carga emocional e beleza redobrada.
Ao mesmo
tempo, e em contraponto, Gonzaguinha destila versos doces, como em
Espere por mim, morena ou Diga lá, coração e
mensagens afirmativas: “eu acredito é na
rapaziada / que segue em frente e segura o rojão”, “eu sei que a
vida devia ser bem melhor e será”, “fé na vida, fé no homem,
fé no que virá”, “eu apenas queria que você soubesse que
aquela alegria ainda está comigo”. Maria
Bethânia, Simone e Elis Regina foram suas melhores intérpretes.
Posicionamento
político era outra diferença visível entre pai e filho. Gonzaga
Jr. pertence a uma geração cujo fim da adolescência coincide com o
início do período de ditadura militar no Brasil. Durante a
faculdade, iniciou seu engajamento político, junto com sua carreira
musical, ao participar do movimento artístico universitário (MAU),
ao lado de Ivan Lins, Aldir Blanc e outros. O movimento prosperou e,
no início dos anos 70, gerou como frutos disco e programa de tv (Som
Livre Exportação). Logo depois, Gonzaguinha
lançou seu primeiro LP, que incluía Comportamento geral, sua irônica e
mais conhecida canção de protesto (“Você
merece, você merece / Tudo vai bem, tudo legal / Cerveja, samba e
amanhã, seu Zé / Se acabarem com teu carnaval?”).
O filme
faz uma retrospectiva da vida de Luiz Gonzaga, tomando por base um
depoimento real do rei do baião a Gonzaguinha. Num interessante
recurso, os momentos mais importantes de suas carreiras são
mostrados ora em cenas filmadas, ora em imagens reais, culminando com
o primeiro encontro entre pai e filho no palco, num show em 1981,
cantando Vida de viajante. A volta de
Gonzaga a Exu, depois da fama, por tantas e brilhantes vezes contada
e cantada por ele, é bem ilustrada no filme, bem como sua boa
relação com o pai Januário e a grande influência deste em sua
carreira.
Um Luiz,
outro Luiz. Quase partiram juntos. Um luz, outro reluz. Não importa
que Exu e São Carlos não sigam a mesma doutrina, que a longa
avenida de gás neon não se encontre com a estrada de Canindé ou
que o riacho do navio não deságue no lindo lago do amor. Nesse
imenso salão ou numa sala de reboco, num pé de serra pernambucano
ou num morro carioca, no sertão ou perto do mar, a essência da arte
é a mesma: vida (e vice-versa). E essas duas, particularmente, os
seguintes versos de Gonzaguinha parecem, por simples acaso, definir
com precisão: “Para quem bem viveu o amor,
duas vidas que abrem não acabam com a luz. São pequenas estrelas
que correm no céu, trajetórias opostas, sem jamais deixar de se
olhar”.
Chico e Bethânia, Caetano e Chico, Luiz Gonzaga e Fagner, Elis e Tom, Pessoal do Ceará
(Ednardo, Amelinha e Belchior), Vinícius, Maria Medalha e Toquinho, a
música brasileira já nos brindou com memoráveis encontros, em geral ao
vivo, a maioria em dupla, alguns em trio. Afora obras coletivas como Tropicália ou Panis et circensis e Clube da esquina, há, também, outros trabalhos reunindo mais do que três artistas, como O Grande encontro (Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Elba e Zé Ramalho), Cantoria (Elomar, Xangai, Vital Farias e Geraldo Azevedo), Tom . Vinícius . Toquinho . Miucha e Doces bárbaros, formação musical que uniu, em 1976, Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia.
Os quatro amigos baianos reuniram-se, em trabalhos conjuntos, por várias vezes. Caetano, que iniciara a carreira com Gal, em Domingo, viria juntar-se a Bethânia, num disco ao vivo (1978), a Gil, em Barra 69 e Tropicália 2 (1993) e a Gil e Gal no disco Temporada de verão - ao vivo na Bahia (1974). Sem Gal e com Bethânia, os dois compositores dividiram microfones e juntaram vozes com João Gilberto, em Brasil (1981). Já na citada obra coletiva que marcou o tropicalismo (Tropicália ou Panis et circensis), dos quatro, apenas Bethânia ficou de fora. Com Doces bárbaros,
porém, via-se, pela primeira vez, os quatro reunidos num mesmo
trabalho, o que só ocorreu novamente em show registrado no documentário Outros (doces) bárbaros (Andrucha Waddington, 2002).
O trabalho a quatro vozes dos doces bárbaros representou rara
oportunidade de reunir ingredientes como ousadia, performance de palco,
qualidade vocal e sensibilidade poética. Do encontro, resultou disco ao
vivo, documentário e uma série de shows. A reunião do grupo veio pouco
depois do retorno de Caetano e Gil do exílio em Londres, que, por sua
vez, marcou o fim e sucedeu o movimento tropicalista.
"Com amor no coração, preparamos a invasão" - Depois de tantas,
tão intensas e recentes mudanças, a invasão era então mais doce,
pacífica, mas ainda assim, ou talvez por isso mesmo, provocativa. Embora
a subversão ou transgressão deles fosse mais no âmbito comportamental,
de costumes, em tempos de ditadura e recém-chegados do exílio, eles eram
cobrados quanto a posições políticas. "Por que um grupo tão doce, no atual momento da conjuntura nacional?"
- perguntou um jornalista, em entrevista coletiva do grupo, por ocasião
do lançamento do show. Esta e outras interessantes passagens são
exibidas no documentário Os doces bárbaros (Jom Tob Azulay, 1976), cuja equipe acompanhou o quarteto em apresentações, bastidores, ensaios e entrevistas.
"Tudo ainda é tal e qual e no entanto nada igual" - Essa doce e
bárbara invasão, no meio da década de 70, representaria uma espécie de
rito de passagem na carreira do quarteto. Como disse Caetano na ocasião,
"eu não sei dizer o que é propriamente novo, como temática, nos
doces bárbaros, a não ser o fato simplíssimo de estarmos os quatro
juntos, sem teorizar muito". De fato, num período pós-tropicalista,
que sucedia décadas de intensa e rica produção cultural, inclusive da
parte deles, "os quatro cavaleiros do após-calipso" não tinham muito o
que inventar, nem tinham essa pretensão.
Todos então com mais de trinta (Bethânia, a mais nova dos quatro,
completaria essa idade naquele ano), eles assumiriam, dali pra frente,
uma postura mais madura e atingiriam, então, o auge de suas carreiras e
um lugar definitivo entre os grandes nomes da nossa música popular.
Depois de cantar Caymmi, Gal, com Caras e bocas, chegaria ao topo das paradas com Tigresa, de Caetano, que lá estava com Qualquer coisa. Bethânia logo atingiria a condição de diva, sobretudo com o lançamento do disco Pássaro proibido, que tinha como destaque uma de suas interpretações de maior sucesso, Olhos nos olhos, de Chico Buarque.
Gil acabara de lançar o excelente álbum Refazenda, cujo título
reunia ideias bem pertinentes. Primeiro, a percepção de que, se não
havia o que inventar, seria possível reprocessar, refazer. Ademais, o
prefixo “re” tanto encerrava a ideia de repetição quanto de volta - às
raízes, ao interior (ao qual também remete o termo fazenda) do ser e do
estar, ao país, no pós-exílio. O mote seria usado novamente em Refavela, seu disco seguinte e também em Refestança, ao vivo com Rita Lee, embora o compositor, ao referir-se à trilogia “Re”, considere Realce o terceiro trabalho da série. Por sinal, o novo disco de Gal, Recanto,
com canções de Caetano, poderia bem ser a continuação dessa sequência
de Gil, por representar, a partir do título - e da própria concepção -
os mesmos conceitos: o cantar de novo, refazer o canto, buscar um novo
canto, num novo recanto.
O repertório do disco e do show Doces bárbaros era, quase todo, formado por composições de Caetano e Gil. As interpretações de Bethânia em Um índio (Caetano), Gal e Bethânia em Esotérico (Gil) e os quatro juntos em Atiraste uma pedra (Herivelto Martins / David Nasser), Fé cega, faca amolada (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos) e Os mais doces bárbaros* (Caetano) eram alguns dos belos momentos do encontro. O seu amor (Gil) pregava o amor livre e parodiava slogan ufanista utilizado durante o regime militar: Brasil, ame-o ou deixe-o (“O seu amor, ame-o e deixe-o livre para amar”). Amor, misticismo, sincretismo religioso, natureza, diferentes temas, diferentes formas. Viva qualquer coisa.
* Os mais doces bárbaros (Caetano Veloso)
Com amor no coração
Preparamos a invasão
Cheios de felicidade
Entramos na cidade amada
Peixe Espada, peixe luz
Doce bárbaro Jesus
Sabe bem quem né otário
Peixe do aquário nada
Alto astral, altas transas, lindas canções
Afoxés, astronaves, aves, cordões
Avançando através dos grossos portões
Nossos planos são muito bons
Com a espada de Ogum
E a benção de Olorum
Como um raio de Iansã
Rasgamos a manhã vermelha
Tudo ainda é tal e qual
E no entanto nada igual
Nós cantamos de verdade
E é sempre outra cidade velha
Numa época de grande
efervescência cultural e política em vários cantos do mundo, seria
natural que surgissem divisões, sectarismos e posicionamentos
antagônicos, sem meios-termos. Foi nesse clima que surgiu o
tropicalismo, um movimento contra movimentos – políticos,
sociais, culturais -, não por querer manter o status quo ou
promover a estagnação, mas por seguir a cartilha cultural
antropofágica e ser contra a uniformidade, o empunhar de uma única
bandeira, o rótulo (justamente num período em que a música passava
a ser rotulada e surgia o termo Música Popular Brasileira,
representado pela sigla MPB).
Quase cinco décadas
depois, o movimento tropicalista volta, agora, a ser discutido, com a
percepção superior que o distanciamento temporal permite. Está
sendo reestudado por um de seus principais representantes, o cantor e
compositor Tom Zé, em seu novo disco, Tropicália lixo
lógico e, no cinema, é tema de dois documentários: Futuro
do pretérito: Tropicalismo Now! (Ninho Moraes e Francisco César
Filho) e Tropicália (Marcelo Machado).
Nessa
reanálise, Tom Zé imagina um elo entre o tropicalismo e a cultura árabe, desembocando no sertão nordestino que, segundo
ele, convive com o “efeito
residual de oito séculos de dominação árabe na Península
Ibérica”,
a qual “recebia
uma sofisticada educação, com a cultura moçárabe”,
que se refletiu na cultura do sertanejo analfabeto. Tal constatação
e a identificação de Tom Zé com a cultura sertaneja, por sua vez,
são citadas por Caetano Veloso em artigo publicado em O Globo,
sobre o tropicalismo
e o novo disco do colega: “...
há uma identificação sertaneja que Gil (em larga medida) pode
partilhar com Tom Zé, mas Bethânia, Gal e eu, meninos da área da
Baía de Todos os Santos, vimos de outro ambiente mental”.
Caetano completa que, nesse ambiente, “as
formas mentais sertanejas eram remotas. Não tínhamos o repentista,
o cordelista ou o aboiador em voz de alcance”.
Toda
essa (pro ou con)fusão de ideias e ideais ajuda a explicar como o
movimento tropicalista absorveu influências tão dessemelhantes
quanto, por exemplo, a Banda de Pífanos de Caruaru e Roberto
Carlos.
Fruto de um apurado
trabalho de pesquisa, Tropicália,
o filme, traz depoimentos, fotos e apresentações da época, numa
certa ordem cronológica, em raras e expressivas imagens de arquivo,
em que figuram a maior parte dos expoentes tropicalistas, como
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa e Os Mutantes,
na música, o artista plástico Hélio Oiticica, criador da obra que
inspirou o nome do movimento e aqueles que tinham alguma ligação
com sua filosofia, como Gláuber Rocha, no cinema e José Celso
Martinez, no teatro.
Entre as raras imagens
exibidas, estão a cerimônia de casamento hippie entre
Caetano e Dedé, o lançamento do disco símbolo do movimento,
Tropicália* ou Panis at circensis, a parada de Gil e Caetano
em Lisboa, a caminho do exílio em Londres e uma linda foto de Gal,
de cabelos curtos, deitada no colo de Caetano. Outros momentos
marcantes exibidos são uma interpretação impecável deste para Asa
branca e a participação de Gil na terceira edição do festival da ilha de Wight (Inglaterra, 1970), em que
o locutor, ao apresentar os tropicalistas para o grande público,
afirma que “a política não permite que eles façam sua música
no Brasil”, mas que lá, sim, eles podiam fazê-lo (Depois das
três primeiras edições, o festival voltou apenas em 2002 e é
realizado até hoje).
O tropicalismo
durou quase que apenas um verão, entre 1967 e 1968. Começou com a
alegria, alegria dos festivais e findou com os tristes ais da
repressão, entre os quais o ai-5 e as posteriores prisão e exílio
de Gil e Caetano na Europa, longe dos trópicos. Os preceitos
tropicalistas de tolerância às diversas formas de expressão,
misturando novo e antigo, rural e urbano, erudito e popular, nacional
e estrangeiro, porém, deixaram raízes e frutificaram. Viva a bossa
e viva a palhoça, viva Ipanema e viva Iracema, por que não? O mundo
é complexo e não se resume a sim ou não, certo ou errado. Como
diria Adoniran, além disso, mulher, tem outra coisa. Entre a banda
de pífanos de Caruaru e uma banda de rock, tem a banda de Chico,
cantando coisas de amor. Nem tudo é bem ou mal, Ben ou Mautner.
Ao longo do tempo, a
música passou por várias transformações, desde o modo de
interpretação ao surgimento de novos ritmos. A temática
predominante, porém, ainda que expressa de diferentes formas, pouco
mudou e muitas relações amorosas foram formadas e desfeitas no
compasso das canções. Amores de bolero, exacerbados, amores
bossa-nova, contidos, todos casam bem com o despertar de emoções
que nos provoca a união entre letra e música.
Dentre as composições
musicais que tratam do tema das separações e desencontros amorosos,
é mais frequente a descrição de um amor que resta unilateral, em
que o amante lamenta a ausência da pessoa amada e sonha com um
reencontro, indesejado pela outra parte. Ou ainda, de amores que
nunca se concretizaram, impossíveis, platônicos. Uma terceira
variante vislumbra a separação do ponto de vista da parte que,
ainda que a custo, já a assimilou, ou como algo já aceito por ambas
as partes, com o grau de desarmonia resultante a definir a trilha
sonora dos “ex my loves”,
em alto e bom som ou não, como veremos a seguir, numa pequena
amostra.
Pode-se considerar como
limites desse último e específico espectro musical, de um lado,
Vingança*,
de Lupicínio Rodrigues (“Mas enquanto houver força em meu
peito eu não quero mais nada / Só vingança, vingança, vingança
aos santos clamar”), do outro, Drão,
de Gilberto Gil (“Não há o que perdoar, por isso mesmo é que
há de haver mais compaixão”). Creio que não se pode ser mais
e menos tolerante do que, respectivamente, os personagens de uma e
outra música, a segunda inspirada em separação real de Gil, de sua
terceira esposa Sandra, a quem chamava Drão. Segundo ele, a canção
foi das mais difíceis de compor, justamente por tratar, ao mesmo
tempo, de amor e desamor, bem como por seu envolvimento pessoal no
caso.
O mundo é um moinho (“De cada amor tu
herdarás só o cinismo / Quando notares estás a beira do abismo /
Abismo que cavaste com teus pés”) seria páreo para Vingança
(pelo que sei, é incerta a
versão de que Cartola a teria composto para uma filha ou
enteada, o que a excluiria do escopo desta análise), mas, enquanto
uma pragueja ferozmente contra o ser (des)amado, a outra “apenas”
lhe prevê um futuro sombrio. Seguindo a linha gradativa de conflito,
em ordem decrescente de intensidade, perto de Vingança
estaria Fracassos,
de Fagner (“Não chore se eu disser que já vou / Você quem
quis assim, vai sofrer / … / Você tem que chorar se eu sofrer /
Você tem que pagar se eu morrer”).
Um pouco mais sutil,
mas com doses de rancor e inteligentes pitadas de ironia e sarcasmo,
Olhos nos olhos**,
de Chico Buarque, é primorosae tem também seu lugar
de destaque na parte de cima da lista. A
alusão à obediência, na letra, é formidável (“Quando
você me deixou, meu bem / Me disse pra ser feliz e passar bem / Quis
morrer de ciúme, quase enlouqueci / Mas depois, como era de costume,
obedeci”). São de Chico, também, outros
clássicos do tema, de versos menos ou mais pacíficos, como Trocando em miúdos,
com Francis Hime (“Mas devo dizer que não vou lhe dar /
O enorme prazer de me ver chorar / Nem vou lhe cobrar pelo seu
estrago / Meu peito tão dilacerado”) e Quem te viu, quem te vê(“Hoje
a gente nem se fala, mas a festa continua”).
No extremo mais
amigável do espectro da separação, Drão
vem acompanhada de Sonhos,
de Peninha (“Não tem desespero não / Você me ensinou
milhões de coisas / Tenho um sonho em minhas mãos / Amanhã será
um novo dia / Certamente eu vou ser mais feliz”).
De mesmo estilo harmonizador, também pode ser posta ao lado das duas
a recente Depois,
de Marisa Monte, com Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes (“Depois
de sonhar tantos anos / De fazer tantos planos / De um futuro pra nós
/ Depois de tantos desenganos / Nós nos abandonamos / Como tantos
casais / Quero que você seja feliz / Hei de ser feliz também”).
Numa posição
intermediária, em que, se não há motivo para vingança, também
não o há para sonhos, Ivan Lins e Vítor Martins contribuem para o
ranking com Saindo de mim (“Você foi saindo de mim /
Devagar e pra sempre / De uma forma sincera / Definitivamente”),
Bilhete
(“E por fim nosso caso acabou, está morto / Jogue a cópia das
chaves / Por debaixo da porta / Que é pra não ter motivos / De
pensar numa volta / Fique junto dos seus / Boa sorte, adeus”) e
Começar de novo (“Começar de novo / E contar
comigo / Vai valer a pena / Já ter te esquecido”), mais um
clássico do tema. Por fim, para tornar a análise menos excludente
quanto a estilo musical, nessa mesma posição da escala, poderia
entrar Baba,
de Kelly Key, que, apesar do cruel “Isso é pra você aprender a
nunca mais me esnobar”, tem o atenuante “e pra não dizer
que eu sou ruim...”.
* Vingança (Lupicínio Rodrigues) Eu gostei tanto Tanto quando me contaram Que lhe encontraram Bebendo e chorando Na mesa de um bar
E que quando os amigos do peito Por mim perguntaram Um soluço cortou sua voz Não lhe deixou falar
Eu gostei tanto Tanto quando me contaram Que tive mesmo de fazer esforço Prá ninguém notar
O remorso talvez seja a causa Do seu desespero Ela deve estar bem consciente Do que praticou
Me fazer passar esta vergonha Com um companheiro E a vergonha É a herança maior que meu pai me deixou
Mas, enquanto houver força em meu peito Eu nao quero mais nada E pra todos os santos vingança (Só vingança, vingança, vingança) Vingança clamar (Aos santos clamar)
Ela há de rolar qual as pedras Que rolam na estrada Sem ter nunca um cantinho de seu Pra poder descansar
Dentre os filmes nacionais que retratam as dificuldades enfrentadas
pelas camadas mais carentes da população, há aqueles que o fazem
de maneira explícita, contundente, retratando miséria e violência
de forma crua e os que mostram a realidade de maneira mais suave e
poética. Na filmografia nacional mais recente, Cidade de Deus
(Fernando Meirelles, 2002) e Central do Brasil (Walter
Salles, 1998), respectivamente, seriam os melhores
representantes de um e outro estilo, ambos válidos nos aspectos de
conscientização ou indução a reflexão, mas cada um com suas
armas e cada arma atingindo diferentes alvos.
Vencedor de vários prêmios no último Cine-PE – melhor
filme nos júris oficial e popular, roteiro (Patrícia Andrade), ator
(João Miguel) e ator coadjuvante (Vinícius Nascimento) - À beira do caminho* (Breno Silveira, 2012), é
o mais novo exemplar dos filmes do segundo grupo. O ator João Miguel
é conhecido pela atuação em Cinemas, Aspirinas e Urubus
(Marcelo Gomes, 2005) e Vinícius Nascimento já se destacara, com
sua espontaneidade, em Ó paí, ó (Monique
Gardenberg, 2007), como um dos irmãos Cosme e Damião, filhos
da evangélica dona Joana, que são assassinados, numa das poucas
cenas dramáticas do filme.
Breno Silveira, que iniciou carreira como diretor de fotografia, tem
colocado a música em destaque, em seus trabalhos como diretor, seja
como pano de fundo para a trama, como é o caso de À beira do
caminho, seja como elemento-chave, em dois filmes de conteúdo
biográfico: 2 filhos de Francisco (2005), sucesso de
bilheteria e Gonzaga – de pai pra filho, com estreia programada para 2012,
quando se comemora o centenário de nascimento de Luiz Gonzaga.
À beira do caminho é recheado de canções - bem escolhidas
- do repertório de Roberto Carlos, desde A distância, no início, a O portão, no final, parcerias dele com
Erasmo Carlos. Para driblar dificuldades de liberação de mais
composições da dupla, o diretor utilizou o recurso de incluir
aquelas do repertório de Roberto que não são de sua autoria, umas
na voz dele, como Outra vez
(Isolda), umas na voz de outros intérpretes, como Vanessa da
Mata em Nossa canção(Luiz
Ayrão) eAntônio
Marcos emComo vai você
(Antônio Marcos / Mário Marcos).
O enredo de À beira do caminho guarda semelhanças com
Central do Brasil também no
estilo 'filme de estrada' ou 'road movie', que tem como
principal característica o desenrolar da trama durante uma viagem,
um percurso, sem locação fixa (O estilo voltou a ser destaque com o
lançamento recente de outro filme de Walter Salles, On the road,
baseado no livro homônimo, de Jack Kerouac, que marcou época nos
anos 60). A semelhança estende-se à própria trama, em que um
adulto e uma criança têm seus destinos cruzados e estabelecem
fortes laços afetivos, enquanto caem na estrada. Similaridades
também são percebidas em relação a O caminho das nuvens
(Vicente Amorim, 2003), outro road movie em que a música de
Roberto Carlos está presente.
O argumento, familiar como as composições de Roberto, emociona e
convence, com o auxílio de dois recursos infalíveis: criança e
música. O menino Vinícius é mais um exemplo de impressionante
talento precoce, que traduz os sentimentos do personagem com
perfeição tal, que nos atinge em cheio. Emoções à flor da pele,
composições de destinos, como cabe a um filme de estrada, de
passagens resumidas em frases de para-choque de um caminhão sem
destino certo, a conduzir o destino incerto de seus passageiros.
* Sinopse:
A emocionante história de João, um homem que encontra na estrada
uma saída para esquecer os dramas de seu passado. Por acaso ou
sorte, seu caminho se cruza com o de um menino em busca do pai que
nunca conheceu. A partir desse encontro, nasce uma bela relação que
movimentará o delicado equilíbrio construído por João para
enfrentar seus fantasmas. De Breno Silveira, o diretor de 2 Filhos de
Francisco, À Beira do Caminho evoca e se inspira em letras de
sucessos de Roberto Carlos.
Além de enxergar que cinema é a maior diversão, podemos encarar a
poltrona das salas de exibição como divã de psicanalista. Nessa
linha, os filmes de cunho psicológico - aqueles que lidam com a
psique e fazem da tela de cinema um grande espelho a refletir nossa
imagem - são bem interessantes, muito mais que simples diversão. E
num paralelo entre sessões de cinema ou de análise, Woody Allen,
pelo conjunto da obra, poderia ser mais um guardião da nossa
insanidade mental, junto com Freud, Jung ou Lacan.
Com quase 50 filmes no currículo e mantendo a média de um por ano a
essa altura da carreira, o cineasta volta às telas com o filme da
vez, Para Roma com amor, atualmente em cartaz (o
título em português termina por brincar com as características de
palíndromo das palavras roma e amor, o que não ocorre no título
original, em inglês, To Rome with love). A obra segue a
tendência dos últimos trabalhos de Allen, que alguns críticos de
cinema têm classificado como fase guia turístico do diretor, pelo
fato de ele ter descartado a cidade de Nova York como locação fixa
de seus trabalhos e partido para um city-tour mundial, no que
parece estar sendo um golpe de mestre do mestre, em termos de
bilheteria.
Nessa fase, iniciada com Match point, em Londres (2005), cada trabalho tem
locação numa cidade de um país diferente, com várias cenas
externas mostrando as belezas dos lugares e o consequente apoio
financeiro proporcionado pelo patrocínio dos respectivos governos,
interessados numa divulgação tão rica e abrangente. Outros
destaques foram Vicky Cristina Barcelona (2008) e Meia-noite em Paris (2011). Ao mesmo tempo, é
perceptível que nos tais filmes turísticos, graças ao apelo
estético, atingiu-se um público bem maior, que não era
necessariamente fã do diretor em sua fase pré-migratória. Um
público que prefere ver Paris a ver a si próprio, ou ainda, prefere
ver a si próprio em Paris.
Para Roma com amor
é constituído de quatro histórias que se intercalam ao longo da
trama e têm em comum apenas a locação, as ruas de Roma. O filme
começa com a figura de um guarda de trânsito, num movimentado
cruzamento da capital italiana. Como um espectador privilegiado do
dia a dia da cidade, é como se, em cada esquina do cruzamento onde
se encontra, ele observasse cada uma das tramas paralelas. Duas dessas
histórias têm enredos que dariam bons filmes completos ou poderiam
render mais.
A primeira é
protagonizada pelo próprio Woody Allen, como um diretor de ópera
aposentado, pai de uma moça que vai se casar com um italiano, tem
boca e vai a Roma, conhecer a família do futuro genro, de inclinação
comunista, cujo pai é dono de funerária e excelente cantor de
chuveiro. Essa excêntrica combinação de aptidões e tendências,
aliada à figura sempre representativa (e bem representada) do ator e
diretor como caricatura de todos nós, rende momentos bem divertidos.
Outra história mostra
a vida de um pacato e metódico cidadão italiano, que, sem mais
explicações - o que torna o fato mais engraçado -, passa a ser
visto como celebridade, com inúmeros repórteres à espreita na
porta de sua casa, seguindo-o por qualquer lugar e sempre à espera
de algum pronunciamento de sua parte, seja sobre o que for. Respostas
dele a perguntas banais, como “o que você comeu no café da
manhã” ou a cobertura ao vivo de seu barbear são tratadas
como furos de reportagem e exaltadas pelos paparazzi como um
gol da squadra azurra em final de copa do mundo. A princípio
incomodado, com o tempo ele começa a gostar da exposição, momento
em que, de maneira igualmente súbita, ele perde o foco da atenção
para outro cidadão.
Para um diretor cujo
ponto forte sempre foi o diálogo, não tem tanta importância
cenário, imagem, paisagem e uma viagem ao exterior não se compara
ou não acrescenta muito a outra rumo aos meandros da nossa mente,
uma viagem ao interior, retrato de nossa alma, nosso retrato. Bill
Gates diria que a troca de retrato por paisagem é só uma questão
de orientação, mas, como citei em outra ocasião, os filmes de
Woody Allen trazem a palavra como texto e o resto como pretexto. E a
troca da imaginação pela imagem não passa de um bom pretexto.
Emplacar música em trilha sonora de novelas é bom para os dois
lados. De um lado, cantor, compositor e gravadora. De outro, autor,
atores e emissora. No meio, um público satisfeito. A gravadora Som
Livre percebeu essa harmonia e, desde o início da década de 70,
passou a ser responsável pela criação e comercialização de
trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. Três décadas
depois, em 2001, a gravadora relançou vinte trilhas nacionais de
novelas, na coleção Vale a Pena Ouvir de Novo, entre elas
Gabriela. Nos últimos dias, a Globo iniciou a exibição
da nova versão dessa novela, baseada em obra do escritor Jorge
Amado, cujo centenário de nascimento comemora-se este ano.
Comparações entre esta refilmagem e a versão original de 1975 surgiram naturalmente, a
começar por quem é a “melhor” Gabriela. Um aspecto, porém, não
suscitou comparações, por ter-se mantido equivalente nas duas
versões: a trilha sonora, uma das melhores da teledramaturgia
brasileira, mantida em sua maior parte e em suas gravações
originais. Até melhorou: nove canções foram mantidas, saíram
quatro e entraram outras sete, entre elas Lamento sertanejo, uma das obras-primas de Gilberto
Gil e Dominguinhos, que tem bastante a ver com o perfil do folhetim,
assim como Tema de amor de Gabriela (“Chega mais
perto, moço bonito / Chega mais perto, meu raio de sol / A minha
casa é um escuro deserto / Mas com você ela é cheia de sol”),
composta por Tom Jobim para a adaptação da obra para o cinema.
O período em que foi exibida a primeira versão de Gabriela*
coincide com o surgimento de novos talentos na música popular
brasileira, representantes de uma geração que, se teve a difícil
missão de suceder aquela da era dos festivais, com a
responsabilidade de manter o nível, pegou a MPB já amaciada,
sobrevivente à revolução da Bossa nova, ao rolo compressor
da Jovem guarda e à sacudidela tropicalista e, por
conseguinte, mais aberta a novidades. Dessa turma, estão presentes
no disco Fafá de Belém (Filho da Bahia), Djavan (Alegre menina**) e João
Bosco (Doces olheiras).
O disco começa com a singular interpretação de Maria Bethânia
para Coração ateu, de Sueli Costa (“O meu coração
ateu quase acreditou / Na sua mão que não passou de um leve adeus /
Breve pássaro pousado em minha mão / Bateu asas e voou”).
Como foram, quase todas, compostas especialmente para a novela,
registradas exclusivamente em sua trilha sonora, as canções de
Gabriela reproduzem perfeitamente a atmosfera da obra de Jorge
Amado, o que enriquece ainda mais o trabalho. Muitas delas têm a mão
de um Caymmi, melhor tradução musical do universo do escritor
baiano. De Dorival, tem Adeus
(por Walker), Horas (por Quarteto em Cy) e o tema de abertura
da novela, Modinha para Gabriela (por Gal Costa). De Dori,
Porto
(por MPB-4) e Alegre menina (por Djavan), esta em inusitada
parceria com Jorge Amado.
Moraes Moreira – à época recém-saído dos Novos baianos,
iniciando carreira solo -, Elomar, Alceu Valença e Geraldo Azevedo
representavam o bloco dos nordestinos que despontariam com bastante
força naquela década, no mercado musical brasileiro. A instrumental
Guitarra baiana, de Moraes, pode não soar familiar
no nome, mas é uma das músicas mais conhecidas da trilha, que
acompanha várias cenas e é a cara da novela. O mesmo ocorre com a
também (quase) instrumental São Jorge dos Ilhéus, de Alceu. O compositor
pernambucano também está presente numa parceria com o conterrâneo
Geraldo Azevedo, interpretada por este, um clássico da dupla,
Caravana
(“Corra, não pare, não pense demais, repare essas velas no
cais, que a vida é cigana, é caravana, é pedra de gelo ao sol,
degelou teus olhos tão sós, num mar de água clara”).
Para quem imagina que letra de música com conotação, digamos,
sexual ainda não existia quando nós viemos para esse mundo e ainda
não atinávamos em nada, Walter Queiroz responde com Quero ver
subir, quero ver descer (adaptação:
D.P. / R. Santana), que contém versos bem semelhantes a
algumas canções dos dias atuais, como: “A mulata é faceira,
bota a mão nas cadeiras, bota a mão nos olhinhos, bota a mão no
queixinho, bota a mão no umbiguinho, bota a mão no lelelê, cadê
você?”, ou ainda: “Bê-a-bá, bê-e-bé, bê-i-bi, quero
ver as cadeiras bulir”. O cantor também está presente na
trilha como compositor, com Filho da Bahia, interpretada por
Fafá de Belém (É dele, ainda, Feijãozinho com torresmo, sucesso na voz de Maria
Creuza).
* A primeira adaptação televisual de Gabriela,
cravo e canela, obra de Jorge Amado com maior
número de traduções, na verdade, foi ao ar no início da década
de 60, poucos anos depois da publicação do livro, na extinta TV
Tupi, antes,
portanto, da versão da Rede Globo, que tinha Sônia Braga no papel
principal, de 1975.
No litoral ou no sertão, a realidade pode ser dura ou não. Seja
onde e como for, a música é uma das melhores formas de mitigar
tristezas e catalisar alegrias. Acolhe nas horas tristes, contagia
nos momentos alegres. E em se tratando de música do interior (do ser
e do estar), poucos músicos conseguiram ser tão igualmente
proficientes quanto o mestre Luiz Gonzaga e seus parceiros. Neste ano
em que se comemora o centenário de seu nascimento, ele tem sido,
merecidamente, lembrado e reverenciado. Desafortunadamente, o ano
coincide com a maior seca das últimas décadas no nordeste do país
e, ainda que nesse aspecto de forma triste, a desdita da seca
faz-nos, uma vez mais, lembrar das canções do rei do baião e de
outros compositores nordestinos.
Patativa do Assaré narrou o drama do sertanejo, o exílio forçado e
a saudade da terra natal de forma comovente em canções como Vaca Estrela e boi Fubá: “Hoje nas terra
do sul, longe do torrão natá / Quando eu vejo em minha frente uma
boiada passar / As água corre dos óio, começo logo a chorar /
Lembro minha vaca Estrela e o meu lindo boi Fubá / Com saudade do
Nordeste, dá vontade de aboiar” e Triste partida*: “Se
arguma notícia das banda do norte / Tem ele por sorte o gosto de
ouvir / Lhe bate no peito saudade de móio / E as água nos óio
começa a cair”.
A fé está presente em algumas canções, de temas igualmente
associados aos infortúnios que assolam o sertão: Meu Cariri (Rosil Cavalcanti / Dilu Melo) - “No
meu Cariri / Quando a chuva não vem / Não fica lá ninguém /
Somente Deus ajuda”, Último pau-de-arara (Venâncio / Corumba / José
Guimarães) - “Enquanto a minha vaquinha / Tiver o couro e o
osso / E puder com o chocalho / Pendurado no pescoço / Eu vou
ficando por aqui / Que Deus do céu me ajude / Quem sai da terra
natal / Em outros cantos não para / Só deixo o meu Cariri / No
último pau-de-arara” - e Súplica cearense (Gordurinha / Nelinho) - “Senhor,
eu pedi para o sol se esconder um tiquinho / Pedi pra chover, mas
chover de mansinho / Pra ver se nascia uma planta no chão / Oh!
Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe / Eu acho que a
culpa foi / Desse pobre que nem sabe fazer oração”.
Dentre as letras de canções que narram o martírio do sertanejo
diante da seca, há aquelas que, mesmo retratando de forma fiel o
drama, encerram mensagens de esperança e otimismo, muitas delas
compostas por Gonzaga e seus parceiros. É o caso dos versos finais
da pungente Asa branca (com Humberto Teixeira) - “Quando
o verde dos teus olhos / Se espalhar na plantação / Eu te asseguro
não chore não, viu / Que eu voltarei, viu, meu coração” -,
os quais sugerem a esperança do retorno (à terra natal e aos braços
da amada), concretizada em A volta da asa branca**
(com Zé Dantas).
Os brasileiros do litoral, nordestinos em particular, ao mesmo tempo
em que possuem uma visão distanciada e vivem realidade distinta
daquela encontrada no sertão, tem laços afetivos que os unem àquela
região, reforçados por meio da música (e da literatura), a qual
externa tanto o fascínio pela beleza do lugar ou o jeito de sua
gente, quanto a identificação com suas dificuldades. Seguindo uma
trilha sonora, as coisas do sertão correm pro mar, assim como o
riacho do navio.
O poeta português Fernando Pessoa, um retirante de alma, em um de
seus poemas, fala da necessidade de estar fora de si: “Sou um
evadido. Logo que nasci, fecharam-me em mim. Ah, mas eu fugi”.
Esse mesmo espírito, essa fuga do interior (do ser) – afora as
ligações afetivas - é o que conduz o peixe urbano nordestino pela
trilha contrária, rumo ao interior (do estar), saindo do mar pro
riacho do navio.
É assim que nós, meros habitantes das cidades grandes, retirantes
de alma, ficamos aparvalhados e embevecidos com comparações,
analogias e metáforas dignas de mestre, que ninguém das terras
civilizadas faria com tanta perfeição, simplicidade e precisão,
como: “Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó, a
malota era um saco e o cadeado era um nó”, “Automóvel lá
nem se sabe se é homem ou se é mulher”, “Tua saia,
Bastiana, termina muito cedo, tua blusa, Bastiana, começa muito
tarde”. É isso, falar mais o quê?
* Triste partida (Patativa do Assaré)
** A volta da asa branca (Luiz Gonzaga / Zé Dantas) Já faz três noites que pro norte relampeia E a asa branca ouvindo o ronco do trovão Já bateu asas e voltou pro meu sertão Ai, ai, eu vou me embora, vou cuidar da prantação A seca fez eu desertar da minha terra Mas felizmente Deus agora se alembrou De mandar chuva pr'esse sertão sofredor Sertão das muié séria, dos home trabaiador Rios correndo as cachoeira tão zoando Terra moiada, mato verde, que riqueza E a asa branca tarde canta, que beleza Ai, ai, o povo alegre, mais alegre a natureza Sentindo a chuva, me arrecordo de Rosinha A linda flor do meu sertão pernambucano E se a safra não atrapaiá meus prano Que é que há, oh seu vigário, vou casar no fim do ano
Nos anos 70, vários talentos que despontaram na década anterior e
mudaram os rumos de nossa música, como Chico Buarque, Caetano
Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Roberto Carlos, Elis Regina,
Rita Lee, Edu Lobo, Maria Bethânia, Gal Costa e outros, atingiam o
auge de suas carreiras, numa profusão de trabalhos impecáveis. Na
segunda metade dessa década, porém, uma onda vinda do exterior
passou a dividir os acordes com essa música popular brasileira que
se encontrava num de seus períodos mais férteis e de maior
qualidade: a disco music,
inspirada na black music, mas sem uma identificação
exclusiva com o movimento negro.
Donna Summer, Gloria Gaynor e os grupos Abba e Bee Gees
foram alguns de seus maiores expoentes. As músicas, recheadas de
mensagens otimistas, falavam de superação, de dança e movimento.
Nas letras em inglês, era bem comum o uso dos verbos dance
(dançar) e shake (agitar,
balançar): You can dance, you can jive, having the time of
your life (Dancing queen - Abba), There is movement
all around (…) On the waves of the air, there is dancin' out there
(Night fever – Bee Gees), Feel the
city breakin' and everybody shakin' and you're stayin' alive
(Staying alive – Bee Gees), Let's dance,
this last dance tonight (Last dance – Donna Summer). E mais: You
should be dancing, Shake your booty, Dance and shake your tambourine.
Mas as letras eram o que menos importava...
Interessante, também, certas considerações de gênero nas letras
de algumas canções, em se tratando de um estilo marcado justamente
pela quebra de paradigmas que reforçam as diferenças sexuais, seja
no comportamento, no vestuário ou mesmo na dança, sem a figura do
homem como condutor. Considerações como I'm so glad that I'm a woman e I've got to be a macho man
conviviam em harmonia e davam a deixa: I am what I am and what I am needs no excuses. Estávamos conversados.
Assim como a Jovem Guarda foi inspirada num estilo que veio de
fora do país e representou um contraponto a composições mais
elaboradas da MPB, o mesmo ocorreu na década seguinte, com a chamada
disco music, embora a variante local deste estilo,
representada por nomes como As Frenéticas, Lady Zu e Miss
Lene, tenha sido bem menos forte do que aquela do movimento dos anos
60. Por aqui, o estilo musical representou, também, o fim da era das
músicas políticas ou de protesto e abriu as portas para os menos
políticos, mas não menos extravagantes anos 80, cujas calças bag,
camisas coloridas e ombreiras devem muito às meias coloridas de
lurex, saltos plataforma e calças boca-de-sino dos 70.
As novas tribos de então, em meio a sinais de fumaça de gelo seco,
queriam apenas cair na gandaia. Em vez de boate ou balada,
discotecas, como a Studio 54, de Nova York, EUA e, aqui no
Brasil, a Dancin' days, do Rio de Janeiro. A
casa noturna carioca, de propriedade do produtor musical
Nelson Motta e citada por Caetano Veloso em Tigresa – uma
ode à atriz Sônia Braga (… Que gostava de política em mil
novecentos e sessenta e seis e hoje dança no frenetic Dancin' days)
– equivalia ao que representou o Circo Voador, também no
Rio, para os anos 80 e inspirou uma canção homônima (do próprio
Nelson Motta), síntese do lema da casa, “dance bem, dance mal,
dance sem parar”.
A discoteca inspirou a música e ambas inspiraram uma novela da Rede
Globo que marcou época, Dancin' days (1978), de Gilberto Braga, com Sônia
Braga como protagonista, cuja trilha internacional era repleta de
sucessos das pistas de dança e cujo tema de abertura era a citada
canção de Nelson Motta, de mesmo nome, interpretada por um grupo
musical criado por ele, As Frenéticas. O grupo era formado
apenas por mulheres, que trabalhavam como garçonetes na referida
casa, entre elas Regina Chaves, que foi casada com Chico Anysio,
Sandra Pêra, irmã da atriz Marília Pêra e cunhada de Nelson Motta
e Duh Moraes, para os mais novos, a tia Nastácia da versão mais
recente do Sítio do Picapau Amarelo.
O ritmo das discotecas inspirava danças e coreografias que, cada vez
mais, passavam a fazer parte do pacote musical. No cinema, os
musicais Até que enfim é sexta-feira (1978), com Donna
Summer no elenco e na trilha sonora (Oscar de melhor canção
com Last dance) e, principalmente, Os embalos de sábado à noite (1977), com
várias canções do grupo Bee Gees e que revelou o talento de
John Travolta como dançarino, ajudaram a consolidar o ritmo dos fins
de semana ao redor do mundo. Estava escrito para a posteridade, em
letras de néon: há mais
coisas entre os requebros de Elvis e os de Madonna do que supõe a van de
Ed Motta.
Li,
certa vez, texto que exaltava o laralaiá
e
suas variações - presentes em várias de nossas canções populares
- e
mencionava suas ligações mais fortes com o samba.
Nas palavras do autor, Daniel Brazil, “Não
são aqueles laralaiás que só substituem trechos da letra, mas que
tem melodia própria, personalidade e autonomia. Momentos em que o
compositor pára, pensa, e diz: - Aqui vou colocar um laralaiá de
responsa, pra todo mundo cantar!”.
O artigo falava de laralaiás
clássicos, como os de Chico Buarque em Quem te viu, quem te vê:
Hoje
o samba saiu, laralaiáe
Minha história: Minha mãe se entregou a esse homem perdidamente,
laialaiá (este,
segundo o texto, só existe na versão em português da canção
original italiana). O
assunto é bem interessante e dá muitos panos pras mangas musicais,
então, vamos lá laralaiá...
Além
do artifício óbvio de cobrir trechos de letras de canções
olvidados por nossos ouvidos, o laralaiáe outros termos afins, em geral, suavizam as canções e
tornam a interpretação musical menos automática, mecânica e mais
emocional, natural, humana, sendo esta sua principal função. E é
justamente essa proximidade com o humano e suas emoções que nos
toca. A arte imitando a vida. Ao
mesmo tempo, o laralaísmo
é o que mais diferencia o canto da linguagem falada. Afinal, ninguém
costuma dizer coisas do tipo: “passa o açúcar, lalalá”
(nem em jantar dançante).
Nesse
aspecto de expressar sentimentos, o recurso do laralaiá
tem função semelhante às interjeições, os ais
e uis, igualmente
comuns em canções (As rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que
roubam de ti, ai), em que
cumprem a função de cobrir ou completar trechos melódicos com
propriedade e poesia. Como canta Geraldo Azevedo, “O charme das canções são suas frases banais, são seus ais, seus
uis e ão”*. Tais interjeições
estão até em nome de música, como Ai ai ai, de Vanessa da Mata e
ôÔÔôôÔôÔ,
de Thaís Gulin.
Quando entoado no
começo, o laralaiá dá o tom da canção, não apenas no
sentido musical, mas quanto a seu estilo. É o que acontece, por
exemplo, em Caminhando (Pra não dizer quenão falei das flores),
em que o tom de protesto que a canção carrega nos versos
seguintes é suavizado pelo laralaiá inicial de Geraldo
Vandré. Chico Buarque, em Se eu soubesse, utiliza-o como uma forma mais criativa de
reticências, que incorpora rima e cadência: Mas acontece
que eu saí por aí e aí, larari, lariri,
enquanto o de Vinícius de Moraes, em Pela luz dos olhos teus, é
substantivado, com uso dos mesmos requintes: Meu amor juro
por Deus que a luz dos olhos meus já não pode esperar / Quero a luz
dos olhos meus na luz dos olhos teus sem mais lararará.
Em
Prometemos não chorar, clássico do
brega, o lá lalalá lalá
permeia toda a música, em meio a um chororô não prometido, mas
cumprido e a comentários esnobes da fria figura masculina
incorporada pelo cantor Barros de Alencar. Dorival Caymmi e Luiz
Gonzaga, gênios da simplicidade, também utilizaram com propriedade
esses elementos em suas canções, vide Saudade da Bahia: Ai, ai,
que saudade eu tenho da Bahia,
do primeiro ou Estrada de Canindé: Ai,
ai, que bom, que bom, que bom que é..., A triste partida
(Faz
pena o nortista, tão forte, tão bravo, viver como escravo no norte
e no sul, ai, ai, ai, ai)e o laiá laiá laiá laiá
do refrão de Qui nem jiló, do segundo.
O yeah está
mais ligado à linguagem pop, mais universal, como em She loves you(yeah, yeah, yeah), dos Beatles. Por
aqui, foi bem empregado, por exemplo, em Fácil,
do grupo Jota Quest: Um dia feliz, às vezes, é muito
raro, yeeeeeeah. Algumas
variações do laralaiá
são, também, universais e caem bem noutras línguas. O lailalai
do refrão de The boxer
(Simon & Garfunkel), por exemplo, toca mais fundo do que qualquer
verso que viesse a estar em seu lugar. O mesmo aplica-se ao lalalá
(ou nananá) final de
Hey Jude, que encerra o sentido
metafórico da letra, de deixar uma canção penetrar no coração e,
assim, torná-la melhor
Roberto
Carlos, com o fim da Jovem Guarda,
rompeu a fronteira entre o iê iê iê
(ou yeah yeah yeah) e
o laralaiá, logo no
início dos anos 70, na introdução de Todos estão surdos. Anos depois,
em Guerra dos meninos, usou deste
artifício como uma canção dentro da canção: Quando em
minha porta alguém tocou / Sem que ela se abrisse ele entrou / E era
algo tão divino, luz em forma de menino / Que uma canção me
ensinou / lá lá lá lá lá lá. Nosso
saudoso e amado mestre Chico Anysio exalta, em Rio antigo (Como nos velhos tempos):
O Lamartine me ensinando um lalalalalá gostoso
e termina essa ode maravilhosa à cidade idem com outro laraiá,
igualmente inspirado, que fecha a música com clave de ouro.
Dentre as opções, os
ais são especiais e bem luso-brasileiros. O dicionário inFormal, que se apresenta como um dicionário
on-line de português onde as palavras são definidas pelos
usuários, faz curiosa referência à diferença entre ai, ai
- geralmente usado em situações de conforto ou prazer – e ai,
ai, ai ou ai, ai, ai, ai, ai, em geral usados para
alertar, indicar cuidado ou mesmo recriminar. De fato, em Ive Brussel, de Jorge (ainda) Ben, os ais repetidos,
adquirem uma conotação de prazer: Que naquele dia você foi
tudo, foi demais pra mim, ai, ai. Sozinho, o ai remete a
desejo, lamento: Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / Ai, que saudade d'ocê. Em linguagem atual: ai, se eu te pego
é diferente de ai, ai, se eu te pego, a primeira expressão,
um anseio, a segunda, um devaneio.
* O charme das canções (uis e ais) (Geraldo Azevedo / Capinan) O charme das canções São suas frases banais São seus ais, seus uis e ão Coisa de fazer sorrir A triste noiva do faquir Coisa de fazer sonhar A moça do novo andar Coisa de fazer parar O chofer do caminhão São seus ão meus ais e uis Coisa de fazer chorar A natureza morta O charme das canções São eu te amo Tua traição teus punhais E ai, Jesus, são seus uis Meus ão e ais São Jamais, jasmins ou nunca São nunca mais ou querer teus beijos Ou serão teus beijos, sempre E sempre mais São seus ais, seus uis e ão Coisas que entortam Um certo coração