O ano vai chegando ao final, época em que deixamos fluir nosso espírito fraternal, em meio a ceias de Natal, Roberto Carlos Especial, etcetera e tal. Em mais uma habitual retrospectiva anual, vejamos o que foi notícia de jornal, o que houve de especial, para o bem ou para o mal, nos cenários nacional e mundial.
Depois do chilique de Milosevic e malgrado o protesto de Belgrado, de bom grado, parte do povo de Kosovo reconheceu como um país novo essa província do tamanho de um ovo. Em Cuba, Fidel encerrou seu papel de direção da nação e, sem escarcéu, abriu mão do martelo e da foice e foi-se ao léu. A população ergueu as mãos ao céu e tirou o chapéu, em comemoração à ascensão do seu irmão, que teve boa aceitação, mesmo mantida a retaliação do tio Sam. Sem confusão, mas com embargo, sin embargo.
Na grande potência, a inadimplência provocou falência, os bancos pediram clemência e Obama, sua excelência, homem do ano da Time, pediu ao povo paciência e clamou com veemência: dai-me sapiência para encarar a presidência, livrai-me do subprime e da desavença, perdoai-me pelo ataque ao Iraque, a invasão ao Afeganistão, o mal-estar com Ahmadinejad e os entraves com Hugo Chaves. Em xeque, o BRIC deu um breque e até que o sino da carestia por aqui repique, a crise se complique e pipoque, sem alguém que a explique, do Chuí ao Oiapoque, sem saco e sem saque, pra que o crescimento não empaque, seguimos no pique do PAC.
Passando de falta pra flauta, de saque pra sax, de repercussão pra percussão e de violação pra viola, louvemos dois compositores de primeira. Um faria cem anos, Angenor de Oliveira, o famoso Cartola, figura pioneira da música brasileira, criador da escola Estação Primeira de Mangueira e de canções que a gente a toda hora cantarola e põe pra tocar na vitrola ou radiola, como queira. O outro deixou a vida real, compositor do mesmo time, Dorival Caymmi, um ser especial, sublime, sem igual, que tão bem exprime, e de forma tão natural, a gente simples do litoral.
A violência no trânsito continua monstruosa e homérica, com veículos guiados por gente colérica e histérica, em má condição etílica e com teor alcoólico compatível com a máquina, numa mistura fatídica que, enfim, obtém repercussão jurídica, com a Lei Seca. Pra diminuir essa taxa de mortalidade trágica, quase bélica, agora quem seca a caneca vai de táxi, como Angélica.
Nos caminhos da vida, somos estimulados, desde pequenos, a competir. Compete a nós aceitar ou não. De um jeito ou de outro, como em tudo na vida, paga-se um preço, maior no primeiro caso. Em todo caso, não importa o quanto importa. O importante é não competir. Discordo de uma antiga musiquinha de Natal que dizia: “Quero ver você não chorar, não olhar pra trás nem se arrepender do que faz”. Chorar, olhar pra trás e se arrepender do que faz não faz mal e, às vezes, é fundamental. Chorar por sentir, olhar pra trás para ajudar, arrepender-se para reparar e, como maior presente, aos outros fazer-se presente, a si mesmo, viver o presente, renovando, diariamente, o simples desejo de um feliz dia novo para todos.
“A vida é aquilo que acontece enquanto planejamos o futuro” (John Lennon).
Simples Desejo (Daniel Carlomagno e Jair Oliveira)
Que tal abrir a porta do dia
Entrar sem pedir licença
Sem parar pra pensar
Pensar em nada
Legal ficar sorrindo à toa
Sorrir pra qualquer pessoa
Andar sem rumo na rua
Pra viver e pra ver
Não é preciso muito não
Atenção, a lição
Está em cada gesto
Tá no mar, tá no ar
No brilho dos seus olhos
Eu não quero tudo de uma vez
Eu só tenho um simples desejo
Hoje eu só quero que o dia termine bem
Hoje eu só quero que o dia termine muito bem
25.12.08
11.12.08
No seu tempo
Costuma-se dizer que alguém está à frente de seu tempo quando se quer destacar seu vanguardismo. O polêmico cantor Cazuza parecia não estar nem à frente nem atrás, mas no seu tempo. Tempo de contradições e conflitos, ilusões e desilusões, em que vimos a volta da democracia (pós-Riocentro), mas com eleições indiretas (pré-Collor); um presidente que foi eleito, mas não assumiu; o congelamento de preços, seguido da maior das inflações; uma seleção de futebol que encantou o mundo, mas não ganhou a copa; o surgimento da AIDS, pondo em risco os prazeres básicos da filosofia hippie, com exceção do rock’n roll.
Foi por meio desse prazer sem risco que ele traduziu tal estado de espírito, em frases como: meu cartão de crédito é uma navalha, minha metralhadora cheia de mágoas, mentiras sinceras me interessam, vejo um museu de grandes novidades, vivo num clipe sem nexo, meu prazer agora é risco de vida, meu partido é um coração partido.
2008 marca os 18 anos de morte e o cinqüentenário de nascimento de Cazuza. O cantor e compositor começou a carreira como vocalista do grupo Barão Vermelho, com quem lançou três discos, todos pela gravadora Som Livre, cujo diretor era seu pai, João Araújo. Desde o primeiro disco, já mostrou a que vinha e o reconhecimento de grandes nomes da MPB, que gravaram algumas de suas canções, mostrou que não vinha apenas por ser filho de um diretor de gravadora. Seu primeiro disco solo, "Exagerado", foi lançado ainda pela Som Livre e os quatro seguintes, pela gravadora Polygram.
Dos ilustres intérpretes de suas canções, fizeram parte Caetano Veloso (Todo amor que houver nesta vida), Ney Matogrosso (Pro dia nascer feliz), Gal Costa (Brasil), Simone, Luiz Melodia (Codinome beija-flor) e Marina Lima (Preciso dizer que te amo). Frejat, companheiro de banda, foi seu mais constante parceiro musical. Juntos, eles compuseram, entre outras, a música-tema de "Bete Balanço" - sucesso de bilheteria do cinema nacional nos anos 80. Cazuza compôs, também, em parceria com Rita Lee (Perto do fogo) e Gilberto Gil (Um trem pras estrelas, do filme homônimo de Cacá Diegues).
Naquela época, havia, ainda, pouca informação a respeito da AIDS e Cazuza, uma das vítimas desse desconhecimento, foi um dos primeiros brasileiros de fama reconhecida a tornar público que havia contraído a doença. Após a morte do cantor, Lucinha Araújo, sua mãe, criou a Sociedade Viva Cazuza, com o objetivo de prestar assistência a crianças carentes com AIDS.
Sobre o assunto, em matéria considerada desnecessária e apelativa, a revista Veja estampou, na capa da edição de 26 de abril de 1989, uma foto do cantor, já bastante debilitado pela doença, com o seguinte texto: “Uma vítima da Aids agoniza em praça pública”. O impacto negativo provocado pela foto e pela matéria gerou carta de desagravo à revista, assinada por vários artistas e resposta do próprio compositor. Quem viu a chocante imagem, que não vale ser aqui reproduzida, decerto não a esqueceu.
Na década de 90, Cássia Eller dedicou um disco inteiro, "Veneno antimonotonia", às composições de Cazuza. Na mesma época, Lucinha Araújo publicou o livro "Cazuza – só as mães são felizes". Anos depois, ele teve sua trajetória de vida desde o começo da carreira artística mostrada no filme "Cazuza – o tempo não pára", de Sandra Werneck e Walter Carvalho, baseado no livro. Um filme marcante para quem viveu a época.
Se na vida pessoal foi figura polêmica, de comportamento pouco convencional, como cantor, Cazuza deveria ser avaliado por seu trabalho. Há quem não ache, e a quem não ache, sua canção responde por ele: "Não escondam suas crianças, nem chamem o síndico, nem chamem a polícia, nem chamem o hospício. Eu não posso causar mal nenhum, a não ser a mim mesmo, a não ser a mim" (Mal nenhum – Cazuza / Lobão).
Ideologia (Cazuza/Frejat)
Meu partido é um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Ah! eu nem acredito
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
Frequenta agora as festas do "Grand Monde"
Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia! Eu quero uma pra viver
O meu prazer agora é risco de vida
Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou
Ah! saber quem eu sou
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
Agora assiste a tudo em cima do muro
Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia! Eu quero uma pra viver
Foi por meio desse prazer sem risco que ele traduziu tal estado de espírito, em frases como: meu cartão de crédito é uma navalha, minha metralhadora cheia de mágoas, mentiras sinceras me interessam, vejo um museu de grandes novidades, vivo num clipe sem nexo, meu prazer agora é risco de vida, meu partido é um coração partido.
2008 marca os 18 anos de morte e o cinqüentenário de nascimento de Cazuza. O cantor e compositor começou a carreira como vocalista do grupo Barão Vermelho, com quem lançou três discos, todos pela gravadora Som Livre, cujo diretor era seu pai, João Araújo. Desde o primeiro disco, já mostrou a que vinha e o reconhecimento de grandes nomes da MPB, que gravaram algumas de suas canções, mostrou que não vinha apenas por ser filho de um diretor de gravadora. Seu primeiro disco solo, "Exagerado", foi lançado ainda pela Som Livre e os quatro seguintes, pela gravadora Polygram.
Dos ilustres intérpretes de suas canções, fizeram parte Caetano Veloso (Todo amor que houver nesta vida), Ney Matogrosso (Pro dia nascer feliz), Gal Costa (Brasil), Simone, Luiz Melodia (Codinome beija-flor) e Marina Lima (Preciso dizer que te amo). Frejat, companheiro de banda, foi seu mais constante parceiro musical. Juntos, eles compuseram, entre outras, a música-tema de "Bete Balanço" - sucesso de bilheteria do cinema nacional nos anos 80. Cazuza compôs, também, em parceria com Rita Lee (Perto do fogo) e Gilberto Gil (Um trem pras estrelas, do filme homônimo de Cacá Diegues).
Naquela época, havia, ainda, pouca informação a respeito da AIDS e Cazuza, uma das vítimas desse desconhecimento, foi um dos primeiros brasileiros de fama reconhecida a tornar público que havia contraído a doença. Após a morte do cantor, Lucinha Araújo, sua mãe, criou a Sociedade Viva Cazuza, com o objetivo de prestar assistência a crianças carentes com AIDS.
Sobre o assunto, em matéria considerada desnecessária e apelativa, a revista Veja estampou, na capa da edição de 26 de abril de 1989, uma foto do cantor, já bastante debilitado pela doença, com o seguinte texto: “Uma vítima da Aids agoniza em praça pública”. O impacto negativo provocado pela foto e pela matéria gerou carta de desagravo à revista, assinada por vários artistas e resposta do próprio compositor. Quem viu a chocante imagem, que não vale ser aqui reproduzida, decerto não a esqueceu.
Na década de 90, Cássia Eller dedicou um disco inteiro, "Veneno antimonotonia", às composições de Cazuza. Na mesma época, Lucinha Araújo publicou o livro "Cazuza – só as mães são felizes". Anos depois, ele teve sua trajetória de vida desde o começo da carreira artística mostrada no filme "Cazuza – o tempo não pára", de Sandra Werneck e Walter Carvalho, baseado no livro. Um filme marcante para quem viveu a época.
Se na vida pessoal foi figura polêmica, de comportamento pouco convencional, como cantor, Cazuza deveria ser avaliado por seu trabalho. Há quem não ache, e a quem não ache, sua canção responde por ele: "Não escondam suas crianças, nem chamem o síndico, nem chamem a polícia, nem chamem o hospício. Eu não posso causar mal nenhum, a não ser a mim mesmo, a não ser a mim" (Mal nenhum – Cazuza / Lobão).
Ideologia (Cazuza/Frejat)
Meu partido é um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Ah! eu nem acredito
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
Frequenta agora as festas do "Grand Monde"
Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia! Eu quero uma pra viver
O meu prazer agora é risco de vida
Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou
Ah! saber quem eu sou
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
Agora assiste a tudo em cima do muro
Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia! Eu quero uma pra viver
21.11.08
Carta aberta
* Clique nas páginas do texto para ampliá-las
Cérebro eletrônico (Gilberto Gil)
O cérebro eletrônico faz tudo
Faz quase tudo
Quase tudo
Mas ele é mudo
O cérebro eletrônico comanda
Manda e desmanda
Ele é quem manda
Mas ele não anda
Só eu posso pensar se Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar quando estou triste
Só eu
Eu cá com meus botões de carne e osso
Eu falo e ouço
Eu penso e posso
Eu posso decidir se vivo ou morro
Porque
Porque sou vivo, vivo pra cachorro
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Em meu caminho inevitável para a morte
Porque sou vivo, sou muito vivo
E sei
Que a morte é nosso impulso primitivo
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Com seus botões de ferro e seus olhos de vidro
Cérebro eletrônico (Gilberto Gil)
O cérebro eletrônico faz tudo
Faz quase tudo
Quase tudo
Mas ele é mudo
O cérebro eletrônico comanda
Manda e desmanda
Ele é quem manda
Mas ele não anda
Só eu posso pensar se Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar quando estou triste
Só eu
Eu cá com meus botões de carne e osso
Eu falo e ouço
Eu penso e posso
Eu posso decidir se vivo ou morro
Porque
Porque sou vivo, vivo pra cachorro
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Em meu caminho inevitável para a morte
Porque sou vivo, sou muito vivo
E sei
Que a morte é nosso impulso primitivo
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Com seus botões de ferro e seus olhos de vidro
6.11.08
Reflexos e reflexões
A Lewis Hamilton e Barack Obama
Num passado recente do nosso país, há apenas 120 anos, homens eram subjugados por seus semelhantes, com a conivência das leis e da maior parte da sociedade. Em trecho de relatório de cônsul britânico no Recife a um conde inglês, em 1843, constante do livro "Children of God's Fire – A documentary history of black slavery in Brazil" de Robert Edgar Conrad, publicado nos EUA, percebe-se uma síntese da época da escravidão no Brasil, quando se mutilava corpo e alma de seres humanos e as leis serviam de pretexto para quem se beneficiava da situação vigente:
"In a word, my Lord, all the worst features of slavery exist in this province; the endeavour of the master is to suppress alike the intellect, the passions, and the senses of these poor creatures, and the laws aid them in transforming the African man into the American beast"*.
Mais de um século após a quebra das correntes, uma outra corrente vem consolidando, em nosso país, o entendimento de que a abolição da escravatura pela princesa Isabel apenas corrigiu uma injustiça secular e a data não ressalta a luta dos negros pela libertação. Em seu lugar, vem se firmando, a cada ano, a comemoração do dia da consciência negra, em 20 de novembro, instituído pela lei 10.639/2003 - a mesma que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. O dia, que coincide com a morte de Zumbi dos Palmares, símbolo de resistência à escravidão e luta pela liberdade, é feriado em várias cidades brasileiras, em sua grande maioria dos estados do Mato Grosso, Rio de Janeiro e São Paulo, incluindo suas capitais.
As leis mudaram e a escravidão acabou (?), tarde demais, a vergonha permanece. Como no canto das três raças**, ecoa noite e dia. Nada redime nossa sociedade de ato tão vil e covarde, o qual contribuiu bastante para a desigualdade de condições que se experimenta até hoje em dia, desde o primeiro abrir de olhos. Olhos que podem ser vistos, por exemplo, nas primeiras e fortes cenas do filme "Última Parada 174", de Bruno Barreto, no rosto de um bebê que é tomado dos braços da mãe como "pagamento" de dívidas relacionadas ao tráfico de drogas ou de uma criança que vê a mãe assassinada.
A página em branco da vida dos dois garotos, como a de outros tantos, começa ali a ser preenchida, em linhas tortas, deixando antever os garranchos de seu capítulo final. Um caminho tortuoso e de certa forma previsível, em que violência e crime não são apenas a última parada, nem simples casos de polícia, mas um problema social. O filme é baseado em história real. Um dos dois garotos sobreviveu à chacina da Candelária e, anos depois, matou uma refém e foi morto por policiais, no desfecho do seqüestro de um ônibus, no Rio de Janeiro.
Em filmes como esse (outros exemplos são "Cidade de Deus" e "Tropa de Elite"), a exposição de cenas de violência tem sempre como justificativa o objetivo que as acompanha, qual seja o de chamar a atenção para algo que de fato existe. Isolados do mundo que nos cerca, fechamos os olhos e vemos miséria e violência como algo distante, enquanto isso é possível. Nesses filmes, porém, somos postos frente a frente com essas mazelas.
Tal método é discutível, em ambos os sentidos: que se pode discutir e que é contestável, duvidoso, pois há quem seja - ou procure ser - consciente de outras formas, preferindo a denúncia implícita, que não precisa ser escancarada para ser compreendida. Eu, por exemplo, prefiro a poesia de "Central do Brasil". Há que se reconhecer, porém, nos três filmes citados, o lado mais positivo do princípio maquiavélico de que os fins justificam os meios. Certamente, os fins desses filmes fazem-nos sair do cinema reflexivos.
* Em uma palavra, meu senhor, todas as piores características da escravidão existem nesta província; o esforço dos mestres é, igualmente, de suprimir o intelecto, as paixões e os sentimentos destas pobres criaturas, e as leis ajudam-lhes a transformar o homem africano na besta americana.
** Canto das três raças (Paulo César Pinheiro – Mauro Duarte)
Num passado recente do nosso país, há apenas 120 anos, homens eram subjugados por seus semelhantes, com a conivência das leis e da maior parte da sociedade. Em trecho de relatório de cônsul britânico no Recife a um conde inglês, em 1843, constante do livro "Children of God's Fire – A documentary history of black slavery in Brazil" de Robert Edgar Conrad, publicado nos EUA, percebe-se uma síntese da época da escravidão no Brasil, quando se mutilava corpo e alma de seres humanos e as leis serviam de pretexto para quem se beneficiava da situação vigente:
"In a word, my Lord, all the worst features of slavery exist in this province; the endeavour of the master is to suppress alike the intellect, the passions, and the senses of these poor creatures, and the laws aid them in transforming the African man into the American beast"*.
Mais de um século após a quebra das correntes, uma outra corrente vem consolidando, em nosso país, o entendimento de que a abolição da escravatura pela princesa Isabel apenas corrigiu uma injustiça secular e a data não ressalta a luta dos negros pela libertação. Em seu lugar, vem se firmando, a cada ano, a comemoração do dia da consciência negra, em 20 de novembro, instituído pela lei 10.639/2003 - a mesma que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. O dia, que coincide com a morte de Zumbi dos Palmares, símbolo de resistência à escravidão e luta pela liberdade, é feriado em várias cidades brasileiras, em sua grande maioria dos estados do Mato Grosso, Rio de Janeiro e São Paulo, incluindo suas capitais.
As leis mudaram e a escravidão acabou (?), tarde demais, a vergonha permanece. Como no canto das três raças**, ecoa noite e dia. Nada redime nossa sociedade de ato tão vil e covarde, o qual contribuiu bastante para a desigualdade de condições que se experimenta até hoje em dia, desde o primeiro abrir de olhos. Olhos que podem ser vistos, por exemplo, nas primeiras e fortes cenas do filme "Última Parada 174", de Bruno Barreto, no rosto de um bebê que é tomado dos braços da mãe como "pagamento" de dívidas relacionadas ao tráfico de drogas ou de uma criança que vê a mãe assassinada.
A página em branco da vida dos dois garotos, como a de outros tantos, começa ali a ser preenchida, em linhas tortas, deixando antever os garranchos de seu capítulo final. Um caminho tortuoso e de certa forma previsível, em que violência e crime não são apenas a última parada, nem simples casos de polícia, mas um problema social. O filme é baseado em história real. Um dos dois garotos sobreviveu à chacina da Candelária e, anos depois, matou uma refém e foi morto por policiais, no desfecho do seqüestro de um ônibus, no Rio de Janeiro.
Em filmes como esse (outros exemplos são "Cidade de Deus" e "Tropa de Elite"), a exposição de cenas de violência tem sempre como justificativa o objetivo que as acompanha, qual seja o de chamar a atenção para algo que de fato existe. Isolados do mundo que nos cerca, fechamos os olhos e vemos miséria e violência como algo distante, enquanto isso é possível. Nesses filmes, porém, somos postos frente a frente com essas mazelas.
Tal método é discutível, em ambos os sentidos: que se pode discutir e que é contestável, duvidoso, pois há quem seja - ou procure ser - consciente de outras formas, preferindo a denúncia implícita, que não precisa ser escancarada para ser compreendida. Eu, por exemplo, prefiro a poesia de "Central do Brasil". Há que se reconhecer, porém, nos três filmes citados, o lado mais positivo do princípio maquiavélico de que os fins justificam os meios. Certamente, os fins desses filmes fazem-nos sair do cinema reflexivos.
* Em uma palavra, meu senhor, todas as piores características da escravidão existem nesta província; o esforço dos mestres é, igualmente, de suprimir o intelecto, as paixões e os sentimentos destas pobres criaturas, e as leis ajudam-lhes a transformar o homem africano na besta americana.
** Canto das três raças (Paulo César Pinheiro – Mauro Duarte)
Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou
E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor
E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador
Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas como um soluçar de dor
17.10.08
Falando a mesma língua
Acordo e dou de cara com o acordo. Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Timor Leste, São Tomé e Príncipe, os países lusófonos, enfim, falarão a mesma língua. O mesmo não se pode dizer dos linguistas desses países. Estes não andam falando a mesma língua e com alguns deles não tem acordo. Os que não o veem com bons olhos, dizem que não vai funcionar, ponto. Já os que creem em seu êxito, respondem: não vai funcionar, vírgula! A resistência é maior em Portugal, onde as mudanças na ortografia atingirão em torno de 1,5% das palavras. No Brasil, o percentual de vocábulos alterados é de cerca de 0,5%*.
O fato é que o acordo ortográfico – de 1990 -, começa a vigorar, no Brasil, a partir de janeiro de 2009, embora as regras anteriores permaneçam válidas até 2012. A ideia é unificar a grafia e acabar com a odisseia na comunicação escrita entre os países de língua portuguesa, aumentando a integração entre eles, sendo este seu maior trunfo. A principal queixa dos discordantes é o alto custo envolvido com as mudanças, principalmente na reedição de livros - sobretudo os didáticos, gramáticas e dicionários. Vale lembrar que já passamos por outros acordos e reformas ortográficas - não tão facilmente assimiláveis - e que, por conseguinte, nossa ortografia já foi bem diferente, com menos acentos e muitas consoantes mudas **.
No novo acordo, a maior parte das mudanças implica em perda de acento, como nos hiatos oo (voo), na terceira pessoa do plural dos verbos dar, crer, ler, ver (deem, creem, leem, veem), nas paroxítonas com I e U tônicos precedidos de ditongo (feiura) e nos ditongos ei e oi - apenas em paroxítonas (plateia perde o acento, coronéis, não e cuidado: não confundir veia literata com uma senhora idosa versada em letras). Em Portugal, a maior mudança, porém, talvez seja a supressão das consoantes mudas na grafia de algumas palavras (director, óptimo), o que tem deixado os portugueses sem acção.
Há outras mudanças simplificadoras, como a perda do acento diferencial de palavras homógrafas. Por exemplo, pára, do verbo parar, para de ter acento, o que não constitui um problema, pois se você para para observar, neste caso é fácil distinguir o verbo da preposição. Com relação ao acréscimo das letras K, W e Y ao nosso alfabeto, K pra nós não tem muita utilidade, Y muito menos e W, só na internet. O hífen, que dá trabalho a todo o mundo, perdeu o emprego em algumas situações (abrindo um parêntese aqui, as exceções, grande problema do hífen, continuam) e, finalmente, para que todos fiquem tranquilos e ninguém mais tema nem trema ao escrever, o trema não mais existirá.
A conclusão a que se pode chegar é que o acordo atual, ainda que facilite, não é suficiente para proporcionar uma maior integração entre os países em questão, uma vez que não há como unificar o vocabulário em constante evolução de tais países, cada um com suas próprias influências históricas, como o tupi-guarani e as palavras de origem africana, no caso do Brasil. Por outro lado, é considerável podermos imaginar que este texto escrito assim, de acordo com o acordo, poderia ser lido, sem alterações, em Lisboa ou João Pessoa, em Portugal ou Guiné-Bissau.
* Quanto a esse percentual, Vasco Graça Moura, escritor e deputado português no Parlamento Europeu e um dos maiores críticos do acordo que, segundo ele, “serve interesses geopolíticos e empresariais brasileiros” e “redundará em total benefício do Brasil”, afirma que “não foi feito cálculo nenhum quanto à frequência com que essas palavras são utilizadas, havendo casos em que tal frequência é altíssima”. Leia esta e outras opiniões do além-mar, a favor e contra o acordo, em: www.ciberduvidas.sapo.pt/controversias.
** Para ilustrar tais mudanças de ortografia, seguem curiosos trechos do prefácio e apêndice do livro “A illusão americana”, de Eduardo Prado, publicado no Brasil em 1895, pouco depois da proclamação da República:
“Este despretencioso escripto foi confiscado e prohibido pelo governo republicano do Brazil. Possuir este livro foi delicto, lel-o conspiração, crime havel-o escripto”.
“Escrevo um livro sustentando a doutrina politica de que o Brazil deve ser livre e autonomico perante o estrangeiro, e adopto o aphorismo de Montesquieu, de que as republicas devem ter como fundamento a virtude.
O governo é contrario a essas opiniões, e está no seu direito. Manda, porém, prohibir o livro! Onde está a palavra do governo, dada solemnemente n'um decreto em que diz garantir a propaganda de qualquer doutrina politica?
A sabedoria popular diz: Palavra de rei não volta atraz. - O povo terá de inventar outro proverbio para a palavra do vice-presidente da republica”.
O fato é que o acordo ortográfico – de 1990 -, começa a vigorar, no Brasil, a partir de janeiro de 2009, embora as regras anteriores permaneçam válidas até 2012. A ideia é unificar a grafia e acabar com a odisseia na comunicação escrita entre os países de língua portuguesa, aumentando a integração entre eles, sendo este seu maior trunfo. A principal queixa dos discordantes é o alto custo envolvido com as mudanças, principalmente na reedição de livros - sobretudo os didáticos, gramáticas e dicionários. Vale lembrar que já passamos por outros acordos e reformas ortográficas - não tão facilmente assimiláveis - e que, por conseguinte, nossa ortografia já foi bem diferente, com menos acentos e muitas consoantes mudas **.
No novo acordo, a maior parte das mudanças implica em perda de acento, como nos hiatos oo (voo), na terceira pessoa do plural dos verbos dar, crer, ler, ver (deem, creem, leem, veem), nas paroxítonas com I e U tônicos precedidos de ditongo (feiura) e nos ditongos ei e oi - apenas em paroxítonas (plateia perde o acento, coronéis, não e cuidado: não confundir veia literata com uma senhora idosa versada em letras). Em Portugal, a maior mudança, porém, talvez seja a supressão das consoantes mudas na grafia de algumas palavras (director, óptimo), o que tem deixado os portugueses sem acção.
Há outras mudanças simplificadoras, como a perda do acento diferencial de palavras homógrafas. Por exemplo, pára, do verbo parar, para de ter acento, o que não constitui um problema, pois se você para para observar, neste caso é fácil distinguir o verbo da preposição. Com relação ao acréscimo das letras K, W e Y ao nosso alfabeto, K pra nós não tem muita utilidade, Y muito menos e W, só na internet. O hífen, que dá trabalho a todo o mundo, perdeu o emprego em algumas situações (abrindo um parêntese aqui, as exceções, grande problema do hífen, continuam) e, finalmente, para que todos fiquem tranquilos e ninguém mais tema nem trema ao escrever, o trema não mais existirá.
A conclusão a que se pode chegar é que o acordo atual, ainda que facilite, não é suficiente para proporcionar uma maior integração entre os países em questão, uma vez que não há como unificar o vocabulário em constante evolução de tais países, cada um com suas próprias influências históricas, como o tupi-guarani e as palavras de origem africana, no caso do Brasil. Por outro lado, é considerável podermos imaginar que este texto escrito assim, de acordo com o acordo, poderia ser lido, sem alterações, em Lisboa ou João Pessoa, em Portugal ou Guiné-Bissau.
* Quanto a esse percentual, Vasco Graça Moura, escritor e deputado português no Parlamento Europeu e um dos maiores críticos do acordo que, segundo ele, “serve interesses geopolíticos e empresariais brasileiros” e “redundará em total benefício do Brasil”, afirma que “não foi feito cálculo nenhum quanto à frequência com que essas palavras são utilizadas, havendo casos em que tal frequência é altíssima”. Leia esta e outras opiniões do além-mar, a favor e contra o acordo, em: www.ciberduvidas.sapo.pt/controversias.
** Para ilustrar tais mudanças de ortografia, seguem curiosos trechos do prefácio e apêndice do livro “A illusão americana”, de Eduardo Prado, publicado no Brasil em 1895, pouco depois da proclamação da República:
“Este despretencioso escripto foi confiscado e prohibido pelo governo republicano do Brazil. Possuir este livro foi delicto, lel-o conspiração, crime havel-o escripto”.
“Escrevo um livro sustentando a doutrina politica de que o Brazil deve ser livre e autonomico perante o estrangeiro, e adopto o aphorismo de Montesquieu, de que as republicas devem ter como fundamento a virtude.
O governo é contrario a essas opiniões, e está no seu direito. Manda, porém, prohibir o livro! Onde está a palavra do governo, dada solemnemente n'um decreto em que diz garantir a propaganda de qualquer doutrina politica?
A sabedoria popular diz: Palavra de rei não volta atraz. - O povo terá de inventar outro proverbio para a palavra do vice-presidente da republica”.
21.9.08
Um Rio que passou em minha vida
Entre os anos 20 e 30 do século passado, as escolas de samba do Rio de Janeiro tinham como mestres nomes como Cartola e Ismael Silva. Surgidas no subúrbio, tais escolas eram manifestações do povo, pelo povo e para o povo, numa democracia musical, afinada e harmônica. Depois, vieram Martinho da Vila, Paulinho da Viola, entre tantos outros que contribuíram para fazer do samba esse ritmo tão popular.
Com o passar dos anos, ao mesmo tempo em que o desfile das escolas foi se consolidando como um espetáculo, o carnaval carioca foi sumindo das ruas, tornando-se um tanto elitista (isso vem mudando, vide Monobloco, Simpatia é quase amor, Cordão do Boitatá e outros blocos de rua). Porém, ai porém, ser ou não ser elitista, como tudo na vida, depende do ângulo de visão, no caso o de quem assiste ou o de quem faz. Olhando de cima, de fora pra dentro ou do ponto de vista dos espectadores dos desfiles, sim, pois paga-se caro para assisti-lo e o ingresso é bastante disputado. Olhando por baixo, de dentro pra fora ou do ponto de vista de quem está desfilando, não, pois trata-se, em sua maior parte, de gente das comunidades, que trabalha o ano inteiro, a vida toda, para fazer uma boa apresentação e tem nesse ofício sua razão de viver.
Gente de um outro Rio de Janeiro, não o que tem braços abertos no cartão postal, mas o que tem Jesus e está de costas, que não figura no mapa, do subúrbio de Chico, berço do samba, que nos legou os laralaiás das canções. Um Rio que passou em minha vida, na minha infância, quando escutava belíssimas canções saídas das mentes sensíveis da turma da Velha Guarda da Portela, como “O mar serenou”, de Candeia e “Quantas lágrimas”, de Manacea, grandes sucessos nas vozes de Clara Nunes e Cristina Buarque, respectivamente.
Um rio que deságua na Lapa da nova geração real de sambistas (a imperatriz Teresa Cristina à frente), trazendo afluentes influentes como Paulinho da Viola e Marisa Monte, o primeiro, idealizador do grupo formado por ex-integrantes da Portela – nunca vi coisa mais bela - e produtor do primeiro disco da Velha Guarda, “Portela passado de glória”; a segunda, filha de ex-diretor da escola e produtora do último disco dos veteranos sambistas, “Tudo azul”, com músicas antigas, porém inéditas, algumas gravadas apenas em suas memórias.
Do trabalho de pesquisa para a composição do repertório de “Tudo azul”, surgiu o documentário “O mistério do samba”, de Carolina Jabor e Lula Buarque de Holanda, após quase dez anos de filmagens, a partir de 1998. O filme registra depoimentos de vários integrantes da Velha Guarda da Portela, entre eles Argemiro e Jair do Cavaquinho - falecidos durante o período das filmagens -, bem como os encontros do grupo com Marisa Monte, que também colabora como produtora e roteirista. Entre as canções do filme estão “Quantas lágrimas” e “Esta melodia”, esta última já gravada por Marisa em “Verde anil amarelo cor de rosa e carvão”, aquela do refrão: “Não suporto mais tua ausência / já pedi a Deus paciência”, mais uma que começa com um delicioso laralaiá.
Em depoimento ao documentário, Paulinho da Viola, ao se referir à emoção que a música e outras artes proporcionam, dispensa, de forma genial, maiores explicações: “você pode até explicar, mas não é o mais importante”. Eis o mistério do samba. O que difere a música da ciência é justamente que esta precisa do conhecimento, da medida, da precisão, da explicação para ser entendida, enquanto a música só precisa do sentimento. Não dá pra definir, é como aquele azul da Portela, que não era do céu nem era do mar e conquistou Paulinhos num certo dia de carnaval...
Foi um rio que passou em minha vida (Paulinho da Viola)
Se um dia
Meu coração for consultado
Para saber se andou errado
Será difícil negar
Meu coração tem mania de amor
Amor não é fácil de achar
A marca dos meus desenganos ficou, ficou
Só um amor pode apagar
Porém
Há um caso diferente
Que marcou um breve tempo
Meu coração para sempre
Era dia de carnaval
Eu carregava uma tristeza
Não pensava em novo amor
Quando alguém que não me lembro anunciou
Portela, Portela
O samba trazendo alvorada
Meu coração conquistou
Ah, minha Portela
Quando vi você passar
Senti meu coração apressado
Todo o meu corpo tomado
Minha alegria a voltar
Não posso definir aquele azul
Não era do céu
Nem era do mar
Foi um rio que passou em minha vida
E meu coração se deixou levar
Com o passar dos anos, ao mesmo tempo em que o desfile das escolas foi se consolidando como um espetáculo, o carnaval carioca foi sumindo das ruas, tornando-se um tanto elitista (isso vem mudando, vide Monobloco, Simpatia é quase amor, Cordão do Boitatá e outros blocos de rua). Porém, ai porém, ser ou não ser elitista, como tudo na vida, depende do ângulo de visão, no caso o de quem assiste ou o de quem faz. Olhando de cima, de fora pra dentro ou do ponto de vista dos espectadores dos desfiles, sim, pois paga-se caro para assisti-lo e o ingresso é bastante disputado. Olhando por baixo, de dentro pra fora ou do ponto de vista de quem está desfilando, não, pois trata-se, em sua maior parte, de gente das comunidades, que trabalha o ano inteiro, a vida toda, para fazer uma boa apresentação e tem nesse ofício sua razão de viver.
Gente de um outro Rio de Janeiro, não o que tem braços abertos no cartão postal, mas o que tem Jesus e está de costas, que não figura no mapa, do subúrbio de Chico, berço do samba, que nos legou os laralaiás das canções. Um Rio que passou em minha vida, na minha infância, quando escutava belíssimas canções saídas das mentes sensíveis da turma da Velha Guarda da Portela, como “O mar serenou”, de Candeia e “Quantas lágrimas”, de Manacea, grandes sucessos nas vozes de Clara Nunes e Cristina Buarque, respectivamente.
Um rio que deságua na Lapa da nova geração real de sambistas (a imperatriz Teresa Cristina à frente), trazendo afluentes influentes como Paulinho da Viola e Marisa Monte, o primeiro, idealizador do grupo formado por ex-integrantes da Portela – nunca vi coisa mais bela - e produtor do primeiro disco da Velha Guarda, “Portela passado de glória”; a segunda, filha de ex-diretor da escola e produtora do último disco dos veteranos sambistas, “Tudo azul”, com músicas antigas, porém inéditas, algumas gravadas apenas em suas memórias.
Do trabalho de pesquisa para a composição do repertório de “Tudo azul”, surgiu o documentário “O mistério do samba”, de Carolina Jabor e Lula Buarque de Holanda, após quase dez anos de filmagens, a partir de 1998. O filme registra depoimentos de vários integrantes da Velha Guarda da Portela, entre eles Argemiro e Jair do Cavaquinho - falecidos durante o período das filmagens -, bem como os encontros do grupo com Marisa Monte, que também colabora como produtora e roteirista. Entre as canções do filme estão “Quantas lágrimas” e “Esta melodia”, esta última já gravada por Marisa em “Verde anil amarelo cor de rosa e carvão”, aquela do refrão: “Não suporto mais tua ausência / já pedi a Deus paciência”, mais uma que começa com um delicioso laralaiá.
Em depoimento ao documentário, Paulinho da Viola, ao se referir à emoção que a música e outras artes proporcionam, dispensa, de forma genial, maiores explicações: “você pode até explicar, mas não é o mais importante”. Eis o mistério do samba. O que difere a música da ciência é justamente que esta precisa do conhecimento, da medida, da precisão, da explicação para ser entendida, enquanto a música só precisa do sentimento. Não dá pra definir, é como aquele azul da Portela, que não era do céu nem era do mar e conquistou Paulinhos num certo dia de carnaval...
Foi um rio que passou em minha vida (Paulinho da Viola)
Se um dia
Meu coração for consultado
Para saber se andou errado
Será difícil negar
Meu coração tem mania de amor
Amor não é fácil de achar
A marca dos meus desenganos ficou, ficou
Só um amor pode apagar
Porém
Há um caso diferente
Que marcou um breve tempo
Meu coração para sempre
Era dia de carnaval
Eu carregava uma tristeza
Não pensava em novo amor
Quando alguém que não me lembro anunciou
Portela, Portela
O samba trazendo alvorada
Meu coração conquistou
Ah, minha Portela
Quando vi você passar
Senti meu coração apressado
Todo o meu corpo tomado
Minha alegria a voltar
Não posso definir aquele azul
Não era do céu
Nem era do mar
Foi um rio que passou em minha vida
E meu coração se deixou levar
7.9.08
Fora de série
* Ao Mestre Salu, grande mestre da cultura popular e torcedor do Santa Cruz.
João Cabral de Melo Neto e Chico Science, tal qual as águas dos rios que os inspiravam, refletiram bem a imagem do povo de sua cidade, aquele que realmente a constrói, pisa em seu chão, vive e convive em seus espaços e não apenas a vê através da janela do carro, da varanda do apartamento ou da tela da tv. É desse povo simples, dessa gente sofrida, que tem no futebol uma de suas poucas alegrias, que se constitui a maior parte da torcida do Santa Cruz Futebol Clube, e é natural, portanto, que os dois ilustres recifenses fossem torcedores desse clube, tendo o poeta sido, inclusive, atleta de sua equipe de futebol juvenil.
O clube pernambucano, que possui 24 títulos estaduais e já revelou atletas como Ricardo Rocha e Rivaldo, foi fundado em 1914 - por garotos que costumavam se reunir no pátio da igreja de Santa Cruz, no bairro da Boa Vista - e afundado no novo milênio, quando passou a viver sua pior fase. Depois de sagrar-se campeão estadual pela única vez na década, em 2005 e disputar a primeira divisão do campeonato brasileiro em 2006, “o mais querido”, como o chamava o mestre Capiba, foi rebaixado três vezes consecutivas, fato inédito no futebol brasileiro, o maior rebaixamento consecutivo do norte-nordeste-centro-oeste-sudeste-sul, algo difícil de se repetir.
Na década de 70, em sua época de ouro, o Santa Cruz conquistou sete títulos estaduais, entre os quais o pentacampeonato pernambucano, tinha a maior torcida do estado, inaugurou o estádio do Arruda, pertencente ao clube e fez boas campanhas no Brasileirão. Se, hoje em dia, Sport e Náutico são os únicos clubes pernambucanos que figuram no cenário nacional, o Brasil já foi, em tempos passados, Terra de Santa Cruz.
Em 73, o clube teve o artilheiro da competição (Ramon) e em 78 ficou na quinta colocação, mantendo-se invicto por 27 jogos, mas o ano em que mais se destacou foi 75, quando chegou às semifinais, sendo, então, derrotado pelo Cruzeiro (eu estava lá!), que se tornaria o vice-campeão nacional e campeão da Libertadores no ano seguinte. Em 76, venceu, em torneio no Recife, a seleção da Tchecoslováquia, à época campeã da Eurocopa e, no final da década, retornou invicto de excursão à Europa e ao Oriente Médio, tendo vencido, entre outras, a seleção da Romênia.
Numa segregação literal, costuma-se dividir as pessoas em classes sociais: A, B, C, D. O mesmo ocorre com os times de futebol, divididos entre as séries A, B, C e – agora também – D. Como se pessoas e clubes pudessem ser valorados por uma simples letra. Os jogadores passam, a torcida fica. Por isso, a maior conquista de um clube é sua torcida e, nesse aspecto, tenha santa paciência, o Santa Cruz, que tem em sua bandeira as cores das três raças, vermelha, preta e branca, é fora de série.
Como diz o hino do clube, composto pelos irmãos Valença, “Esta multidão tamanha, gente pobre que te aclama, lembra o ouro que se apanha nos cascalhos e na lama. Esse ouro é sangue, é vida. É delírio, raça e amor. A bandeira tão querida. A bandeira tricolor”. O hino é uma canção de amor ao clube e a sua torcida, pois como dizia Gonzaguinha, “uma canção de amor também é aquela que canta o suor do trabalho, o calo das mãos de quem canta a esperança, no jogo, na dança, com garra e fé”. Como têm dito os sofridos tricolores, um amor incondicional, um amor que não tem divisão, ao que acrescento: um amor fora de série.
João Cabral de Melo Neto e Chico Science, tal qual as águas dos rios que os inspiravam, refletiram bem a imagem do povo de sua cidade, aquele que realmente a constrói, pisa em seu chão, vive e convive em seus espaços e não apenas a vê através da janela do carro, da varanda do apartamento ou da tela da tv. É desse povo simples, dessa gente sofrida, que tem no futebol uma de suas poucas alegrias, que se constitui a maior parte da torcida do Santa Cruz Futebol Clube, e é natural, portanto, que os dois ilustres recifenses fossem torcedores desse clube, tendo o poeta sido, inclusive, atleta de sua equipe de futebol juvenil.
O clube pernambucano, que possui 24 títulos estaduais e já revelou atletas como Ricardo Rocha e Rivaldo, foi fundado em 1914 - por garotos que costumavam se reunir no pátio da igreja de Santa Cruz, no bairro da Boa Vista - e afundado no novo milênio, quando passou a viver sua pior fase. Depois de sagrar-se campeão estadual pela única vez na década, em 2005 e disputar a primeira divisão do campeonato brasileiro em 2006, “o mais querido”, como o chamava o mestre Capiba, foi rebaixado três vezes consecutivas, fato inédito no futebol brasileiro, o maior rebaixamento consecutivo do norte-nordeste-centro-oeste-sudeste-sul, algo difícil de se repetir.
Na década de 70, em sua época de ouro, o Santa Cruz conquistou sete títulos estaduais, entre os quais o pentacampeonato pernambucano, tinha a maior torcida do estado, inaugurou o estádio do Arruda, pertencente ao clube e fez boas campanhas no Brasileirão. Se, hoje em dia, Sport e Náutico são os únicos clubes pernambucanos que figuram no cenário nacional, o Brasil já foi, em tempos passados, Terra de Santa Cruz.
Em 73, o clube teve o artilheiro da competição (Ramon) e em 78 ficou na quinta colocação, mantendo-se invicto por 27 jogos, mas o ano em que mais se destacou foi 75, quando chegou às semifinais, sendo, então, derrotado pelo Cruzeiro (eu estava lá!), que se tornaria o vice-campeão nacional e campeão da Libertadores no ano seguinte. Em 76, venceu, em torneio no Recife, a seleção da Tchecoslováquia, à época campeã da Eurocopa e, no final da década, retornou invicto de excursão à Europa e ao Oriente Médio, tendo vencido, entre outras, a seleção da Romênia.
Numa segregação literal, costuma-se dividir as pessoas em classes sociais: A, B, C, D. O mesmo ocorre com os times de futebol, divididos entre as séries A, B, C e – agora também – D. Como se pessoas e clubes pudessem ser valorados por uma simples letra. Os jogadores passam, a torcida fica. Por isso, a maior conquista de um clube é sua torcida e, nesse aspecto, tenha santa paciência, o Santa Cruz, que tem em sua bandeira as cores das três raças, vermelha, preta e branca, é fora de série.
Como diz o hino do clube, composto pelos irmãos Valença, “Esta multidão tamanha, gente pobre que te aclama, lembra o ouro que se apanha nos cascalhos e na lama. Esse ouro é sangue, é vida. É delírio, raça e amor. A bandeira tão querida. A bandeira tricolor”. O hino é uma canção de amor ao clube e a sua torcida, pois como dizia Gonzaguinha, “uma canção de amor também é aquela que canta o suor do trabalho, o calo das mãos de quem canta a esperança, no jogo, na dança, com garra e fé”. Como têm dito os sofridos tricolores, um amor incondicional, um amor que não tem divisão, ao que acrescento: um amor fora de série.
27.8.08
Momentos olímpicos
De acordo com a Wikipedia, o Aurélio, o Houaiss e outros caras, olimpíadas e jogos olímpicos, atualmente bastante usados como sinônimos, podem não ter o mesmo significado. O termo olimpíada representava, na Grécia Antiga, o período de quatro anos compreendido entre duas edições de tais jogos, que por sua vez, têm esse nome por terem surgido na cidade grega de Olímpia. Em suma: após a olimpíada, começam os jogos olímpicos. Outra curiosidade é que o símbolo oficial dos jogos, os conhecidos cinco anéis de cores diferentes, representam, cada um, um continente, o azul sendo a Europa, o amarelo, a Ásia, o preto, a África, o vermelho, a América e o verde, a Oceania.
Um grande momento da história dos jogos olímpicos foi a conquista de quatro medalhas de ouro, no atletismo, pelo atleta negro Jesse Owens, dos Estados Unidos, nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, episódio que foi de encontro aos objetivos do líder nazista Adolf Hitler de comprovar a superioridade da raça ariana durante os jogos.
A ginástica e o atletismo, duas das modalidades mais tradicionais dos jogos olímpicos, foram responsáveis por outros dois momentos marcantes de sua história, opostos em termos de resultados, mas semelhantes no espírito de superação e perseverança. Nas Olimpíadas de Montreal, em 1976, a romena Nádia Comaneci recebeu a primeira nota 10 da ginástica olímpica, com apenas 14 anos de idade e em 1984, em Los Angeles, a suíça Gabriela Andersen-Scheiss, à época com 39 anos, terminou a prova em um dos últimos lugares, quase não se aguentando em pé, cambaleando, desorientada, até cruzar a linha de chegada e ser acudida por médicos, desmaiando em seus braços.
As brigas políticas, que iam de encontro ao espírito olímpico de união entre os povos, foram freqüentes nas várias edições dos jogos, com destaque para o atentado ocorrido em Munique - que resultou na morte de atletas da equipe de Israel - e os jogos realizados durante a Guerra Fria, na década de 80. Em 1984, em Los Angeles, as Olimpíadas foram marcadas pelo boicote da maioria dos países socialistas à competição, em resposta a ato semelhante praticado pelos Estados Unidos e dezenas de outros países aos jogos de Moscou, em 1980.
Os jogos de Barcelona, em 1992, por sua vez, foram os primeiros ocorridos após importantes fatos históricos que se refletiram na relação dos países participantes. Três anos após a queda do muro de Berlim e dois após o fim do regime de apartheid, a Alemanha, como nação unificada, e a África do Sul voltaram a participar de Olimpíadas. Já a União Soviética e a Iugoslávia viviam um processo de desmembramento em várias nações, com algumas delas, como Lituânia, Letônia, Estônia, Croácia e Eslovênia, participando separadamente da competição. As repúblicas soviéticas remanescentes participaram com o nome de Equipe Unificada.
A canção tema das Olimpíadas de Barcelona, “Amigos para Siempre”, refletiu bem o tal espírito olímpico, louvando a amizade e a união entre os povos e as nações e sensibilizou a todos. Foi também nessa época que uma nova “modalidade” criada pelos voluntários gandulas mereceu destaque: a limpeza de quadra sincronizada, que roubava a cena nos intervalos dos jogos de vôlei e basquete - sendo bastante aplaudida - e que até hoje dão um toque de graça a esses jogos.
O Brasil, depois de uma maratona de deslizes e sobressaltos com vara, até que não se saiu tão mal em Pequim. Mas quem merece parabéns mesmo é a Jamaica, país que melhor reverteu (e inverteu) a proporcionalidade direta entre a posição no quadro de medalhas e o quadro social, com sua décima terceira colocação e suas onze medalhas, sendo seis de ouro, três delas de Usain Bolt, no atletismo. Tentando escrever este texto rapidamente, talvez inspirado nos tempos olímpicos, lembrei da velocidade das braçadas de Michael Phelps, atleta estadunidense que ganhou oito provas de natação nesses jogos. Nada mau pra quem nada bem. A potência máxima da natação é levada ao Cubo D'Água: pura matemática. Mas o que ele faz pra ganhar tantas medalhas de ouro? Nada de mais, apenas nada demais! Beijing pra todos.
Um grande momento da história dos jogos olímpicos foi a conquista de quatro medalhas de ouro, no atletismo, pelo atleta negro Jesse Owens, dos Estados Unidos, nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, episódio que foi de encontro aos objetivos do líder nazista Adolf Hitler de comprovar a superioridade da raça ariana durante os jogos.
A ginástica e o atletismo, duas das modalidades mais tradicionais dos jogos olímpicos, foram responsáveis por outros dois momentos marcantes de sua história, opostos em termos de resultados, mas semelhantes no espírito de superação e perseverança. Nas Olimpíadas de Montreal, em 1976, a romena Nádia Comaneci recebeu a primeira nota 10 da ginástica olímpica, com apenas 14 anos de idade e em 1984, em Los Angeles, a suíça Gabriela Andersen-Scheiss, à época com 39 anos, terminou a prova em um dos últimos lugares, quase não se aguentando em pé, cambaleando, desorientada, até cruzar a linha de chegada e ser acudida por médicos, desmaiando em seus braços.
As brigas políticas, que iam de encontro ao espírito olímpico de união entre os povos, foram freqüentes nas várias edições dos jogos, com destaque para o atentado ocorrido em Munique - que resultou na morte de atletas da equipe de Israel - e os jogos realizados durante a Guerra Fria, na década de 80. Em 1984, em Los Angeles, as Olimpíadas foram marcadas pelo boicote da maioria dos países socialistas à competição, em resposta a ato semelhante praticado pelos Estados Unidos e dezenas de outros países aos jogos de Moscou, em 1980.
Os jogos de Barcelona, em 1992, por sua vez, foram os primeiros ocorridos após importantes fatos históricos que se refletiram na relação dos países participantes. Três anos após a queda do muro de Berlim e dois após o fim do regime de apartheid, a Alemanha, como nação unificada, e a África do Sul voltaram a participar de Olimpíadas. Já a União Soviética e a Iugoslávia viviam um processo de desmembramento em várias nações, com algumas delas, como Lituânia, Letônia, Estônia, Croácia e Eslovênia, participando separadamente da competição. As repúblicas soviéticas remanescentes participaram com o nome de Equipe Unificada.
A canção tema das Olimpíadas de Barcelona, “Amigos para Siempre”, refletiu bem o tal espírito olímpico, louvando a amizade e a união entre os povos e as nações e sensibilizou a todos. Foi também nessa época que uma nova “modalidade” criada pelos voluntários gandulas mereceu destaque: a limpeza de quadra sincronizada, que roubava a cena nos intervalos dos jogos de vôlei e basquete - sendo bastante aplaudida - e que até hoje dão um toque de graça a esses jogos.
O Brasil, depois de uma maratona de deslizes e sobressaltos com vara, até que não se saiu tão mal em Pequim. Mas quem merece parabéns mesmo é a Jamaica, país que melhor reverteu (e inverteu) a proporcionalidade direta entre a posição no quadro de medalhas e o quadro social, com sua décima terceira colocação e suas onze medalhas, sendo seis de ouro, três delas de Usain Bolt, no atletismo. Tentando escrever este texto rapidamente, talvez inspirado nos tempos olímpicos, lembrei da velocidade das braçadas de Michael Phelps, atleta estadunidense que ganhou oito provas de natação nesses jogos. Nada mau pra quem nada bem. A potência máxima da natação é levada ao Cubo D'Água: pura matemática. Mas o que ele faz pra ganhar tantas medalhas de ouro? Nada de mais, apenas nada demais! Beijing pra todos.
14.8.08
Avós do coração
Tristeza não tem fim. Felicidade, sim. Quando era pequeno, chorava ao escutar esse trecho da música de Tom e Vinícius. Ao levar a letra ao pé da letra, sentia-me incomodado em estar iniciando uma trajetória na qual a tristeza seria constante e a felicidade, apenas pequenos momentos. Enxergando a vida através das lentes suaves dos olhos de uma criança, era feliz e resolvi, então, esperar vir o amadurecimento, deixar de ser jovem para então poder tirar conclusões mais precisas. Aos pouquinhos, sem pressa, entre felicidades e tristezas, ganhos e perdas, chegadas e partidas, encontros e despedidas. Só não sabia ao certo quando deixaria de ser jovem...
Descobri que isso acontece no exato momento em que perdemos nossos avós e constatamos que por ninguém mais seremos tratados como crianças. Foi assim que, numa fria manhã de agosto, repentinamente, amanheci mais velho. Sem a grande mãe, como chamam os ingleses. Sem a estrela-guia com quem descobri a importância de se escutar avós (e a voz) do coração, a quem devo a crença de que o amor é possível, de quem sempre admirei a simpatia e herdei o gosto por rir de qualquer coisa, a quem sempre busquei seguir na sensibilidade, simplicidade e delicadeza sem, contudo, chegar a seus pés. Linda com l maiúsculo, minha avó é a felicidade pela qual volto a chorar, depois de adulto, ao perceber que estava certo ao chorar, quando criança.
Descobri que isso acontece no exato momento em que perdemos nossos avós e constatamos que por ninguém mais seremos tratados como crianças. Foi assim que, numa fria manhã de agosto, repentinamente, amanheci mais velho. Sem a grande mãe, como chamam os ingleses. Sem a estrela-guia com quem descobri a importância de se escutar avós (e a voz) do coração, a quem devo a crença de que o amor é possível, de quem sempre admirei a simpatia e herdei o gosto por rir de qualquer coisa, a quem sempre busquei seguir na sensibilidade, simplicidade e delicadeza sem, contudo, chegar a seus pés. Linda com l maiúsculo, minha avó é a felicidade pela qual volto a chorar, depois de adulto, ao perceber que estava certo ao chorar, quando criança.
20.7.08
Da missa um terço
Uma cerimônia que ocorre todos os anos no interior de Pernambuco, sob o sol forte do sertão, dentro da jurisdição de Januário, que vai de Salgueiro a Bodocó, resgata os verdadeiros e primordiais preceitos religiosos de negação ao que representa luxo, ostentação, superfluidade. O evento ocorre, mais precisamente, no Parque Estadual João Câncio, Sítio das Lajes, a cerca de 30 km da cidade de Serrita e a 577 km do Recife, desde 1970, sempre num domingo do mês de julho, a partir das 10 horas da manhã.
Trata-se da Missa do Vaqueiro, cerimônia idealizada por Luiz Gonzaga em homenagem ao vaqueiro Raimundo Jacó, seu primo, neto do véio zangado, que um dia pediu respeito a Januário e seus oito baixos. Hoje em dia, a reverência estende-se a todos os vaqueiros, ao próprio Luiz Gonzaga e também ao padre João Câncio, celebrante das primeiras edições da missa e um de seus organizadores, junto com Gonzagão. Além deles, também foi responsável pela criação da missa o poeta Pedro Bandeira, de Juazeiro do Norte, único dos três ainda vivo.
O acesso ao parque é difícil, o cenário, monótono, o transporte, precário. Os vaqueiros que vêm de longe chegam em paus-de-arara, enquanto seus cavalos são transportados por caminhões, das fazendas. Outros andam léguas a pé ou já chegam montados nos cavalos. Lotações fazem jus ao nome e passam lotadas sob a vista grossa de alguns fiscais das estradas. O caminho caminha, a dura paisagem dura e, de tão igual, permanece. Lembra um causo de Gonzaga que, ao voltar pro sertão, depois da fama, perguntou a um transeunte: “Daqui pra Exu é longe?”, ao que este respondeu: “Umas seis léguas” e completou: “Aqui pra nós, porque nesse carro aí não dá nem quatro”.
A celebração acontece no local onde Raimundo Jacó foi encontrado morto, em julho de 1954, supostamente assassinado. No início da cerimônia, vaqueiros entram a cavalo no chão de terra seca e batida, ao som de “A morte do vaqueiro”*, de Nelson Barbalho e Luiz Gonzaga (aquela do tengo lengo tengo), que homenageia Jacó. De início, o próprio Gonzagão cantava essa e outras músicas, assim como o Quinteto Violado, que, inclusive, gravou dois discos inspirados na cerimônia. Atualmente, cantores populares revezam-se na interpretação das canções.
No ofertório, momento mais bonito, os vaqueiros sucedem-se em direção ao altar e entregam ao padre, uma a uma, as várias partes de sua indumentária típica, como chapéu, gibão, perneira, sela, alforje e chocalho, ao mesmo tempo em que Pedro Bandeira explica, de forma poética, a utilidade de cada uma delas. Na comunhão, os vaqueiros repartem o queijo, a rapadura e o vinho. Um comovente ritual, em que as lágrimas iminentes nas peles ressequidas lembram a promessa de chuva na terra rachada e as mãos em prece confundem-se com os mandacarus da paisagem.
A exploração turística do evento, ainda que pequena, se por um lado proporciona um mínimo de infra-estrutura, por outro, tira um pouco de sua espontaneidade, conseqüência natural da simplicidade rica dos sertanejos, numa tentativa artificial de criar um espetáculo. Em alguns desses momentos teatralizados, por exemplo, uma espécie de chefe de cerimonial insiste para que os vaqueiros acenem com seus chapéus.
Numa região geralmente esquecida pelas autoridades, que não sabem da missa 1/3, é pertinente a denúncia de exploração política do ato, presente nos versos do cordel “Encontro de padre João com Raimundo Jacó no céu”, de Pedro Bandeira: “Da sua missa primeira / Todo sertão tem saudade / Hoje o governo aproveita / Pra fazer publicidade / Parece uma coisa boba / Que o progresso sempre rouba / A nossa felicidade”. Acontece, por exemplo, de políticos adentrarem o parque montados a cavalo, com chapéu de couro na cabeça e o séquito de vaqueiros seguindo-os.
A festa profana começa na sexta-feira anterior à missa e segue até o domingo, tendo como atrações, além das apresentações de artistas populares, as vaquejadas, rodas de forró - semelhantes às rodas de samba - e pegas de boi. Na ocasião, alguns jovens sertanejos, indiferentes à missa e seguindo o exemplo que chega das “terras civilizadas”, reúnem-se dia e noite, religiosamente, em um extenso conjunto de bares à beira da estrada onde, em vez de hosana, o som é nas alturas. Acordar com a passarada até se consegue, dormir ao som do chocalho é que é difícil...
* A Morte do Vaqueiro (Luiz Gonzaga / Nelson Barbalho)
Numa tarde bem tristonha
Gado muge sem parar
Lamentando seu vaqueiro
Que não vem mais aboiar
Não vem mais aboiar
Tão dolente a cantar
Tengo, lengo, tengo,
lengo, tengo, lengo, tengo
Ei, gado, oi
Bom vaqueiro nordestino
Morre sem deixar tostão
O seu nome é esquecido
Nas quebradas do sertão
Nunca mais ouvirão
Seu cantar, meu irmão
Tengo, lengo, tengo,
lengo, tengo, lengo, tengo
Ei, gado, oi
Sacudido numa cova
Desprezado do Senhor
Só lembrado do cachorro
Que inda chora sua dor
É demais tanta dor
A chorar com amor
4.7.08
O concreto e o abstrato na terra da polêmica
Criar polêmica não é para qualquer um. Mais cômodo é seguir o senso comum dos críticos ou patrulhadores de plantão e não ir de encontro a suas opiniões, ainda que isso signifique optar pelo diferente, pelo exótico, em vez de louvar o que é mais comum.
O filósofo e poeta Antônio Cícero, também conhecido como parceiro musical e irmão da cantora Marina Lima, afirmou, em entrevista recente, que toda originalidade é, de início, esquisita, o que lembra a famosa frase de Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra. Em comum, as duas frases têm um componente generalizador e polêmico, o pronome indefinido toda. Certas vezes, os críticos, formadores de opinião, têm um gosto meio esquisito mesmo, mas estar do lado deles é achar-se parte de uma minoria intelectual privilegiada, o popular “crente que está abafando”, fugindo, assim, da “unanimidade burra”, do trivial, de apelo mais fácil.
Os embates entre os dois lados, porém, decorrem, muitas vezes, mais da polêmica que a polêmica cria, por conta da forma como é lançada, do que do lado escolhido. Recentemente, dois depoimentos - do tipo que gera controvérsias pelo conteúdo e sobretudo pela forma - receberam destaque na internet, ambos, de certa forma, coerentes com a especialidade dos respectivos autores: o primeiro, do economista Rodrigo Constantino, com MBA em finanças e profissional do mercado financeiro, conforme perfil exposto em seu blog e o segundo do humorista Marcelo Madureira, do programa Casseta e Planeta.
O economista, que se define como um pensador independente e libertário, escreveu em seu blog artigo intitulado “Um século de hipocrisia”, sobre o arquiteto Oscar Niemeyer, que completou, este ano, um século de vida. O artigo, a começar pelo título, é provocativo, recheado de frases como: “Niemeyer, sejamos bem francos, não passa de um hipócrita”, “Na prática, Niemeyer é um capitalista, não um comunista. Mas um capitalista da pior espécie: o que usa a retórica socialista para enganar os otários”, ou ainda: “... a ignorância é cada vez menos possível como desculpa para defender algo tão nefasto como o regime cubano, restando apenas a opção da falta de caráter mesmo. Ainda mais no caso de Niemeyer”.
No campo profissional, sabe-se que o arquiteto também gera polêmica, pelo uso em excesso de concreto em detrimento do verde em seus projetos. De concreto, porém, há de se concordar que, ainda que não se aprove suas posições ideológicas ou seu trabalho, os adjetivos usados do começo ao fim do artigo - que ainda deixa no ar a pergunta: “O que alguém como Niemeyer tem para ser admirado, enquanto pessoa?” - são fortes e desrespeitosos aos seus cabelos brancos.
Na mesma linha da forma exacerbando o conteúdo, mas com maior repercussão, inclusive por conta da maior divulgação por parte da mídia, Madureira afirmou, em debate ocorrido no Rio de Janeiro, no Cine Odeon: “Gláuber Rocha é uma merda”. Carlos Heitor Cony descreveu a reação dos “entendidos” participantes do evento ao comentário do humorista com ironia, como que adivinhando o pensamento daqueles que se imaginam agraciados com um gosto apurado, privilégio de poucos: “Como podiam ter deixado um cara daqueles, que não pertencia ao povo eleito, penetrar no sagrado pátio, no templo da arte do Terceiro Mundo...?”.
Entendidos à parte, mesmo aqueles que consideram a obra do cineasta de não tão fácil assimilação hão de concordar que o termo utilizado para descrevê-lo não cheira bem. Rocha é muito mais sólido do que isso. Como não cheira bem, também, o alarde que fizeram porque Ronaldo trocou as bolas. Como diz Caetano Veloso, nada pode prosperar quando todo o mundo quer saber com quem você se deita, o que, aliás, não interessa a ninguém, assim como o fumo e a bebida da rebelde Núbia Lafayette. Caetano, que gosta de polêmicas, criticou tais comentários intrusivos e traduziu bem o fenômeno: “A vida é assim: complexa e bonita, como os travestis”.
O filósofo e poeta Antônio Cícero, também conhecido como parceiro musical e irmão da cantora Marina Lima, afirmou, em entrevista recente, que toda originalidade é, de início, esquisita, o que lembra a famosa frase de Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra. Em comum, as duas frases têm um componente generalizador e polêmico, o pronome indefinido toda. Certas vezes, os críticos, formadores de opinião, têm um gosto meio esquisito mesmo, mas estar do lado deles é achar-se parte de uma minoria intelectual privilegiada, o popular “crente que está abafando”, fugindo, assim, da “unanimidade burra”, do trivial, de apelo mais fácil.
Os embates entre os dois lados, porém, decorrem, muitas vezes, mais da polêmica que a polêmica cria, por conta da forma como é lançada, do que do lado escolhido. Recentemente, dois depoimentos - do tipo que gera controvérsias pelo conteúdo e sobretudo pela forma - receberam destaque na internet, ambos, de certa forma, coerentes com a especialidade dos respectivos autores: o primeiro, do economista Rodrigo Constantino, com MBA em finanças e profissional do mercado financeiro, conforme perfil exposto em seu blog e o segundo do humorista Marcelo Madureira, do programa Casseta e Planeta.
O economista, que se define como um pensador independente e libertário, escreveu em seu blog artigo intitulado “Um século de hipocrisia”, sobre o arquiteto Oscar Niemeyer, que completou, este ano, um século de vida. O artigo, a começar pelo título, é provocativo, recheado de frases como: “Niemeyer, sejamos bem francos, não passa de um hipócrita”, “Na prática, Niemeyer é um capitalista, não um comunista. Mas um capitalista da pior espécie: o que usa a retórica socialista para enganar os otários”, ou ainda: “... a ignorância é cada vez menos possível como desculpa para defender algo tão nefasto como o regime cubano, restando apenas a opção da falta de caráter mesmo. Ainda mais no caso de Niemeyer”.
No campo profissional, sabe-se que o arquiteto também gera polêmica, pelo uso em excesso de concreto em detrimento do verde em seus projetos. De concreto, porém, há de se concordar que, ainda que não se aprove suas posições ideológicas ou seu trabalho, os adjetivos usados do começo ao fim do artigo - que ainda deixa no ar a pergunta: “O que alguém como Niemeyer tem para ser admirado, enquanto pessoa?” - são fortes e desrespeitosos aos seus cabelos brancos.
Na mesma linha da forma exacerbando o conteúdo, mas com maior repercussão, inclusive por conta da maior divulgação por parte da mídia, Madureira afirmou, em debate ocorrido no Rio de Janeiro, no Cine Odeon: “Gláuber Rocha é uma merda”. Carlos Heitor Cony descreveu a reação dos “entendidos” participantes do evento ao comentário do humorista com ironia, como que adivinhando o pensamento daqueles que se imaginam agraciados com um gosto apurado, privilégio de poucos: “Como podiam ter deixado um cara daqueles, que não pertencia ao povo eleito, penetrar no sagrado pátio, no templo da arte do Terceiro Mundo...?”.
Entendidos à parte, mesmo aqueles que consideram a obra do cineasta de não tão fácil assimilação hão de concordar que o termo utilizado para descrevê-lo não cheira bem. Rocha é muito mais sólido do que isso. Como não cheira bem, também, o alarde que fizeram porque Ronaldo trocou as bolas. Como diz Caetano Veloso, nada pode prosperar quando todo o mundo quer saber com quem você se deita, o que, aliás, não interessa a ninguém, assim como o fumo e a bebida da rebelde Núbia Lafayette. Caetano, que gosta de polêmicas, criticou tais comentários intrusivos e traduziu bem o fenômeno: “A vida é assim: complexa e bonita, como os travestis”.
19.6.08
O nosso Dominguinhos de todos os dias
Há alguns dias, um homem arretado recebeu, com o sorriso sincero e a simplicidade cativante de sempre, merecida homenagem na sexta edição do Prêmio Tim de Música, substituto do Prêmio Sharp, que, este ano, trouxe seu nome no subtítulo: “Ano Dominguinhos”. Vai ser, também, um dos homenageados do São João do Recife.
Os primeiros discos do músico são da década de 60, época em que começou, também, a tocar com Luiz Gonzaga, que conheceu ainda adolescente, em sua terra natal, Garanhuns, no agreste pernambucano. O Rei do Baião, responsável pela escolha de seu nome artístico Dominguinhos, chamou-o para fazer parte do grupo que o acompanharia no histórico show “Luiz Gonzaga volta pra curtir”, no Teatro Tereza Rachel, no Rio, em 1972, um trabalho, segundo o jornalista Sérgio Cabral, da linha recomendada por Drummond que, cansado de ser moderno, resolveu ser eterno.
No ano seguinte, gravou seu primeiro grande sucesso, “Lamento sertanejo”*, uma parceria brilhante com Gilberto Gil a qual, pra mim, melhor define o sertanejo e sua dificuldade em lidar com os “mestiços neurastênicos do litoral”, como bem definiu Euclides da Cunha em “Os Sertões”. Gostaria de ser sertanejo para poder sentir o prazer de ser perfeitamente traduzido por canções como esta, “Súplica cearense” do baiano Gordurinha, “Disparada” do paraibano Geraldo Vandré.
“Lamento sertanejo” foi gravada, também, por Gil, juntamente com “Tenho sede”, de Dominguinhos e Anastácia – primeira esposa do sanfoneiro e sua principal parceira musical -, no disco Refazenda, numa época em que músicas que não eram feitas pra tocar no rádio ainda tocavam no rádio, o que fez com que Dominguinhos passasse a ser mais conhecido pelo grande público. Outra parceria dele com Anastácia, “Eu só quero um xodó”, já havia sido destaque no disco anterior de Gil, “Cidade do Salvador” e, alguns anos depois, em “Refestança”, de Gil e Rita Lee. O baiano e o pernambucano compuseram juntos, também, “Abri a porta”, um dos destaques do LP “Frutificar”, do grupo “A cor do som”.
Nos anos 80, Dominguinhos compôs, com Nando Cordel, “De volta pro aconchego” e “Gostoso demais”, que conseguiram uma brechinha no monopólio do rock brasileiro de então e foram das canções mais executadas nas rádios, em gravações de Elba Ramalho e Maria Bethânia, respectivamente. Também nessa época, firmou parceria com Chico Buarque em “Tantas palavras”, parceria que seria reeditada, anos depois, em “Xote da navegação”. Outro grande sucesso dele com Nando Cordel na década foi “Isso aqui tá bom demais”, gravada com Chico que, assim como “De volta pro aconchego”, fez parte da boa trilha sonora da impactante novela “Roque Santeiro”, de Dias Gomes, que havia sido censurada em 75 e, dez anos depois, refilmada e exibida.
Dominguinhos tem mais de 40 discos lançados, sendo o último um trabalho em conjunto com o violonista Yamandú Costa, pela gravadora Biscoito Fino, em 2007. No Prêmio Tim, dividiu o palco com velhos e novos amigos como Elba Ramalho, Gilberto Gil, Ivete Sangalo, Zezé di Camargo e Luciano e Vanessa da Mata, a quem acompanhou na sanfona, na citada “Lamento sertanejo”. No mesmo evento, uma seleção musical foi interpretada em conjunto por ele, Flávio José, Jorge de Altinho e o impagável Genival Lacerda, nomes conhecidos no nordeste, mas nem tanto no sudeste e sul do país. Em depoimento, na ocasião, Ângela Rô Rô afirmou: “Dominguinhos é o deus da música brasileira”. Como disse um aluno em prova do Enem, “eu concordo em gênero e número igual” (sic bem grande)!
* Lamento sertanejo (Gilberto Gil / Dominguinhos)
Por ser de lá do sertão
Lá do cerrado
Lá do interior, do mato
Da caatinga, do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado
Por ser de lá
Na certa, por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada
Caminhando a esmo
4.6.08
Rivalidade PEBA
Recentemente, o poeta, escritor, antropólogo e historiador baiano Antônio Risério publicou artigo intitulado “Pernambuco fogo alto, Bahia banho-maria”, reproduzido abaixo*, em que fala das diferenças históricas e atuais entre esses dois estados. Como pernambucano, procuro expor, a seguir, um outro ângulo de visão do que fala o texto, a partir do que vivenciei por aqui, ao longo dos anos.
Durante minha infância e adolescência, li, ou escutei, vários depoimentos muito parecidos com esse de Risério, apenas trocando baiano por pernambucano, Bahia por Pernambuco. Sempre tendemos a ser mais críticos com o lugar em que vivemos do que com os demais. O que ele chama de “narcisismo provinciano” do baiano, por exemplo, em geral era visto pelo pernambucano como uma característica positiva do povo baiano, de dar valor a sua terra (talvez a recíproca, nesse caso, também ocorra, de lá pra cá, pra mostrar que, como na física, tudo depende do referencial de onde observamos as coisas). Esse valor à terra era algo que, pelo menos nessa época, não parecia existir por aqui e esse propalado orgulho do pernambucano, se existia, era coisa dos mais velhos, que destacavam os fatos do passado e ignoravam a situação vigente.
O período da ditadura militar, que presenciei em sua maior parte, coincidiu com uma época de total marasmo cultural e estagnação econômica em Pernambuco, essa última atribuída, em parte, à discriminação do governo dos militares, por conta de Recife e Pernambuco, por ocasião do golpe, terem como governantes políticos de esquerda. Todo esse vazio, imagino, resultou numa baixa auto-estima do povo daqui.
Depois de Luiz Gonzaga e antes de Chico Science, ou depois do golpe e antes da volta das eleições diretas, não surgiram grandes poetas nem músicos de grande destaque nacional oriundos deste estado. Aliás, o manguebeat surgiu justamente como uma resposta a esse vazio e marasmo reinantes ou a “uma depressão crônica que paralisa os cidadãos", como disse Fred 04, uma das cabeças do movimento (o que lembra o comentário de Risério, de que a Bahia "parece hoje paralisada, incapaz de produzir pensamentos e idéias”).
Após tão acentuado declínio, sem ter mais pra onde cair, o momento presente a que ele se refere, em Pernambuco, só poderia mesmo ser de subida. Quanto ao também citado êxito do atual governador Eduardo Campos, ressalte-se que ele é afinado com o governo federal, o que, de certa forma, tem ajudado. Seu correligionário e avô Miguel Arraes, por exemplo, em seu terceiro governo, entre 94 e 98, não foi tão bem sucedido: FHC e seu vice (ainda que pernambucano) eram de posição antagônica à do governo estadual.
Brasil X Argentina, Rio X São Paulo, Bahia X Pernambuco, essas rivalidades ou preconceitos quanto ao local de origem, pra mim tão ilógicos quanto o preconceito de cor, existem em ambos os lados do X, em boa parte alimentados pelos respectivos governos, no intuito de destacar seus países/estados e em outra parte, também, pela imprensa. Mas, como diz Arnaldo Antunes, “nenhuma pátria me pariu” e eu fico com Gilberto Freyre, Jorge Amado e vários outros que, espero, sejam a maioria.
* Pernambuco fogo alto, Bahia banho-maria (Antônio Risério)
Diferenças entre a Bahia e Pernambuco sempre foram apontadas pelos mais diversos tipos de observador, de eruditos a iletrados.
Por conta, inclusive, de antiga rivalidade entre os dois Estados.
Rivalidade, aliás, que chegou a provocar uma caracterização baiana do Recife que, se é falsa e ridícula no conteúdo, é brilhante, digna do James Joyce do Finnegans, do ponto de vista formal: “Recífilis, a Venérea brasileira, capital de Per nambucocos”.
Rivalidades e preconceitos à parte (coisas que, de resto, nunca foram alimentadas por personalidades como Gilberto Freyre e Jorge Amado), essas diferenças entre baianos e pernambucanos foram formuladas de formas diversas e atribuídas a razões igualmente várias. O “gênio do lugar”, a “alma do povo”, o “caráter” de cada região se manifestariam, por exemplo, na virilidade pernambucana e na malemolência baiana. João Cabral achava enjoativos o jeitão relaxado, a ausência de rigor, a excessiva doçura das coisas criadas na Bahia. Era todo pelo corte seco, pelo golpe preciso.
Muitos baianos, por sua vez, não gostavam da aspereza pernambucana. De sua natureza agreste. Pernambucano não se desarmaria nem para um abraço – viria sempre com uma faca na frente.
É certo que tais observações subjetivas ou preconceituosas remetem a uma base real. São traços culturais distintivos que podem ser examinados de uma perspectiva histórico-antropológica.
Um amigo meu (não vou citar nomes neste artigo) observa, por exemplo, que mesmo conspirações e revoluções, que aconteceram nas histórias da Bahia e de Pernambuco, apresentam caráter humanamente distinto. Bastaria comparar, diz ele, estilos e princípios da Confederação do Equador e da Revolução dos Alfaiates, por exemplo. Mas não é por esse terreno que vou enveredar.
Quero falar do momento presente. De como Pernambuco e Bahia estão vivendo, hoje, situações e sensações radicalmente dessemelhantes.
Diferenças que parecem ter sido antecipadas, aliás, pelas produções artísticas desses Estados. Não faz muito tempo, outro amigo sublinhou o contraste que via entre os cinemas da Bahia e de Pernambuco. Salvo raras exceções, inquietude, criatividade e ousadia no cinema pernambucano (num caminho que desembocaria em Aspirinas & Urubus), mas autocomplacência, redundância e narcisismo provinciano nos filmes baianos. Na música, a situação não seria diversa. Apesar da imponência da percussão do Olodum, da criatividade de Carlinhos Brown e Gerônimo, a Bahia era o reino da “axé music”, enquanto Pernambuco, incorporando a Tropicália, ousava no “mangue beat”.
Hoje, essa diferença parece espalhada por todas as áreas do pensar, do criar e do fazer. No meio do empresariado, entre os políticos e administradores públicos, no ambiente universitário, na área mais ampla da produção intelectual. No campo intelectual, a Bahia, que sempre participou intensamente dos grandes debates e reflexões que se desenharam no País – dos tempos de Vieira aos dias de Glauber, passando pelo Visconde de Cairu, por Ruy Barbosa, Guerreiro Ramos, Anísio Teixeira e Nestor Duarte –, parece hoje paralisada, incapaz de produzir pensamentos e idéias.
Mas, como disse, os intelectuais não estão sós nas águas estagnadas da mentalidade rotineira. Ainda um outro amigo me sugere: compare as associações comerciais e federações de indústrias da Bahia e de Pernambuco. A diferença é brutal: lá, projetos e propostas; aqui, o vazio. A Bahia parece reduzida à espera da fábrica da Toyota. No campo político, a mesmíssima coisa. Até os antigos quadros da direita pernambucana são superiores a tudo que existe no espaço partidário baiano.
Na Bahia, nem a maré transformadora, que se poderia ter armado com a derrota do carlismo, aconteceu.
Em Pernambuco, a chegada de Eduardo Campos avivou ainda mais o pedaço. Na Bahia, nada. Não há tesão na transformação. No novo. Ao contrário, reinam a flacidez e o ceticismo. Em suma: Pernambuco, hoje, é sinônimo de entusiasmo e inquietude – a Bahia, de mormaço e mesmice. Continuam em vigor aqui, acima de tudo, a mediocridade e o clientelismo. E, o que é pior: anda todo mundo muito satisfeito consigo mesmo e com o que vê.
Durante minha infância e adolescência, li, ou escutei, vários depoimentos muito parecidos com esse de Risério, apenas trocando baiano por pernambucano, Bahia por Pernambuco. Sempre tendemos a ser mais críticos com o lugar em que vivemos do que com os demais. O que ele chama de “narcisismo provinciano” do baiano, por exemplo, em geral era visto pelo pernambucano como uma característica positiva do povo baiano, de dar valor a sua terra (talvez a recíproca, nesse caso, também ocorra, de lá pra cá, pra mostrar que, como na física, tudo depende do referencial de onde observamos as coisas). Esse valor à terra era algo que, pelo menos nessa época, não parecia existir por aqui e esse propalado orgulho do pernambucano, se existia, era coisa dos mais velhos, que destacavam os fatos do passado e ignoravam a situação vigente.
O período da ditadura militar, que presenciei em sua maior parte, coincidiu com uma época de total marasmo cultural e estagnação econômica em Pernambuco, essa última atribuída, em parte, à discriminação do governo dos militares, por conta de Recife e Pernambuco, por ocasião do golpe, terem como governantes políticos de esquerda. Todo esse vazio, imagino, resultou numa baixa auto-estima do povo daqui.
Depois de Luiz Gonzaga e antes de Chico Science, ou depois do golpe e antes da volta das eleições diretas, não surgiram grandes poetas nem músicos de grande destaque nacional oriundos deste estado. Aliás, o manguebeat surgiu justamente como uma resposta a esse vazio e marasmo reinantes ou a “uma depressão crônica que paralisa os cidadãos", como disse Fred 04, uma das cabeças do movimento (o que lembra o comentário de Risério, de que a Bahia "parece hoje paralisada, incapaz de produzir pensamentos e idéias”).
Após tão acentuado declínio, sem ter mais pra onde cair, o momento presente a que ele se refere, em Pernambuco, só poderia mesmo ser de subida. Quanto ao também citado êxito do atual governador Eduardo Campos, ressalte-se que ele é afinado com o governo federal, o que, de certa forma, tem ajudado. Seu correligionário e avô Miguel Arraes, por exemplo, em seu terceiro governo, entre 94 e 98, não foi tão bem sucedido: FHC e seu vice (ainda que pernambucano) eram de posição antagônica à do governo estadual.
Brasil X Argentina, Rio X São Paulo, Bahia X Pernambuco, essas rivalidades ou preconceitos quanto ao local de origem, pra mim tão ilógicos quanto o preconceito de cor, existem em ambos os lados do X, em boa parte alimentados pelos respectivos governos, no intuito de destacar seus países/estados e em outra parte, também, pela imprensa. Mas, como diz Arnaldo Antunes, “nenhuma pátria me pariu” e eu fico com Gilberto Freyre, Jorge Amado e vários outros que, espero, sejam a maioria.
* Pernambuco fogo alto, Bahia banho-maria (Antônio Risério)
Diferenças entre a Bahia e Pernambuco sempre foram apontadas pelos mais diversos tipos de observador, de eruditos a iletrados.
Por conta, inclusive, de antiga rivalidade entre os dois Estados.
Rivalidade, aliás, que chegou a provocar uma caracterização baiana do Recife que, se é falsa e ridícula no conteúdo, é brilhante, digna do James Joyce do Finnegans, do ponto de vista formal: “Recífilis, a Venérea brasileira, capital de Per nambucocos”.
Rivalidades e preconceitos à parte (coisas que, de resto, nunca foram alimentadas por personalidades como Gilberto Freyre e Jorge Amado), essas diferenças entre baianos e pernambucanos foram formuladas de formas diversas e atribuídas a razões igualmente várias. O “gênio do lugar”, a “alma do povo”, o “caráter” de cada região se manifestariam, por exemplo, na virilidade pernambucana e na malemolência baiana. João Cabral achava enjoativos o jeitão relaxado, a ausência de rigor, a excessiva doçura das coisas criadas na Bahia. Era todo pelo corte seco, pelo golpe preciso.
Muitos baianos, por sua vez, não gostavam da aspereza pernambucana. De sua natureza agreste. Pernambucano não se desarmaria nem para um abraço – viria sempre com uma faca na frente.
É certo que tais observações subjetivas ou preconceituosas remetem a uma base real. São traços culturais distintivos que podem ser examinados de uma perspectiva histórico-antropológica.
Um amigo meu (não vou citar nomes neste artigo) observa, por exemplo, que mesmo conspirações e revoluções, que aconteceram nas histórias da Bahia e de Pernambuco, apresentam caráter humanamente distinto. Bastaria comparar, diz ele, estilos e princípios da Confederação do Equador e da Revolução dos Alfaiates, por exemplo. Mas não é por esse terreno que vou enveredar.
Quero falar do momento presente. De como Pernambuco e Bahia estão vivendo, hoje, situações e sensações radicalmente dessemelhantes.
Diferenças que parecem ter sido antecipadas, aliás, pelas produções artísticas desses Estados. Não faz muito tempo, outro amigo sublinhou o contraste que via entre os cinemas da Bahia e de Pernambuco. Salvo raras exceções, inquietude, criatividade e ousadia no cinema pernambucano (num caminho que desembocaria em Aspirinas & Urubus), mas autocomplacência, redundância e narcisismo provinciano nos filmes baianos. Na música, a situação não seria diversa. Apesar da imponência da percussão do Olodum, da criatividade de Carlinhos Brown e Gerônimo, a Bahia era o reino da “axé music”, enquanto Pernambuco, incorporando a Tropicália, ousava no “mangue beat”.
Hoje, essa diferença parece espalhada por todas as áreas do pensar, do criar e do fazer. No meio do empresariado, entre os políticos e administradores públicos, no ambiente universitário, na área mais ampla da produção intelectual. No campo intelectual, a Bahia, que sempre participou intensamente dos grandes debates e reflexões que se desenharam no País – dos tempos de Vieira aos dias de Glauber, passando pelo Visconde de Cairu, por Ruy Barbosa, Guerreiro Ramos, Anísio Teixeira e Nestor Duarte –, parece hoje paralisada, incapaz de produzir pensamentos e idéias.
Mas, como disse, os intelectuais não estão sós nas águas estagnadas da mentalidade rotineira. Ainda um outro amigo me sugere: compare as associações comerciais e federações de indústrias da Bahia e de Pernambuco. A diferença é brutal: lá, projetos e propostas; aqui, o vazio. A Bahia parece reduzida à espera da fábrica da Toyota. No campo político, a mesmíssima coisa. Até os antigos quadros da direita pernambucana são superiores a tudo que existe no espaço partidário baiano.
Na Bahia, nem a maré transformadora, que se poderia ter armado com a derrota do carlismo, aconteceu.
Em Pernambuco, a chegada de Eduardo Campos avivou ainda mais o pedaço. Na Bahia, nada. Não há tesão na transformação. No novo. Ao contrário, reinam a flacidez e o ceticismo. Em suma: Pernambuco, hoje, é sinônimo de entusiasmo e inquietude – a Bahia, de mormaço e mesmice. Continuam em vigor aqui, acima de tudo, a mediocridade e o clientelismo. E, o que é pior: anda todo mundo muito satisfeito consigo mesmo e com o que vê.
12.5.08
Entre nessa festa
Há algumas semanas, escrevi sobre um filme de perfil jovem, “Across the universe”, feito para agradar, sobretudo, mas não apenas, aos adolescentes. Desta vez, para falar de outro que, se não é musical no sentido estrito, tem a música como principal destaque, dirijo-me aos adolescentes de cabelos brancos, como o roteirista Luiz Bolognesi descreveu seu público-alvo, a turma da terceira idade, mas não apenas a eles. Os da segunda também são bem vindos, pois este senhor filme é de primeira.
"Chega de Saudade", de Laís Bodanzky, tem como único cenário um salão de baile numa noite paulistana, ambiente, em geral, freqüentado por pessoas de mais idade. Em vez de criar uma trama que nos permita conhecer os personagens a fundo, o filme tem como interesse principal mostrar situações comuns vivenciadas nesses espaços, bem como retratar o perfil de seus freqüentadores: casais, amantes, carentes, galanteadores, independentes, sonhadores, solteiros à procura de parceiros ou apenas de diversão. De suas vidas, sabemos apenas o que se passa no baile, em uma única noite: o filme começa na entrada e termina na saída da festa. A mensagem que fica é: chega de saudade, vamos entrar na dança e aproveitar a vida.
Apesar do título e da época de seu lançamento remeterem à bossa nova e seu cinqüentenário, a trama de "Chega de Saudade" passaria toda ao largo desse tema, não fosse a execução, ainda que ao som de orquestra de baile, da canção homônima, durante os créditos finais. Ao contrário da sutileza e discrição características das canções bossa-novistas, as diversas músicas deste filme - por sinal presentes em todas as cenas - são de tirar o pé do chão, ainda que devagarinho. Algumas são interpretadas por Elza Soares, que atua como cantora do baile, com sua voz marcante.
É impossível não cantarolar baixinho várias delas, de diferentes épocas e estilos, mas tendo em comum o fato de serem bastante tocadas nos bailes da vida, em qualquer lugar do país: "Não deixe o samba morrer / Não deixe o samba acabar / O morro foi feito de samba / De samba pra a gente sambar", "Vem logo / Vem curar teu nego / Que chegou de porre / Lá da boemia", "Você não vale nada, mas eu gosto de você / Tudo o que eu queria era saber por quê", "Eu quero entrar na folia, meu bem / Você sabe lá o que é isso?", "Já tive mulheres / De todas as cores / De várias idades / De muitos amores", "Neste corpo meigo e tão pequeno / Há uma espécie de veneno / Tão gostoso de provar", "Nada do que foi será / De novo do jeito que já foi um dia / Tudo passa / Tudo sempre passará"...
A diretora e o roteirista do filme são os mesmos de "Bicho de Sete Cabeças", também muito bom, mas de outro estilo, chocante, tenso e angustiante. O elenco é formado por atores experientes e consagrados: Leonardo Villar, Tônia Carrero, Betty Faria, Cássia Kiss e Stepan Nercessian, entre outros. De atores jovens, apenas Paulo Vilhena, que faz o papel do operador de som do baile e Maria Flor, como sua namorada.
"Chega de Saudade", de Laís Bodanzky, tem como único cenário um salão de baile numa noite paulistana, ambiente, em geral, freqüentado por pessoas de mais idade. Em vez de criar uma trama que nos permita conhecer os personagens a fundo, o filme tem como interesse principal mostrar situações comuns vivenciadas nesses espaços, bem como retratar o perfil de seus freqüentadores: casais, amantes, carentes, galanteadores, independentes, sonhadores, solteiros à procura de parceiros ou apenas de diversão. De suas vidas, sabemos apenas o que se passa no baile, em uma única noite: o filme começa na entrada e termina na saída da festa. A mensagem que fica é: chega de saudade, vamos entrar na dança e aproveitar a vida.
Apesar do título e da época de seu lançamento remeterem à bossa nova e seu cinqüentenário, a trama de "Chega de Saudade" passaria toda ao largo desse tema, não fosse a execução, ainda que ao som de orquestra de baile, da canção homônima, durante os créditos finais. Ao contrário da sutileza e discrição características das canções bossa-novistas, as diversas músicas deste filme - por sinal presentes em todas as cenas - são de tirar o pé do chão, ainda que devagarinho. Algumas são interpretadas por Elza Soares, que atua como cantora do baile, com sua voz marcante.
É impossível não cantarolar baixinho várias delas, de diferentes épocas e estilos, mas tendo em comum o fato de serem bastante tocadas nos bailes da vida, em qualquer lugar do país: "Não deixe o samba morrer / Não deixe o samba acabar / O morro foi feito de samba / De samba pra a gente sambar", "Vem logo / Vem curar teu nego / Que chegou de porre / Lá da boemia", "Você não vale nada, mas eu gosto de você / Tudo o que eu queria era saber por quê", "Eu quero entrar na folia, meu bem / Você sabe lá o que é isso?", "Já tive mulheres / De todas as cores / De várias idades / De muitos amores", "Neste corpo meigo e tão pequeno / Há uma espécie de veneno / Tão gostoso de provar", "Nada do que foi será / De novo do jeito que já foi um dia / Tudo passa / Tudo sempre passará"...
A diretora e o roteirista do filme são os mesmos de "Bicho de Sete Cabeças", também muito bom, mas de outro estilo, chocante, tenso e angustiante. O elenco é formado por atores experientes e consagrados: Leonardo Villar, Tônia Carrero, Betty Faria, Cássia Kiss e Stepan Nercessian, entre outros. De atores jovens, apenas Paulo Vilhena, que faz o papel do operador de som do baile e Maria Flor, como sua namorada.
26.4.08
Bossa Nova: da cidade à eternidade
Na década de 50 do século passado, o Rio ainda disputava com São Paulo o título de maior cidade do Brasil, era a capital federal e um local de grande efervescência cultural. O país vivia um período de certa forma tranqüilo, de otimismo. Juscelino Kubitschek era o presidente, eleito pelo povo e ainda não havia lugar para as canções engajadas, que surgiriam poucos anos depois, no período da ditadura militar.
Foi nesse cenário, refletido na música, que surgiu a Bossa Nova, sem fazer barulho, em reuniões informais entre amigos, na zona sul carioca, de onde se propagou pelos meios universitários que, se por um lado sempre foram associados a uma postura de questionamentos e protestos (o que, ao contrário de Copacabana e Ipanema, não era a praia dos adeptos do movimento), por outro, sempre se mostraram abertos a novas idéias. Ainda não havia os Beatles (nem Rita Lee) e toda a sua influência mundial que, por aqui, deu origem à Jovem Guarda.
As canções falavam, sobretudo, de amor, felicidade, tristeza e tinham uma forma leve, contida, mesmo ao exprimirem sentimentos incontidos, manifestados em expressões como abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim; desesperadamente, eu sei que vou te amar; é impossível ser feliz sozinho ou tristeza não tem fim, felicidade, sim: os desafinados também têm um coração. A esse novo jeito de cantar, compor e tocar, tudo se encaixando perfeitamente, o compositor e pesquisador musical Luiz Tatit chamou de triagem estética, uma espécie de corte de excessos, o que tentarei analisar, metaforicamente, a seguir.
É como se extraíssemos o mínimo múltiplo comum entre letra, música, interpretação e arranjo, obtendo como resultado canções leves, que pediam arranjos enxutos, interpretações discretas, vozes suaves, as quais contrastavam com a empostação de voz dos cantores de rádio das décadas anteriores, de prestígio diretamente proporcional ao vozeirão. A partir daí, rompeu-se a barreira do som, que se propagou em um espectro de vozes diversificadas, como o brilhante do brilhante Jobim, que, partindo a luz, explode em sete cores. Uma mudança de estação que nos levou do rei da voz à voz do rei, provocando um enorme impacto, cuja noção exata quem nasceu com tudo isto já consolidado jamais terá.
As primeiras gravações bossa-novistas puderam ser escutadas em dois discos lançados em 1958: “Canção do amor demais”, de Elizeth Cardoso, com canções de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, que reproduziu, pela primeira vez, a diferente batida de violão de João Gilberto, em duas faixas, entre elas “Chega de Saudade” e um compacto simples do próprio João, com “Bim Bom”, música de sua autoria e, novamente, “Chega de saudade”.
A partir daí, o bolo cresceu e multiplicou-se, numa versão mais doce do bolo do crescimento que nos foi receitado alguns anos depois, à época do milagre econômico da ditadura, com a diferença de que os santos da Bossa Nova saíram de casa e fizeram milagre. Da primeira vez, era a cidade, da segunda, o cais e a eternidade: os maiores expoentes do movimento, Tom Jobim e João Gilberto, logo despertaram a atenção de vários países pelo mundo afora, atenção esta catalisada pela histórica apresentação no Carnegie Hall, em 1962, em Nova York, que foi, ao mesmo tempo, o ápice do reconhecimento e a base da disseminação para o resto do mundo.
A Bossa Nova foi o gênero musical brasileiro (com o perdão da palavra ao historiador e pesquisador musical José Ramos Tinhorão, que não a via como tal, mas como um movimento ou uma maneira de tocar) que alcançou maior sucesso internacional, com várias canções gravadas por músicos de outros países. “Garota de Ipanema” e “Chega de Saudade”, ambas de Tom e Vinícius, estão entre as músicas mais executadas e gravadas em todo o mundo. Da turma bossa-nova, também faziam parte Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Sylvia Telles, Roberto Menescal, Nara Leão e vários outros artistas.
É o que sei contar.
Atualmente, João Gilberto está em disputa judicial, iniciada há anos, com a gravadora EMI, que remasterizou, segundo ele sem autorização e com alteração, seus quatro primeiros discos - três LP`s e um compacto – transformados em uma coletânea (“O mito”) a que ele, com sua sensibilidade extremada, nas palavras do juiz de primeira instância, qualificou como mutilação de sua obra, pela mudança na capa, na seqüência das faixas, no corte de algumas músicas e mesmo em alterações no som. De cócoras com os sapos da minha terra, informo os dados para consulta ao processo na página do STJ: Número de Registro: 2006/0104444-2; Número do Processo: REsp 879680; UF:RJ.
Como parte das comemorações dos 50 anos da Bossa Nova, completados em 2008, João Gilberto volta ao Carnegie Hall, em junho deste ano, para depois se apresentar em algumas capitais brasileiras: dias 14 e 15 de agosto em São Paulo, 24 de agosto no Rio e 5 de setembro em Salvador. Para não perder a piada, deixo um pedido a quem vai ou pretende ir: se vai, não beba; se beber, não vaie (não vale). Por fim, como consegui chegar ao final do texto sem fazer nenhum trocadilho com o “tom” de Jobim, achei-me com crédito para encerrá-lo assim, com uma frase feita num lugar comum: o resto é mar, é tudo que não sei contar.
Foi nesse cenário, refletido na música, que surgiu a Bossa Nova, sem fazer barulho, em reuniões informais entre amigos, na zona sul carioca, de onde se propagou pelos meios universitários que, se por um lado sempre foram associados a uma postura de questionamentos e protestos (o que, ao contrário de Copacabana e Ipanema, não era a praia dos adeptos do movimento), por outro, sempre se mostraram abertos a novas idéias. Ainda não havia os Beatles (nem Rita Lee) e toda a sua influência mundial que, por aqui, deu origem à Jovem Guarda.
As canções falavam, sobretudo, de amor, felicidade, tristeza e tinham uma forma leve, contida, mesmo ao exprimirem sentimentos incontidos, manifestados em expressões como abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim; desesperadamente, eu sei que vou te amar; é impossível ser feliz sozinho ou tristeza não tem fim, felicidade, sim: os desafinados também têm um coração. A esse novo jeito de cantar, compor e tocar, tudo se encaixando perfeitamente, o compositor e pesquisador musical Luiz Tatit chamou de triagem estética, uma espécie de corte de excessos, o que tentarei analisar, metaforicamente, a seguir.
É como se extraíssemos o mínimo múltiplo comum entre letra, música, interpretação e arranjo, obtendo como resultado canções leves, que pediam arranjos enxutos, interpretações discretas, vozes suaves, as quais contrastavam com a empostação de voz dos cantores de rádio das décadas anteriores, de prestígio diretamente proporcional ao vozeirão. A partir daí, rompeu-se a barreira do som, que se propagou em um espectro de vozes diversificadas, como o brilhante do brilhante Jobim, que, partindo a luz, explode em sete cores. Uma mudança de estação que nos levou do rei da voz à voz do rei, provocando um enorme impacto, cuja noção exata quem nasceu com tudo isto já consolidado jamais terá.
As primeiras gravações bossa-novistas puderam ser escutadas em dois discos lançados em 1958: “Canção do amor demais”, de Elizeth Cardoso, com canções de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, que reproduziu, pela primeira vez, a diferente batida de violão de João Gilberto, em duas faixas, entre elas “Chega de Saudade” e um compacto simples do próprio João, com “Bim Bom”, música de sua autoria e, novamente, “Chega de saudade”.
A partir daí, o bolo cresceu e multiplicou-se, numa versão mais doce do bolo do crescimento que nos foi receitado alguns anos depois, à época do milagre econômico da ditadura, com a diferença de que os santos da Bossa Nova saíram de casa e fizeram milagre. Da primeira vez, era a cidade, da segunda, o cais e a eternidade: os maiores expoentes do movimento, Tom Jobim e João Gilberto, logo despertaram a atenção de vários países pelo mundo afora, atenção esta catalisada pela histórica apresentação no Carnegie Hall, em 1962, em Nova York, que foi, ao mesmo tempo, o ápice do reconhecimento e a base da disseminação para o resto do mundo.
A Bossa Nova foi o gênero musical brasileiro (com o perdão da palavra ao historiador e pesquisador musical José Ramos Tinhorão, que não a via como tal, mas como um movimento ou uma maneira de tocar) que alcançou maior sucesso internacional, com várias canções gravadas por músicos de outros países. “Garota de Ipanema” e “Chega de Saudade”, ambas de Tom e Vinícius, estão entre as músicas mais executadas e gravadas em todo o mundo. Da turma bossa-nova, também faziam parte Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Sylvia Telles, Roberto Menescal, Nara Leão e vários outros artistas.
É o que sei contar.
Atualmente, João Gilberto está em disputa judicial, iniciada há anos, com a gravadora EMI, que remasterizou, segundo ele sem autorização e com alteração, seus quatro primeiros discos - três LP`s e um compacto – transformados em uma coletânea (“O mito”) a que ele, com sua sensibilidade extremada, nas palavras do juiz de primeira instância, qualificou como mutilação de sua obra, pela mudança na capa, na seqüência das faixas, no corte de algumas músicas e mesmo em alterações no som. De cócoras com os sapos da minha terra, informo os dados para consulta ao processo na página do STJ: Número de Registro: 2006/0104444-2; Número do Processo: REsp 879680; UF:RJ.
Como parte das comemorações dos 50 anos da Bossa Nova, completados em 2008, João Gilberto volta ao Carnegie Hall, em junho deste ano, para depois se apresentar em algumas capitais brasileiras: dias 14 e 15 de agosto em São Paulo, 24 de agosto no Rio e 5 de setembro em Salvador. Para não perder a piada, deixo um pedido a quem vai ou pretende ir: se vai, não beba; se beber, não vaie (não vale). Por fim, como consegui chegar ao final do texto sem fazer nenhum trocadilho com o “tom” de Jobim, achei-me com crédito para encerrá-lo assim, com uma frase feita num lugar comum: o resto é mar, é tudo que não sei contar.
14.4.08
Leve - Sensível - Divertido
Se você é do tipo que não gosta de Sessão da Tarde, passe para o próximo texto. A vocês dois que continuam lendo, recomendo o musical “Across the universe”, um filme leve, sensível e divertido, algo como se uma versão de “Hair” fosse exibida na Sessão da Tarde, mais pueril, menos rebelde, como se os cabelos hippies, de “Hair”, passassem aos tempos da brilhantina, de “Grease”. Uma bonita história de amor e amizade entre jovens - músicos e estudantes - tendo ao fundo a guerra do Vietnã e a luta pela paz.
A guerra do Vietnã, por sinal, é um tema já bem explorado em produções cinematográficas dos mais variados estilos, pontos de vista e gostos, de “Rambo” a “Amargo regresso”. Também girando em torno do tema, o supracitado musical “Hair”, que já fora sucesso na Broadway e em teatros de todo o mundo, foi adaptado ao cinema pelo diretor Milos Forman, em 1979, tornando-se um grande sucesso de público e crítica, bem como referência de um musical de qualidade. “Let the sunshine in”, uma das canções da peça e do filme, virou um dos hinos do movimento hippie.
“Across the universe” conta a história de jovens que, vindos de diversos locais, por motivos idem, seguem para Nova York, onde se conhecem, experimentam alucinógenos e juntam-se a movimentos pacifistas, tudo tratado com profundidade de programa vespertino. Mas, o filme tem como diferencial as canções dos Beatles, nas quais a trama e também os nomes dos personagens são inspirados. Jude, um garoto de Liverpool, faz amizade com Max e apaixona-se por sua irmã Lucy (só aí, ao menos duas músicas garantidas para a trilha sonora). Max é convocado para a guerra e o casal segue a vida cantando, entre encontros e desencontros, junto aos amigos – de nomes também extraídos de músicas dos Beatles - Prudence, Jo-Jo e Sadie (os dois últimos, personagens inspirados em Jimi Hendrix e Janis Joplin).
No Brasil, o musical estreou durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2007, passando, em seguida, para as salas de cinema daquela cidade. No Oscar 2008, foi indicado para o prêmio de melhor figurino. A diretora, Julie Taymor, é a mesma de Frida e sua experiência em musicais vem de peças da Broadway, entre elas “O Rei Leão”, em cartaz há mais de dez anos e que também foi sucesso no cinema, em desenho animado.
Os melhores momentos do filme são as cenas musicais, algumas bem criativas. As interpretações dos próprios atores para as canções, todas legendadas, surpreendem, bem como alguns arranjos, diferentes dos originais e, por isso mesmo, originais, como em “I wanna hold your hand”, em ritmo mais lento e “Let it be”, como música gospel. As letras das canções encaixam-se bem ao enredo (ou o enredo às canções) e a seus personagens, como em “Dear Prudence” e “Hey Jude”. Tem ainda: “Because”, “Something”, “All you need is love”, “Strawberry fields”, “Revolution”, “Across the universe” e muito mais. Os cantores Bono Vox e Joe Cocker têm participações especiais no filme e também na trilha sonora, disponível em CD (em “I am the walrus” e “Come together”, respectivamente).
Se você é fã dos Beatles e de musicais, libere seu lado meia-entrada, vá sem medo. E não se esqueça de recomendá-lo aos que passaram para o próximo texto.
A guerra do Vietnã, por sinal, é um tema já bem explorado em produções cinematográficas dos mais variados estilos, pontos de vista e gostos, de “Rambo” a “Amargo regresso”. Também girando em torno do tema, o supracitado musical “Hair”, que já fora sucesso na Broadway e em teatros de todo o mundo, foi adaptado ao cinema pelo diretor Milos Forman, em 1979, tornando-se um grande sucesso de público e crítica, bem como referência de um musical de qualidade. “Let the sunshine in”, uma das canções da peça e do filme, virou um dos hinos do movimento hippie.
“Across the universe” conta a história de jovens que, vindos de diversos locais, por motivos idem, seguem para Nova York, onde se conhecem, experimentam alucinógenos e juntam-se a movimentos pacifistas, tudo tratado com profundidade de programa vespertino. Mas, o filme tem como diferencial as canções dos Beatles, nas quais a trama e também os nomes dos personagens são inspirados. Jude, um garoto de Liverpool, faz amizade com Max e apaixona-se por sua irmã Lucy (só aí, ao menos duas músicas garantidas para a trilha sonora). Max é convocado para a guerra e o casal segue a vida cantando, entre encontros e desencontros, junto aos amigos – de nomes também extraídos de músicas dos Beatles - Prudence, Jo-Jo e Sadie (os dois últimos, personagens inspirados em Jimi Hendrix e Janis Joplin).
No Brasil, o musical estreou durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2007, passando, em seguida, para as salas de cinema daquela cidade. No Oscar 2008, foi indicado para o prêmio de melhor figurino. A diretora, Julie Taymor, é a mesma de Frida e sua experiência em musicais vem de peças da Broadway, entre elas “O Rei Leão”, em cartaz há mais de dez anos e que também foi sucesso no cinema, em desenho animado.
Os melhores momentos do filme são as cenas musicais, algumas bem criativas. As interpretações dos próprios atores para as canções, todas legendadas, surpreendem, bem como alguns arranjos, diferentes dos originais e, por isso mesmo, originais, como em “I wanna hold your hand”, em ritmo mais lento e “Let it be”, como música gospel. As letras das canções encaixam-se bem ao enredo (ou o enredo às canções) e a seus personagens, como em “Dear Prudence” e “Hey Jude”. Tem ainda: “Because”, “Something”, “All you need is love”, “Strawberry fields”, “Revolution”, “Across the universe” e muito mais. Os cantores Bono Vox e Joe Cocker têm participações especiais no filme e também na trilha sonora, disponível em CD (em “I am the walrus” e “Come together”, respectivamente).
Se você é fã dos Beatles e de musicais, libere seu lado meia-entrada, vá sem medo. E não se esqueça de recomendá-lo aos que passaram para o próximo texto.
7.4.08
Outra vez outra vez
Em setembro do ano passado, escrevi, neste blog, um texto (“Uma vez outra vez”) sobre a compositora Isolda, seu irmão Milton Carlos e sua canção “Outra vez”, a qual afirmei, na ocasião, ter sido feita dela pra ele, que acabara de falecer. Tal texto recebeu um comentário afirmando que a versão do livro "Roberto Carlos em Detalhes" sobre essa música era diferente da que eu relatava e perguntando qual das duas versões era a correta (confirmei que o livro realmente afirma, em detalhes, que a canção teria sido feita para um ex-namorado da compositora).
Essa pergunta ficou sem resposta (pro leitor e pra mim mesmo) por um bom tempo, pois o que eu relatava no texto era baseado apenas em informações que circulavam na época em que a música foi gravada por Roberto Carlos, quando eu ainda era criança, as quais, portanto, dificilmente poderiam ser comprovadas. Tanto que, logo que comecei a escrever o texto e, portanto, antes mesmo da indagação do leitor, eu já vinha tentando encontrar algum artigo ou informação confiável que ratificasse a versão por mim conhecida, sem êxito. Confiei, então, apenas na minha memória dos fatos e num comentário que encontrei no site oficial de Isolda - o qual consultei e citei ao escrever o texto – que, se não confirmava, era um indício de que a canção poderia, realmente, ter sido feita para seu irmão.
Mais adiante, quando soube dessa outra versão publicada no livro de Paulo César Araújo, por meio do comentário do leitor ao que escrevi, até passei a achar que poderia mesmo ter me equivocado, afinal não deveria comparar a intensidade da pesquisa feita pelo autor do livro com observações captadas por uma criança, observadora, sobretudo em assuntos musicais, mas criança. A única maneira de me certificar, então, seria encontrar depoimentos ou comentários da própria Isolda, em algum site, mas consegui algo ainda melhor...
Após mandar mensagem para a compositora, pedindo que esclarecesse a questão e prontificando-me a corrigir a informação caso estivesse equivocado, não esperando resposta, tive a grata surpresa de receber sua ilustre e gentil visita neste blog, comentando exatamente esse texto que escrevi sobre ela, bem como ratificando minha versão dos fatos, algo, pra mim, gratificante, enriquecedor e de valor pessoal e musical histórico.
Além de se mostrar esclarecedor em relação à música, seu comentário deixa claro que, como Roberto Carlos, ela não está satisfeita nem com o livro nem com seu autor, o que é compreensível, ainda que, do lado de cá do palco, olhando por outro ângulo e baseados apenas nas informações que recebemos, tendamos a ver P. C. Araújo mais como um fã de Roberto do que como um aproveitador.
Isolda ainda reforçou, por e-mail, o comentário em que confirmou a minha versão dos fatos e fez, também, uma ressalva quanto a sua idade: ela nasceu em 1959, não tendo ainda, portanto, 50 anos, ao contrário do que afirmei no texto, baseado em informação obtida em sua página no dicionário Cravo Albin de MPB. Não fosse ela a informante, seria difícil, ainda que louvável, imaginá-la começando a carreira ainda mais cedo. Pra completar, em seu blog, Isolda ainda fez boas e generosas referências e recomendações ao meu, no texto “Um blog que vale a pena”. Muitas emoções...
Essa pergunta ficou sem resposta (pro leitor e pra mim mesmo) por um bom tempo, pois o que eu relatava no texto era baseado apenas em informações que circulavam na época em que a música foi gravada por Roberto Carlos, quando eu ainda era criança, as quais, portanto, dificilmente poderiam ser comprovadas. Tanto que, logo que comecei a escrever o texto e, portanto, antes mesmo da indagação do leitor, eu já vinha tentando encontrar algum artigo ou informação confiável que ratificasse a versão por mim conhecida, sem êxito. Confiei, então, apenas na minha memória dos fatos e num comentário que encontrei no site oficial de Isolda - o qual consultei e citei ao escrever o texto – que, se não confirmava, era um indício de que a canção poderia, realmente, ter sido feita para seu irmão.
Mais adiante, quando soube dessa outra versão publicada no livro de Paulo César Araújo, por meio do comentário do leitor ao que escrevi, até passei a achar que poderia mesmo ter me equivocado, afinal não deveria comparar a intensidade da pesquisa feita pelo autor do livro com observações captadas por uma criança, observadora, sobretudo em assuntos musicais, mas criança. A única maneira de me certificar, então, seria encontrar depoimentos ou comentários da própria Isolda, em algum site, mas consegui algo ainda melhor...
Após mandar mensagem para a compositora, pedindo que esclarecesse a questão e prontificando-me a corrigir a informação caso estivesse equivocado, não esperando resposta, tive a grata surpresa de receber sua ilustre e gentil visita neste blog, comentando exatamente esse texto que escrevi sobre ela, bem como ratificando minha versão dos fatos, algo, pra mim, gratificante, enriquecedor e de valor pessoal e musical histórico.
Além de se mostrar esclarecedor em relação à música, seu comentário deixa claro que, como Roberto Carlos, ela não está satisfeita nem com o livro nem com seu autor, o que é compreensível, ainda que, do lado de cá do palco, olhando por outro ângulo e baseados apenas nas informações que recebemos, tendamos a ver P. C. Araújo mais como um fã de Roberto do que como um aproveitador.
Isolda ainda reforçou, por e-mail, o comentário em que confirmou a minha versão dos fatos e fez, também, uma ressalva quanto a sua idade: ela nasceu em 1959, não tendo ainda, portanto, 50 anos, ao contrário do que afirmei no texto, baseado em informação obtida em sua página no dicionário Cravo Albin de MPB. Não fosse ela a informante, seria difícil, ainda que louvável, imaginá-la começando a carreira ainda mais cedo. Pra completar, em seu blog, Isolda ainda fez boas e generosas referências e recomendações ao meu, no texto “Um blog que vale a pena”. Muitas emoções...
14.3.08
Sobre natural
Quando assistimos a um filme que nos desperta algum sentimento, seja de medo, repulsa, alegria, vontade de rir ou de chorar, sabemos, de antemão, por que estamos nos emocionando, se por algo real, como no caso de um documentário, ou irreal, em caso de ficção. Isso não fica claro em “Jogo de cena”, último filme do conceituado e premiado cineasta Eduardo Coutinho, que não se enquadra facilmente em nenhuma das duas categorias. Não há enredo e as histórias contadas são reais, o que o classificaria como documentário, mas quem conta a história ora é uma atriz, como numa obra de ficção, ora é a própria protagonista. Foi eleito o melhor filme brasileiro de 2007 pela APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte).
O filme começa mostrando o anúncio que o diretor colocou em jornais e outdoors, convocando mulheres com histórias de vida interessantes para contar. Dos depoimentos colhidos, cerca de dez foram aproveitados. Um importante critério de escolha - até mais do que os próprios fatos narrados - foi, segundo Coutinho, a maneira como foram contados e que os tornou mais ou menos interessantes. Tal critério definiu, também, sua opção por entrevistar apenas mulheres, as quais, como ele explica, expõem-se mais e controlam menos seus sentimentos, em comparação com os homens. De fato, percebe-se bem a espontaneidade com que elas se portam diante da câmera, resultando em momentos engraçados e comoventes.
A princípio, temos a impressão de que o jogo é fácil e, arnaldocesarcoelhamente, sua regra é clara e perfeita: histórias de vida narradas por mulheres são intercaladas por interpretações de atrizes conhecidas, que repetem ou complementam seus depoimentos, com a única orientação de não imitar as depoentes, o que, do ponto de vista da atriz, se por um lado proporciona uma maior liberdade de interpretação, por outro tira a referência ou modelo a seguir.
Entre as atrizes, que também contam casos pessoais, estão Marília Pêra, Fernanda Torres e Andréa Beltrão, as quais, após suas participações, falam de suas dificuldades e impressões quanto ao resultado obtido, o que é bem sintetizado por Fernanda Torres, quando ela afirma que a diferença entre interpretar um personagem real e um fictício é que, com este, embora se possa atingir um bom grau de realidade, se você atinge um nível medíocre, pode se manter ali, porque ele é da sua medida, enquanto com aquele a realidade esfrega na sua cara até onde você poderia chegar e não chegou, pois existe alguém acabado na sua frente.
Como o sentimento não necessariamente é proporcional à sua expressão, acontece, às vezes, de o depoimento da atriz nos impactar mais do que o de quem ela representa, o que nos tira um pouco do eixo. À medida que o jogo continua, atrizes desconhecidas passam a se confundir com as demais depoentes, o que nos deixa com um monte de dúvidas sobre quem é a atriz e uma única certeza: a de que o filme brinca com os nossos sentimentos. Todos os casos relatados são bastante densos e, em um deles, saímos do prumo após ouvi-lo duas vezes, recebendo-o como real em ambas, com um impacto emocional ainda mais forte na segunda, ao mesmo tempo em que tomamos consciência de que apenas uma (ou mesmo nenhuma) das depoentes é sua real protagonista.
O cenário dos depoimentos é um teatro vazio, talvez para mostrar que a diferença entre a vida real e a ficção é apenas o palco em que se atua. Também reforçando essa dualidade, ou dubiedade, a entrevistada senta-se no palco, como se fosse uma atriz, mas se posiciona no mesmo ângulo de visão da platéia, como uma pessoa comum ou espectadora.
Os documentários de Eduardo Coutinho partem sempre de idéias bem originais. Em “Peões”, de 2004, por exemplo, ele vai atrás de metalúrgicos que participaram das famosas greves do ABC, entre 1979 e 1980, junto com o atual presidente Lula (uma ótima referência para entendermos melhor seu carisma e a importância de sua eleição para o nosso país, aprovemos ou não seu governo).“Cabra Marcado para Morrer”, seu filme mais conhecido, conta a história de um líder de liga camponesa do interior do nordeste. Iniciado em 1964 e interrompido por conta do golpe militar, só foi retomado e finalizado em 1984.
Em recente debate com o público, após uma exibição de “Jogo de cena”, em São Paulo, o diretor falou da dificuldade de encontrar um título em inglês, ou qualquer outra língua, para o filme. Sua mensagem, porém, é universal e nos faz refletir que o pensamento é o único meio em que nossa impressão se manifesta em sua forma mais pura; que a expressão é apenas o lado visível da impressão, que pode se aproximar bastante dos nossos sentimentos, mas nunca será igual e, às vezes, nem mesmo proporcional; que mesmo o natural é interpretado - o que, segundo o próprio Coutinho, é acentuado pelo “efeito-câmera” - e que, sem a expressão, o silêncio triste parece igual ao silêncio alegre:
apenas silêncio. Apenas parece.
29.2.08
Tirando de letra
“Ai, mina, aperta a minha mão, alá meu only you, no azul da estrela”. Se alguém vier com essa conversa pro seu lado, desconverse, não dê ouvidos, diga que tá ocupado e saia de fininho, a menos que esse alguém complete: “Aliás, bazar da coisa azul, meu only you, é muito mais que o azul de Zanzibar Paracuru, o azul da estrela”. Aí, pode ser caso de internação.
Brincadeiras (nem tão) à parte, a primeira impressão de uma canção, em geral, vem da melodia, mas logo passamos a prestar atenção à letra, a qual podemos entender ou não. É sobre essas letras obscuras ou ininteligíveis, mas nem por isso desinteressantes, que me proponho a discutir a seguir, ressaltando que admiro todos os malucos mencionados, bem como suas músicas, e que criar letras assim não é pra qualquer um, é mais do que simplesmente rimar amor e dor, paixão e coração. É saber o que quer, o que pode essa língua, criar confusões de prosódia, profusão de paródias, outras palavras, como diz um dos membros dessa especial e admirável confraria dos metaforistas aloprados, Caetano Veloso.
Para uma introdução ao tema, Zé Ramalho é uma boa opção. Conhecido por seu estilo apocalíptico, ele é capaz de unir a melodias harmoniosas, letras estranhas, místicas, indecifráveis, fazendo a gente cantá-las como se fossem declarações de amor, como: “Quantos dentes eram tristes, quantos eram solidão, outros eram diferentes, não nasceram para o chão. Claros pêlos evidentes nascerão em cada mão, lívidos e conscientes, pelo vinho e pelo pão” ou “meu treponema não é pálido nem viscoso, os meus gametas se agrupam no meu som”, e por aí vai.
Entre essas letras, que mais parecem de médico, há, mesmo, declarações de amor - e bem incomuns - como: “Apesar de colher as batatas da terra, com essa mulher eu vou até pra guerra”. Isso é proposta que se faça? Garanto que ela não iria querer, ainda que fosse a mesma mulher devorada por Djavan, a qual inspirou o Criador a fazer os dinossauros e devia ser, portanto, um pouco feia. Mas, não se avexe não, baião de dois, deixe de manha, deixe de manha e vamos caetanear o que há de bom. Como diz a esfinge devoradora Djavan (decifra-me ou te devoro), também membro do grupo, “a paixão, puro afã, místico clã de sereia, castelo de areia, ira de tubarão, ilusão, o sol brilha por si”. Noutras palavras, o amor é lindo.
Citando, agora, outro mestre da palavra, Gilberto Gil: “ao poeta cabe fazer com que na lata venha a caber o incabível”*. No caso das canções, outros fatores também entram em jogo na concepção de seus versos, como questões fonéticas, compasso, harmonia entre melodia e letra e tudo o mais que diferencia esta da poesia, que se basta. Assim, deve haver alguma explicação para todas essas letras e o segredo para entendê-las talvez seja não levá-las tão ao pé da letra, ou ainda, a partir delas, criar nossas próprias metáforas, as quais podem coincidir ou não com as do autor.
Com Jorge Benjor e Carlinhos Brown, que também fazem malabarismo com as palavras e não têm papas na língua, essa tática da conclusão pessoal pode não funcionar, simplesmente porque, certas vezes, não conseguimos concluir nada. Quando Brown diz: “Magamalabares Acqua Marã, o parquinho oxáiê. Quem esteve aqui, viu barquinho de gazeta ancorar no mistério”, mistério mesmo é o que ele quer dizer com isso. Nesse caso, não é questão de levar ou não ao pé da letra, pois trata-se de letra sem pé (nem cabeça?), do tipo que W/Brasil, de Benjor, é outro bom exemplar: “Cuidado com o disco voador, tira essa escada daí, essa escada é pra ficar aqui fora, eu vou chamar o síndico”.
Se no final, então, tudo nos sugere uma mistura de letras, lembrando o saudoso Gonzaguinha, eu fico com a pureza da resposta de um popular que, entrevistado na rua por Oswaldo Montenegro, num programa musical de televisão (Letras Brasileiras), ao ser indagado sobre qual a letra que tinha marcado sua vida ou que era mais importante pra ele, tirou de letra e respondeu, literalmente: “a letra B”. No mais, estou indo embora...
P.S.: “Zanzibar”, citada no parágrafo inicial, é de autoria de Armandinho e Fausto Nilo, e foi gravada pelo grupo “A cor do som”.
* Metáfora (Gilberto Gil)
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo-nada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
Brincadeiras (nem tão) à parte, a primeira impressão de uma canção, em geral, vem da melodia, mas logo passamos a prestar atenção à letra, a qual podemos entender ou não. É sobre essas letras obscuras ou ininteligíveis, mas nem por isso desinteressantes, que me proponho a discutir a seguir, ressaltando que admiro todos os malucos mencionados, bem como suas músicas, e que criar letras assim não é pra qualquer um, é mais do que simplesmente rimar amor e dor, paixão e coração. É saber o que quer, o que pode essa língua, criar confusões de prosódia, profusão de paródias, outras palavras, como diz um dos membros dessa especial e admirável confraria dos metaforistas aloprados, Caetano Veloso.
Para uma introdução ao tema, Zé Ramalho é uma boa opção. Conhecido por seu estilo apocalíptico, ele é capaz de unir a melodias harmoniosas, letras estranhas, místicas, indecifráveis, fazendo a gente cantá-las como se fossem declarações de amor, como: “Quantos dentes eram tristes, quantos eram solidão, outros eram diferentes, não nasceram para o chão. Claros pêlos evidentes nascerão em cada mão, lívidos e conscientes, pelo vinho e pelo pão” ou “meu treponema não é pálido nem viscoso, os meus gametas se agrupam no meu som”, e por aí vai.
Entre essas letras, que mais parecem de médico, há, mesmo, declarações de amor - e bem incomuns - como: “Apesar de colher as batatas da terra, com essa mulher eu vou até pra guerra”. Isso é proposta que se faça? Garanto que ela não iria querer, ainda que fosse a mesma mulher devorada por Djavan, a qual inspirou o Criador a fazer os dinossauros e devia ser, portanto, um pouco feia. Mas, não se avexe não, baião de dois, deixe de manha, deixe de manha e vamos caetanear o que há de bom. Como diz a esfinge devoradora Djavan (decifra-me ou te devoro), também membro do grupo, “a paixão, puro afã, místico clã de sereia, castelo de areia, ira de tubarão, ilusão, o sol brilha por si”. Noutras palavras, o amor é lindo.
Citando, agora, outro mestre da palavra, Gilberto Gil: “ao poeta cabe fazer com que na lata venha a caber o incabível”*. No caso das canções, outros fatores também entram em jogo na concepção de seus versos, como questões fonéticas, compasso, harmonia entre melodia e letra e tudo o mais que diferencia esta da poesia, que se basta. Assim, deve haver alguma explicação para todas essas letras e o segredo para entendê-las talvez seja não levá-las tão ao pé da letra, ou ainda, a partir delas, criar nossas próprias metáforas, as quais podem coincidir ou não com as do autor.
Com Jorge Benjor e Carlinhos Brown, que também fazem malabarismo com as palavras e não têm papas na língua, essa tática da conclusão pessoal pode não funcionar, simplesmente porque, certas vezes, não conseguimos concluir nada. Quando Brown diz: “Magamalabares Acqua Marã, o parquinho oxáiê. Quem esteve aqui, viu barquinho de gazeta ancorar no mistério”, mistério mesmo é o que ele quer dizer com isso. Nesse caso, não é questão de levar ou não ao pé da letra, pois trata-se de letra sem pé (nem cabeça?), do tipo que W/Brasil, de Benjor, é outro bom exemplar: “Cuidado com o disco voador, tira essa escada daí, essa escada é pra ficar aqui fora, eu vou chamar o síndico”.
Se no final, então, tudo nos sugere uma mistura de letras, lembrando o saudoso Gonzaguinha, eu fico com a pureza da resposta de um popular que, entrevistado na rua por Oswaldo Montenegro, num programa musical de televisão (Letras Brasileiras), ao ser indagado sobre qual a letra que tinha marcado sua vida ou que era mais importante pra ele, tirou de letra e respondeu, literalmente: “a letra B”. No mais, estou indo embora...
P.S.: “Zanzibar”, citada no parágrafo inicial, é de autoria de Armandinho e Fausto Nilo, e foi gravada pelo grupo “A cor do som”.
* Metáfora (Gilberto Gil)
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo-nada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
14.2.08
Cine qua non
Há cerca de 80 carnavais, como no Bloco do Prazer, um garoto do bairro carioca de Vila Isabel, de voz suave, destoante dos padrões da época, compôs uma canção, a princípio rejeitada por cantores de rádio, mas que viria a tornar-se o maior sucesso do carnaval de então e de pós-então. Ao indagar: “Com que roupa eu vou pro samba que você me convidou?”, o tal garoto, Noel Rosa, nem se deu conta de que mudava, também, a roupagem da música brasileira, mais especificamente do samba, unindo ao ritmo letras de linguagem coloquial, que falavam do cotidiano, ora sérias, ora divertidas, ora tristes, ora irônicas, sempre bem elaboradas e que lhe valeram os apelidos de “filósofo do samba” e “poeta da Vila”.
Como ninguém aprende samba no colégio, Noel logo trocou de roupa, largando a faculdade de medicina para se dedicar apenas à música. Iniciou sua carreira artística no final dos anos 20, quando se aproximou de outros músicos de Vila Isabel e deixou aflorar seu lado boêmio - o qual se refletia em suas composições - ao mesmo tempo em que foi convidado para fazer parte do grupo Bando dos Tangarás, ao lado de João de Barro, o Braguinha, entre outros. Em menos de uma década, fazendo música como quem troca de roupa, compôs mais de 250 canções, só ou em parceria com amigos como Ismael Silva, Cartola e Vadico. Com o último, fez algumas de suas melhores: “Conversa de botequim”, “Feitiço da Vila”, “Pra que mentir” e “Feitio de oração”.
É exatamente esse curto período de tempo, entre o início de sua atuação como cantor e compositor e sua morte prematura aos 26 anos, que é retratado em “Noel - Poeta da Vila”, primeiro longa-metragem de Ricardo Van Steen, com produção musical de Arto Lindsay, lançado em 2007, ano do aniversário de 70 anos da morte do cantor. Além das belas músicas executadas, tem interessantes participações de Supla, interpretando Mário Lago, Wilson das Neves como Papagaio, Flávio Bauraqui como Ismael Silva, Jonathan Haagensen como Cartola, músicos da nova e da velha guarda do samba carioca. Mas o grande destaque é o protagonista Rafael Raposo, estreante em cinema, que só conseguiu o papel pouco antes do início das filmagens e surpreendeu em sua performance.
Baseado no livro “Noel Rosa: uma biografia”, de Carlos Didier e João Máximo, o filme salienta a relação estreita entre suas músicas e as situações e pessoas que o rodeavam, sobretudo as duas principais mulheres de sua vida: a adolescente Lindaura, com quem foi obrigado a casar e quase virou papai Noel, e Ceci, a amante por quem de fato era apaixonado, uma dançarina de cabaré da Lapa (ou uma lapa de dançarina de cabaré), bem interpretada pela atriz Camila Pitanga. Para a primeira, dedicou a canção “Três apitos”, para a segunda, “Pra que mentir”, “A dama do cabaré” e, pouco antes de morrer, “Último desejo” (no filme, cantada por Wilson das Neves, em comovente cena).
Outra mulher importante em sua vida, Aracy de Almeida, injustamente mais conhecida como jurada do programa Sílvio Santos, era uma das principais intérpretes de suas músicas e chamava-o de “a rosa do meu jardim”. Em “Noel – Poeta da Vila”, está muito bem representada pela atriz Carol Bezerra, de bela voz. No site oficial do filme, é possível baixar músicas interpretadas por ela e outros atores-cantores.
Bem sucedido em seu ofício, Noel Rosa logo despertou, também, rivalidades no mundo da música. Travou “batalha”, ou lavagem de roupa-suja, com o compositor Wilson Batista, iniciada devido a divergências quanto ao uso do termo “malandragem”, em que um respondia ao outro através de canções (o primeiro round foi “Lenço no pescoço” x “Rapaz folgado”*). “Feitiço da Vila” e “Palpite infeliz” foram feitas em resposta a “O mocinho da Vila” e “Conversa fiada”, respectivamente. Quando Batista apelou com “Frankestein da Vila”, em alusão a Noel, este, sabiamente, encerrou a disputa, reconhecendo, talvez, no oponente, menos talento para manter o nível do embate.
Se sua vida não foi nenhum mar de rosas, Noel Rosa, em sua curta existência, viveu intensamente e, mesmo com tuberculose, continuou levando uma vida extravagante, cometendo uma espécie de suicídio culposo ou inconsciente. Nesse exagero, na vida desregrada e boêmia, no bem-estar com os amigos e na profusão de amores, o poeta da Vila poderia ser comparado ao poeta do rock: Noel era o Cazuza da década de 30 (ou Cazuza era o Noel dos 80).
No estilo de compor, por sua vez, Noel teve em Chico Buarque um de seus maiores herdeiros musicais, um discípulo que, diga-se de passagem, aprendeu bem a lição e sempre cultuou seus grandes mestres. Trocando em miúdos, não foi à toa que, após ter sofrido ao perder um bom disco de Noel, ficou com o disco do Pixinguinha, sim, e dispensou todo o resto.
*Lenço no Pescoço (Wilson Batista) Meu chapéu do lado Tamanco arrastando Lenço no pescoço Navalha no bolso Eu passo gingando Provoco e desafio Eu tenho orgulho Em ser tão vadio Sei que eles falam Deste meu proceder Eu vejo quem trabalha Andar no miserê Eu sou vadio Porque tive inclinação Eu me lembro, era criança Tirava samba-canção Comigo não Eu quero ver quem tem razão E eles tocam E você canta E eu não dou | Rapaz Folgado (Noel Rosa) Deixa de arrastar o teu tamanco Pois tamanco nunca foi sandália E tira do pescoço o lenço branco Compra sapato e gravata Joga fora esta navalha que te atrapalha Com chapéu do lado deste rata Da polícia quero que escapes Fazendo um samba-canção Já te dei papel e lápis Arranja um amor e um violão Malandro é palavra derrotista Que só serve pra tirar Todo o valor do sambista Proponho ao povo civilizado Não te chamar de malandro E sim de rapaz folgado |
24.1.08
O que foi manchete em 2007
2007 chegou ao final e, ao final, afinal, chegou a tv digital, ou, ao menos, seu sinal, o que, por sinal, já é um bom sinal. Enquanto a maison de Odete foi manchete local, os filhos de Chitãozinho e Xororó foram manchete nacional. O inseparável casal separou-se, afinal. Agora, Sandy e Júnior vai cantar sozinho, enquanto Sandy e Júnior vai tocar só. Bem ou mal, no mais andou tudo igual, como é natural. Aquecimento global, operações da polícia federal, escândalos no planalto central, et cetera e tal. Mas, tá legal, logo chega o carnaval, pra melhorar o astral.
Numa nação que mais parece uma panela de pressão, "Tropa de Elite" passou como um furacão, despertou atenção, provocou reflexão e quem comanda o caldeirão fez do capitão a solução das mazelas da nação. Parte da elite admite seus métodos de ação, deu razão ao capitão, deu ibope ao BOPE, fez das tropas coração. Outra parte da população, de mais sensata opinião, disse que não, que se evite fazer injustiça com a própria mão, que não se acredite na lei de talião, da selva ou do cão e deu outro palpite nessa discussão: dura lex, sed lex, sim. Mais do que isso, não. E não só pra "moleques" ou ladrão de Rolex, mas pra todo cidadão, qualquer infração, roubo ou corrupção e colarinhos de qualquer coloração.
O rei Roberto foi esperto, mas não escapou dos achincalhes ao recolher os exemplares de "Roberto Carlos em Detalhes". Pra alguns, Roberto está certo e de razão está coberto: sua vida não tem que ser um livro aberto, nem precisa ser vista de tão perto. Pra maioria, houve censura, decerto, e Roberto fez jogo sujo com P. C. Araújo, o autor do dito cujo, que ficou boquiaberto, e seu livro, com um futuro incerto, embora, pra encontrá-lo, não precise ser tão esperto.
Não bastasse a frustração na perseguição a Osama, no Afeganistão ou não sei onde estão, antes de vestir o pijama, Bush tem nova razão pra cair da cama e fazer drama: na eleição pra sua sucessão, os seus enfrentarão Obama ou a ex-primeira dama, não terão outra opção. E, fazendo jus a sua fama, ao que o povo reclama e às mudanças que conclama, a começar pelo Alabama, a derrota tá na mão, não tem solução. Bush não relaxa com tanta queixa e desembucha que acha que sua pecha de gostar de rixa é fuxico, pois quando Chavez debocha, ele só estrebucha. O resto é agouro de Al Gore.
Duas falas foram comentadas em todas as salas por aqui: de Juan Carlos, o "por qué no te callas?" e o "relaxa e goza", de Marta Suplicy. Dizem que ambos poderiam usá-las pra falarem entre si: "relaxa e goza" pra Juan Carlos, "por qué no te callas?" pra Suplicy.
O timão, rebaixado no Brasileirão, pra os paulistanos, tá na sarjeta. Tudo bem que a ascensão não se resolve mais com mutreta, mala preta ou caneta, mas também, segunda divisão não é coisa de outro planeta e equipes de tradição, o que, aliás, todas são, já viram de perto a coisa preta, mas honraram a camiseta e não fizeram confusão, só cumpriram sua missão e aprenderam a lição, voltando mais fortes na subseqüente edição.
No mais, desejo a todos ao menos um 2008 mais ou menos. Mais gentileza, menos aspereza, mais delicadeza, menos dureza, mais pureza, menos esperteza, mais fartura pra todos na mesa, menos avareza, menos agressão à natureza. 2008 é ano bissexto, isso está fora de contexto, mas assim encontro um pretexto pra terminar meu texto.
Numa nação que mais parece uma panela de pressão, "Tropa de Elite" passou como um furacão, despertou atenção, provocou reflexão e quem comanda o caldeirão fez do capitão a solução das mazelas da nação. Parte da elite admite seus métodos de ação, deu razão ao capitão, deu ibope ao BOPE, fez das tropas coração. Outra parte da população, de mais sensata opinião, disse que não, que se evite fazer injustiça com a própria mão, que não se acredite na lei de talião, da selva ou do cão e deu outro palpite nessa discussão: dura lex, sed lex, sim. Mais do que isso, não. E não só pra "moleques" ou ladrão de Rolex, mas pra todo cidadão, qualquer infração, roubo ou corrupção e colarinhos de qualquer coloração.
O rei Roberto foi esperto, mas não escapou dos achincalhes ao recolher os exemplares de "Roberto Carlos em Detalhes". Pra alguns, Roberto está certo e de razão está coberto: sua vida não tem que ser um livro aberto, nem precisa ser vista de tão perto. Pra maioria, houve censura, decerto, e Roberto fez jogo sujo com P. C. Araújo, o autor do dito cujo, que ficou boquiaberto, e seu livro, com um futuro incerto, embora, pra encontrá-lo, não precise ser tão esperto.
Não bastasse a frustração na perseguição a Osama, no Afeganistão ou não sei onde estão, antes de vestir o pijama, Bush tem nova razão pra cair da cama e fazer drama: na eleição pra sua sucessão, os seus enfrentarão Obama ou a ex-primeira dama, não terão outra opção. E, fazendo jus a sua fama, ao que o povo reclama e às mudanças que conclama, a começar pelo Alabama, a derrota tá na mão, não tem solução. Bush não relaxa com tanta queixa e desembucha que acha que sua pecha de gostar de rixa é fuxico, pois quando Chavez debocha, ele só estrebucha. O resto é agouro de Al Gore.
Duas falas foram comentadas em todas as salas por aqui: de Juan Carlos, o "por qué no te callas?" e o "relaxa e goza", de Marta Suplicy. Dizem que ambos poderiam usá-las pra falarem entre si: "relaxa e goza" pra Juan Carlos, "por qué no te callas?" pra Suplicy.
O timão, rebaixado no Brasileirão, pra os paulistanos, tá na sarjeta. Tudo bem que a ascensão não se resolve mais com mutreta, mala preta ou caneta, mas também, segunda divisão não é coisa de outro planeta e equipes de tradição, o que, aliás, todas são, já viram de perto a coisa preta, mas honraram a camiseta e não fizeram confusão, só cumpriram sua missão e aprenderam a lição, voltando mais fortes na subseqüente edição.
No mais, desejo a todos ao menos um 2008 mais ou menos. Mais gentileza, menos aspereza, mais delicadeza, menos dureza, mais pureza, menos esperteza, mais fartura pra todos na mesa, menos avareza, menos agressão à natureza. 2008 é ano bissexto, isso está fora de contexto, mas assim encontro um pretexto pra terminar meu texto.
Assinar:
Postagens (Atom)