20.5.10

O perfeito e o imperfeito do subjetivo

Palavras foram criadas para facilitar a comunicação. A linguagem, portanto, pressupõe esse fim. De nada adianta ignorar ou execrar o linguajar popular, restringir-se à norma culta e não se fazer entender pela maioria das pessoas, como um brasileiro exilado em sua própria pátria. Afinal, que língua é essa que pouquíssimos brasileiros falam? Podemos chamá-la de língua oficial? A discussões desse tipo é que se propõe a exposição Menas: o certo do errado, o errado do certo (com curadoria de Ataliba Castilho e Eduardo Calbucci), em cartaz no Museu da Língua Portuguesa (SP, até 27 de junho próximo), que nos apresenta interessantes frases, como: “Se alguém usou uma palavra, ela existe.” ou “Todos têm sotaque. Ainda bem.”.

Tais discussões casam bem com o pensamento de Marcos Bagno, profissional graduado em Letras pela UFPE, doutor em Línguística pela USP, professor da UnB e autor de mais de 30 livros, entre eles Preconceito linguístico. Impossível ficar indiferente a suas convicções. De posições firmes, o escritor, tradutor e linguista mineiro costuma afirmar, por exemplo, que o professor Pasquale e suas concepções rígidas de 'certo' e 'errado' estão na contramão da história e não são aceitas nos maiores centros de pesquisa linguística brasileiros.

Bagno defende a ideia de que o preconceito linguístico esconde um imenso preconceito social (a forma caricata e inventada com que a rede Globo mostra o sotaque nordestino em suas produções é um claro exemplo disso) e constitui “um disfarce amplamente aceito para que uma pessoa seja discriminada e excluída dos bens sociais aos quais teria direito pelo simples fato de ser um cidadão”.

Em recente e interessante entrevista ao Jornal do Commercio (PE), o linguista sugeriu: “as aulas de língua materna têm que se destinar, antes de mais nada, à inserção dos aprendizes na cultura letrada, e isso se faz por meio da leitura, da escrita, da leitura, da escrita e principalmente da leitura e da escrita”. E concluiu: “Enquanto nossos professores acharem que é preciso ensinar dígrafo, oxítonas, preposições, oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo, epiceno e outras coisas cabalísticas desse tipo, nossa educação linguística continuará catastrófica como já está”.

Quanto a conclusões simplistas e precipitadas de que estaria fazendo apologia ao vale-tudo na língua portuguesa, afirma, com propriedade: “Nenhum linguista sensato jamais disse que não é preciso ensinar aos alunos as formas privilegiadas, normatizadas de uso da língua. O que dizemos é que essas não são as únicas formas válidas de uso da língua e que é preciso abordar em sala de aula a multiplicidade de usos idiomáticos que existe na sociedade. No entanto, como nossa sociedade só consegue pensar em termos de sim/não, preto/branco, certo/errado, um discurso que contemple a variação, a noção de pluralidade de falas, não consegue penetrar no senso comum”.

O escritor reconhece o viés político por trás de muitas de suas afirmações, o que considera inevitável. Entre os polêmicos, mas/e interessantes comentários encontrados em seus livros, cito dois, a título de ilustração. No primeiro, ele compara a morfologia verbal das línguas inglesa e portuguesa, ao observar que se I lived, you lived, he lived, we lived, they lived é recebido sem estranhamento, o mesmo não ocorre com eu morava, tu morava, ele morava, nós morava, eles morava, recebidos com “o riso, o deboche ou, no melhor dos casos, a compaixão pelos 'infelizes caipiras' que 'não sabem falar direito', como se fossem menos inteligentes ou até menos humanos que os demais falantes”.

O segundo comentário trata da troca do L pelo R na pronúncia de certas palavras, ao que ele se refere como “um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão”. Segundo ele, “as pessoas que dizem Cráudia, grobo, chicrete, pranta estão apenas dando livre curso à mesma tendência fonética que fez, por exemplo, com que o latim fluxu desse em português frouxo, com um R bem nítido, que plaga desse praga, que sclavu desse escravo, que blandu desse brando, que flaccu desse fraco, que gluten desse grude, que o germânico blank desse em português branco (...)”.

Para enriquecer a discussão, entrei em contato com o professor, que, gentilmente, comentou os seguintes pontos. Sobre a questão (que já foi bem pior) da valorização quase exclusiva da ortografia e das normas gramaticais, em detrimento da clareza na comunicação, ele afirmou: “O apego à tradição gramatical e à ortografia é muito antigo em toda a civilização ocidental, data de pelo menos três séculos antes de Cristo, quando foi criada a disciplina gramatical. Ao se fixar um modelo único de 'língua certa', inspirado nos usos de uns poucos escritores consagrados do passado, todos os demais usos da língua foram jogados na lata do lixo do 'erro'. As pesquisas linguísticas contemporâneas mostram o absurdo que é essa atitude, que carece de qualquer fundamentação científica, sendo integralmente ideológica”.

Com relação ao novo acordo ortográfico, disse ser a favor “porque, antes de tudo, retira de Portugal uma arma ideológica que sempre esteve nas mãos dos setores chauvinistas da sociedade portuguesa: a ideia de que a língua é 'deles' e que por isso toda decisão sobre os destinos do idioma cabem prioritariamente a Lisboa”. E completa: “Ora, 90% dos falantes de português vivem no Brasil. Se todos os demais países de língua portuguesa abandonassem a língua e a trocassem por outra, ainda assim o português brasileiro seria a terceira língua mais falada no Ocidente (…). Com o Acordo, todos os usuários da língua vão ter uma maneira única de escrever e isso decerto facilitará muito a divulgação do idioma e a circulação dos bens impressos. É preciso lembrar, sempre, que não se trata de uma 'uniformização da língua', como muitas pessoas equivocadamente têm dito. (...) o que vai mudar exclusivamente é a maneira de escrever a língua”.

O que concluo disso tudo é que se por um lado tenho o “vício” de seguir os rigores das regras gramaticais e até me incomodo ao perceber certos erros de grafia, por outro (ou pelo mesmo) comporto-me como um dinossauro jurássico sempre que sigo, por exemplo, o costume enraizado de respeitar regras de próclise e ênclise, como a de não iniciar frases com pronomes oblíquos* (quanto à mesóclise, ser-me-ia demais respeitá-la).

Não sou nenhum especialista no assunto, mas, em suma, mesmo sem concordar “em gênero e número igual”, reconheço, “com os nervos da cor da pele”, a singularidade do raciocínio do exímio linguista, cujas ideias, ainda que em primeira análise pareçam radicais e exageradas, suscitam reflexões, como a percepção de que a língua não é criada no papel, por acadêmicos, mas resulta, isso sim, da linguagem falada.



* Pronominais  (Oswald de Andrade)

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da nação brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

6.5.10

Transações políticas e transições sexuais (e vice-versa)


Já se discutiu, ao longo do tempo, a relação entre política e sexo, entre companheiro de luta e companheiro de leito. Meu partido é um coração partido, já dizia Cazuza, nos relativamente despolitizados anos 80. Desde a transformadora década de 60, porém, política e sexo já andavam um tanto descompassados em nosso país. As práticas livres adquiridas com a revolução sexual, fruto das conquistas do movimento hippie, foram refreadas, do lado de baixo do Equador, pelas ditaduras instaladas por essas bandas. Na década de 80, por sua vez, a liberdade política conquistada com o fim das ditaduras, veio acompanhada da repressão sexual provocada pela descoberta do vírus da AIDS. Como resultado, no ramo da música, fatos curiosos ocorreram.

Sexo, política e rock’n roll. Nos anos 60, as canções de protesto combatiam o momento político e refletiam bem o clima de repúdio à situação vigente e a esperança num futuro melhor. Já as ingênuas canções da Jovem Guarda, e mesmo as da Bossa Nova, não refletiam tanto a revolução sexual em curso. Se bem que, pouco depois, os Secos & Molhados viriam a distorcer, sem discursos panfletários, apenas com seus requebros, a rígida coluna vertebral da dita ditadura, característica que, junto com o forte apelo visual e músicas como O vira, tornou o grupo bastante admirado, também, pelas crianças.

Por sua vez, a cena musical dos anos 80, que já não via mais como novidade as canções de duplo sentido ou de apelo sexual, presentes desde a década anterior com Genival Lacerda e Gretchen, entre outros, recebia reforços nesse estilo. Músicas como Serão extra (Eu fui dar mamãe / Fui dar mamãe / Fui dar um serão extra / Trabalhei com o patrão), do grupo Dr. Silvana & Cia., Amante profissional (Pra qualquer tipo de transação / Sem compromisso emocional / Só financeiro), do Herva Doce e Dentro do coração (Põe devagar), do Rádio Táxi, brincavam com o sexo de maneira despretensiosa, em contrapeso à dura realidade que despontava, evidenciada por Cazuza em Ideologia: Meu prazer agora é risco de vida.

No campo político, a década coincidiu com o período de abertura e o fim da censura aos meios de comunicação, esse último tendo gerado calorosas discussões entre o que podia e o que não podia ou quais seriam os limites do bom senso. Alheios a essa discussão e como crianças que ganham um brinquedo novo, os compositores daquela geração, mesmo sem o apuro e a sutileza de um Chico Buarque, queriam mais era experimentar ao máximo a novidade que surgia. Ao mesmo tempo, como todo principiante - pássaro novo longe do ninho -, não sabiam como lidar com a incipiente liberdade. Foi assim, então, que o público pôde presenciar, pelas primeiras vezes, o uso aberto do palavrão, em canções como Faroeste caboclo (Renato Russo).

O tema censura foi, inclusive, ironizado pelo irreverente Léo Jaime, em Solange, do disco Sessão da tarde (1985), versão para a música de Sting, So lonely: “Eu tinha tanto pra dizer / metade eu tive que esquecer / E quando eu tento escrever / Seu nome vem me interromper / ... / Solange, Solange, Solange / É o fim, Solange”. Solange Hernandes foi diretora da Divisão de Censura de Diversões Públicas do Departamento da Polícia Federal, setor extinto em 1988.

Renato Russo, que faria 50 anos em 2010, embora só tenha chegado ao sucesso após a leva de bandas surgidas na primeira metade da década de 80, que teve o Rock in Rio como marco divisório, foi um dos ícones da juventude da época e compôs duas canções que, junto com Brasil, de Cazuza, viraram hinos políticos daquela geração: Que país é este?Geração Coca-Cola*. E já que falamos de sexo e política, vale lembrar que outra canção dele, Eduardo e Mônica, recebeu uma análise (Mônica e Eduardo) um tanto política e sexualmente incorreta, na qual o autor inverte o senso comum de que Mônica é inteligente e engajada, enquanto Eduardo é alienado. Não obstante as ditas incorreções, o texto merece uma leitura mais leve, por ser passional – o que o torna mais engraçado - e criativo.

Faroeste caboclo, que se assemelha a uma espécie de ópera-rock, seja pela duração de cerca de nove minutos, seja por contar uma história – de desfecho trágico, por sinal - ou ainda pelas alternâncias melódicas que acompanham o sentimento do que vai sendo narrado, não deixa de lado o toque político, ainda que solto, no último verso: “E João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília com o diabo ter / Ele queria era falar com o presidente pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer” (a extensa música, contrariando as lógicas de mercado, tocava bastante em rádio e era quase uma obrigação, para os jovens de então, saberem sua letra de cor e não salteado). A saga de João de Santo Cristo, narrada na canção, vai virar filme, em breve.

Mas foi a forma peculiar de narrar, por meio da música, conflitos existenciais próprios da juventude – os quais, numa geração dita perdida, pareciam ainda mais comuns -, que tornou tão idolatrado o cara que ousou cantar “e eu gosto de meninos e meninas”. Conflitos traduzidos em versos como “ainda estou confuso, só que agora é diferente”, “mudaram as estações e nada mudou”, “não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas”. E olhe que sexo verbal nem fazia seu estilo.



* Geração Coca-Cola (Renato Russo / Fê Lemos)

Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados
Dos U.S.A., de nove às seis

Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

Depois de vinte anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

25.4.10

O filho da mãe

Roberto Carlos Braga é brega? Chega de briga. Como previ, há alguns meses, não adianta nem tentar lhe esquecer. O cantor e compositor vem, desde o ano passado, comemorando seus cinquenta anos de carreira e, no ano que vem, completará setenta de idade, o que motivará, mais uma vez, merecidas comemorações. Por sinal, ele estará puxando o bloco dos setentões, que se aproxima, com Chico e Caetano, entre outros, logo atrás.

Uma dessas homenagens prestadas, nos últimos meses, ao rei, está ao alcance de quem andar por São Paulo por esses dias: a exposição Roberto Carlos – 50 anos de música, que acontece na Oca do Parque do Ibirapuera e que ele mesmo ajudou a organizar. A exposição aproxima-se do final e traz, entre as atrações, documentários e vídeos sobre sua carreira, bem como depoimentos de pessoas importantes em sua trajetória artística, como o parceiro Erasmo Carlos, Wanderléa, Gal Costa, Maria Bethânia e Caetano Veloso.

Gal, em seus primeiros discos, gravou várias canções da dupla Roberto e Erasmo, como Se você pensa e Eu sou terrível, além de uma interpretação definitiva e insuperável de Sua estupidez, cuja bela letra é uma forma mais rebuscada e poética de dizer “você não vale nada, mas eu gosto de você”. Sua estupidez é do disco Fatal, de 1971 - fatal, inclusive, no excelente repertório (só para dar uma ideia... não dá para dar uma ideia a não ser enumerando quase todas as músicas, então deixo apenas a ideia da ideia).

Engraçado que essas canções, bem apropriadas ao perfil ou estilo criado, à época, pela cantora baiana, diziam frases fortes que o próprio RC, hoje em dia, em outra fase, ou Bethânia, por exemplo, não diriam (pior pra eles), como “você tem que aprender a ser gente” e “use a inteligência uma vez só” (só faltou Quero que vá tudo pro inferno). Nesse mesmo período, Gal recebeu da dupla a canção Meu nome é Gal, feita especialmente para ela, como não é difícil perceber. Bethânia, por sua vez, além de ser um dos poucos artistas a ter participação em algum disco de Roberto (em 1982, na faixa Amiga), gravou disco inteiro, As canções que você fez pra mim (1994), com composições do rei.

Caetano, em seu incentivo à luta contra qualquer tipo de preconceito musical, sempre se preocupou, ao longo da carreira, em desfazer qualquer rivalidade entre Tropicalismo, Bossa Nova e Jovem Guarda. Depois de uma troca de amabilidades que nos proporcionou interpretações marcantes de músicas de sua autoria por parte de Roberto (Como dois e dois, Muito romântico, Força estranha) e vice-versa (Debaixo dos caracóis de seus cabelos), coroou bem sua linha de comportamento ao participar, recentemente, do trabalho que reuniu essas três vertentes da produção musical dos anos 60: o disco Roberto Carlos e Caetano Veloso e a música de Tom Jobim (2008), em que o rei da Jovem Guarda e o mestre do Tropicalismo uniram-se, em reverência ao maestro da Bossa Nova.

Sou de um tempo em que aguardar os lançamentos de trabalhos desses artistas, ano após ano, já era, por si só, atividade extremamente aprazível, seguida de plena recompensa, exercício do qual os discos de Roberto Carlos faziam parte. Por isso, em época de tantas homenagens a esse astro da nossa música, acrescento mais essa, que tem motivos de sobra para acontecer especificamente por esses dias. Primeiro, o aniversário do cantor, que ocorreu esta semana, depois, o dia das mães que se aproxima e que nos remete à lembrança de uma das maiores mães da MPB, a quem devemos sua vinda ao mundo - Lady Laura*, reverenciada pelo filho em um desses discos esperados -, por meio de quem homenageio todas elas.



* Lady Laura (Roberto Carlos / Erasmo Carlos)

Tenho às vezes vontade de ser novamente um menino
E na hora do meu desespero gritar por você
Te pedir que me abrace e me leve de volta pra casa
Que me conte uma história bonita e me faça dormir

Só queria ouvir sua voz me dizendo sorrindo:
Aproveite o seu tempo, você ainda é um menino
Apesar da distância e do tempo eu não posso esconder
Tudo isso eu às vezes preciso escutar de você

Lady Laura, me leve pra casa
Lady Laura, me conte uma história
Lady Laura, me faça dormir
Lady Laura

Lady Laura, me leve pra casa
Lady Laura, me abrace forte
Lady Laura, me faça dormir
Lady Laura

Quantas vezes me sinto perdido no meio da noite
Com problemas e angústias que só gente grande é que tem
Me afagando os cabelos você certamente diria:
Amanhã de manhã você vai se sair muito bem

Quando eu era criança podia chorar nos seus braços
E ouvir tanta coisa bonita na minha aflição
Nos momentos alegres sentado ao seu lado eu sorria
E nas horas difíceis podia apertar sua mão

Tenho às vezes vontade de ser novamente um menino
Muito embora você sempre acha que eu ainda sou
Toda vez que te abraço e te beijo sem nada dizer
Você diz tudo que eu preciso escutar de você

12.4.10

De versão e arte

A prática de criar versões de textos provenientes de outras línguas tem o mérito de aproximar culturas, na medida em que as torna mais acessíveis aos que não têm acesso aos escritos, não dominam seus idiomas de origem ou mesmo não conhecem o trabalho feito em outros países.

Em se tratando de poesias e canções, esse trabalho de traduzir ou “versionar” é especialmente difícil, pois, se na tradução de textos em geral, procura-se ser o mais fiel possível ao conteúdo original, nas adaptações de versos - sejam de poesias ou canções -, por questões sobretudo de métrica, mudanças fazem-se necessárias, desde que não comprometam o contexto. Nesses casos, busca-se fugir a uma simples tradução literal (transcrição), com adaptações engenhosas (criação), mas sem se afastar do tema original, algo bem definido pelo neologismo “transcriação”. No caso das canções, almeja-se, ainda, manter a letra ajustada à melodia. Esse ajuste pode ser feito apenas pela sonoridade das palavras (mal) ou pela métrica como um todo (bem).

Quando a canção original é bem conhecida, o trabalho de tradução torna-se ainda mais delicado e difícil, pois é comum haver um estranhamento, quando a sonoridade já tão familiar de letra e música juntas é quebrada. Isso talvez explique o porquê de Yesterday (Lennon/McCartney), uma das canções mais gravadas de todos os tempos - cuja melodia, curiosamente, surgiu em um sonho de McCartney, como ele revela em sua biografia -, nunca ter recebido uma versão em português.

Por falar em Beatles, a Jovem Guarda, movimento surgido no Brasil por influência deles e de outros astros do rock de então, era bem servida de versões, aqui interpretadas por conjuntos como Renato e seus Blue Caps, Golden Boys, The Fevers, entre outros. De lá pra cá, grandes compositores da nossa música têm se esmerado em versões de qualidade, que fazem jus ao termo transcriação e, nos últimos tempos, bandas de forró tudo-menos-pé-de-serra têm traduzido até pensamento.

Gilberto Gil, como se não bastasse ser especial na criação de suas próprias canções, é um exemplo de compositor competente também em versões. Em Só chamei porque te amo – versão para I just called to say I love you, de Stevie Wonder -, Gil acrescentou a esses citados objetivos de versões musicais um toque de regionalismo que, além de facilitar a decodificação da mensagem, deixa uma doce impressão: nem carnaval, nem São João, nenhum balão no céu, nem luar do sertão. A canção cita bons motivos para se procurar por alguém, apenas para dizer que nenhum deles ocorreu e, ao descartá-los, apresentar o motivo fundamental da busca: só chamei porque te amo. Sem mais explicações, a não ser a falta de motivo ou razão (quando a saudade vem, não tem explicação).

Em Não chore mais – versão para No woman, no cry, do repertório de Bob Marley -, Gil também fez uso do recurso de adaptação à realidade local, com referências à repressão da ditadura militar então vigente no Brasil (Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais. Tais recordações, retratos do mal em si, melhor é deixar pra trás). Se na letra original o cenário é um jardim público em Trenchtown, Jamaica, a versão brasileira desloca-se para a grama do Aterro, no Rio de Janeiro. No fim, porém, a mensagem de esperança é a mesma: everything’s gonna be all right / tudo, tudo, tudo vai dar pé.

Milton Nascimento, durante temporada nos Estados Unidos, nos anos 70, escutou uma canção que falava sobre amigos que partiam. Inspirado nesta música, compôs outra (Unencounter, de seu disco Journey to dawn, de 1979), também em inglês, sobre o mesmo tema, em parceria com Fernando Brant. Flávio Venturini, que à época fazia parte do grupo 14 Bis, adorou a canção e quis gravá-la, mas achou que ela merecia uma versão brasileira. Brandt, então, traduziu a letra para o português. O resultado foi Canção da América, uma celebração à amizade que, como tal, transpôs fronteiras, rompeu limites, desfez distâncias, com um apelo universal que não carece de tradução: o que importa é ouvir a voz que vem do coração.

Em bom português, versões podem constituir grandes versos, sem os quais não haveria fascinação nem ternura. Não saberíamos o amor, doce mistério da vida, nem o sabor do gesto. Não entenderíamos a natureza humana nem a aquarela da vida. Não saberíamos, com Chaplin, simplesmente, sorrir*.



* Sorri (Charles Chaplin/G.Parson/J. Turner - versão: Braguinha)

Sorri
Quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos, vazios

Sorri
Quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador

Sorri
Quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados, doridos

Sorri
Vai mentindo a tua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz
 

26.3.10

O que pode essas línguas

Na narração de um fato, seja real ou fictício, a comunicação ocorre de forma direta, ainda que de diversas maneiras. Mário Vargas Llosa afirma, em relação aos romances em geral, que a história não escrita representa a maior parte da história real, já que esta “cobre um terreno maior do que aquele que qualquer escritor – mesmo o mais profícuo e loquaz, com o menor pendor para a economia narrativa – seria capaz de cobrir em seu texto”. De fato, cada narrador pode ressaltar, em sua versão,  diferentes aspectos do ambiente, características físicas, psicológicas ou o estado emocional dos personagens envolvidos no episódio narrado.

Na função de expressar sentimentos com exatidão, por sua vez, palavras são limitadas, por serem discretas, enquanto sentimentos são contínuos, o que faz com que não haja uma correspondência linear ou biunívoca entre eles. Dessa limitação, ou impossibilidade, é que surge a poesia, a metáfora, o sentido figurado e é justamente como instrumento de nossa mente criativa que as palavras encontram sua mais extraordinária aplicação.

Ao mesmo tempo, do lado dos que recebem a informação, as asas da imaginação desapropriam o sentido próprio, desfiguram o sentido figurado, enfim, ilimitam o que, loucamente, cada louca mente capta. O resultado é uma tradução eficaz, que transforma uma única língua-fonte (a mente criadora) em inúmeras línguas-alvo (as mentes receptoras).

No ramo da música, Construção, de Chico Buarque, é um exemplo concreto de onde se pode chegar com o uso de palavras bem dispostas, a começar do título da canção, de uma propriedade absoluta, ao denotar tanto a construção gramatical quanto a civil. Em Vai passar (Chico Buarque/Francis Hime), o título exprime o sentido de transitar, claramente expresso na letra (“vai passar nessa avenida um samba popular”, “o estandarte do sanatório geral vai passar”), mas também pode ser lido como deixar de existir, acabar, numa possível referência ao iminente fim da ditadura militar, na época em que a canção foi lançada (pode ser em sentido desfigurado, mas é como minha mentecapta mente capta).

Como admirador da arte de batizar – que trago até no nome - ou intitular, seja um livro, um filme, um disco, uma canção, uma rua, um bar, um artigo ou um simples e-mail, considero esta uma das etapas mais importantes e empolgantes da criação. Afinal, o título é a porta de entrada do conteúdo, ainda que não seja de todo indispensável (Nada nos impediria de ler um livro, assistir a um filme ou escutar uma música sem nome, a mensagem seria recebida da mesma forma. Da mesma forma, na linguagem falada, conseguiríamos nos comunicar sem a presença deles, mas a vida seria bem mais difícil e chata assim).

Por fim, não é incomum nome próprio ser comum (e nome comum ser impróprio). Nesse sentido, existe até uma piada, comum em Angola, nação africana de tantos contrastes sociais e vítima do neocolonialismo. Dois turistas, de férias no país, discutiam a diferença entre jacaré e crocodilo e discordavam sobre qual seria a denominação correta de um certo espécime que avistaram. Para desfazer a polêmica, consultaram um nativo angolano, apontando para o réptil: “Como vocês chamam, aqui, este animal, jacaré ou crocodilo?”, ao que o cidadão respondeu: “Nenhum dos dois. Aqui, a gente conhece-o como Lacoste”.

A função de dar nome é bem específica e seu praticante não precisa, necessariamente, ser o dono ou autor da coisa intitulada, tampouco produzir todo seu conteúdo. Basta ser criativo e, noutro plano, tal Caetano, gostar de se dedicar a criar confusões de prosódia e profusões de paródias*. Assim como café não costuma faiá, mouse pede mouse pad, forró pede serra e o Carrefour, digo, o baticum é da Benetton, não, da beira do mar. Ou da mesa do bar, talvez um Johann Sebastian Bar. E que o Chico Buarque de Holanda nos resgaste.



* Língua (Caetano Veloso)

Gosta de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões

Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
"Minha pátria é minha língua"
Fala Mangueira! Fala!

Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer, o que pode esta língua?

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda

Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem

Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé e Maria da Fé

Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer, o que pode esta língua?

Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo

A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana

Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.

4.3.10

Rádio patrulha

Havia uma marchinha da década de 70 que dizia: “Viva o Zé Pereira / Que a ninguém faz mal / E viva a bebedeira / Nos dias de carnaval”. Tal música, porém, não era da década de 70 do século XX, mas do século XIX. Pois é, os tempos ideais do velho Raul Moraes também tinham desses sucessos. Tudo bem, carnaval é festa essencialmente popular e, como tal, deve ser mesmo uma "momarquia" democrática e, na medida do possível, agradar a todos.

Ainda que seja na base do beijo ou do rebolation, no quatríduo momesco, o povo quer apenas cair no passo e a vida gozar. Tanto que certas bocas - de ouvidos menos atentos - costumam, nessa época, ferir os nossos, levando o frevo às páginas policiais, ao cantarem assim a Evocação nº 1 de Nelson Ferreira: “Ferido pelo soldado, Guilherme Fenelon, cadê teus blocos famosos?”, sem prestarem tanta atenção ao que está sendo dito. Claro que clássico é clássico (como disse Drummond, “E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno.”), mas não se deve exigir, por exemplo, que os mais jovens achem lindo ver o dia amanhecer com violões e pastorinhas mil (ainda que o seja), se isso não lhes emociona.

Seja ou não carnaval, música é algo que toca – e, mais do que isso, tem que tocar. Apenas certas canções (canções certas para uns, incertas para outros) têm esse dom, o que varia de pessoa para pessoa para Pessoa: “qualquer música, ah, qualquer / logo que me tire da alma / esta incerteza que quer / qualquer impossível calma”. A música que agrada aos ouvidos confunde-se um pouco com a realidade e a vivência de quem a escuta, o que torna quase impossível julgá-la com isenção. Há, ainda, uma busca por sintonia entre ritmo musical e ritmo de vida, o que explica por que, entre o vigor e ímpeto da juventude e a serenidade dos mais velhos, os sons vão diminuindo em volume e velocidade.

Patrulhamento musical (rádio patrulha) sempre existiu. A melhor política é desfazer-se de preconceitos ao escutar qualquer canção. Se, nesses termos, você apreciá-la, somente assim - e nesse ponto - faça valer a máxima de que gosto não se discute. Conforme atesta o crítico musical José Ramos Tinhorão em sua Pequena História da Música Popular, o maxixe e o samba-de-breque, por exemplo, eram considerados pela elite músicas de menor qualidade. Com o frevo, não foi diferente. Depois do frevo-de-rua, sua versão mais genuína e popular, foi que surgiu o de bloco, criação da classe média, que não queria se acabar de dançar, no meio do povo, o ritmo frenético das ruas. Hoje, os dois dividem espaços.

Tom Zé, em análise de trecho do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, comenta que, no Brasil, “aprecia-se uma espécie de culto no qual a inteligência, em vez de reunir os homens, os separa”. E completa: “Sérgio Buarque discute que, desde tempos imemoriais, o ato de pensar é exercido por nós, ibéricos, como se fosse um privilégio pessoal e classista. Isso dificulta o uso do pensamento como instrumento partilhado para a organização dos homens. Nós mesmos, que escrevemos em jornais, às vezes nos sentimos como ‘barõezinhos’”.

De fato, alguns indivíduos preferem segregar a agregar novos adeptos a seu exclusivíssimo clube dos que têm bom gosto. Para eles, se abrir demais, perde a graça e, nesse comportamento, pode estar embutido preconceito etário ou proletário. Alheio a esse patrulhamento – de modos e modas - e sem tantas satisfações a dar, os menos afortunados, ao menos nesse aspecto, são mais livres e, quando podem, divertem-se à vontade. É só comparar um concerto no teatro e um pagode na laje.

Caetano Veloso sempre procurou quebrar essa barreira subjetiva entre estilos musicais considerados de bom gosto ou não. Em Um frevo novo, provocou: “mete o cotovelo e vai abrindo o caminho” e ainda: “todo mundo na praça, muita gente sem graça no salão”. No auge do Tropicalismo, por ocasião da apresentação de Alegria, alegria no festival da Record, o cantor ressaltou assim sua simpatia pela liberdade de uso da guitarra na música brasileira: “No Rio de Janeiro, disseram: ‘Caetano vai usar guitarra numa música, quando chegar na Bahia vai tomar uma surra de berimbau’. O que eles não sabiam é que os baianos estão além.”.

Mantendo o tom, já que o assunto é a polêmica música boa x música ruim, vale ressaltar que Tom Zé, também tropicalista, em seu mais recente show, expõe impagável análise de um funk carioca (melhor ao vivo), desenvolvida com o intuito de confirmar informação, publicada em um jornal, de que seu disco Estudando a bossa sofrera influências desse ritmo. A propósito, um cara tão futurista, à frente do seu tempo e do tempo dos outros, só poderia mesmo ter nascido em Irará, futuro do futuro do verbo ir. Vamos atrás!



Certas Canções (Tunai / Milton Nascimento)

Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece
Como não fui eu que fiz?

Certa emoção me alcança
Corta-me a alma sem dor
Certas canções me chegam
Como se fosse o amor

Contos da água e do fogo
Cacos de vidas no chão
Cartas do sonho do povo
E o coração pro cantor

Vida e mais vida ou ferida
Chuva, outono, ou mar
Carvão e giz, abrigo
Gosto molhado no olhar

Calor que invade, arde, queima, encoraja
Amor que invade, arde, carece de cantar

24.1.10

Era do rádio (pena, não é mais)


Por maior que tenha sido o impacto do surgimento da internet em nossas vidas, imagino que o da televisão não tenha ficado muito atrás, guardadas as proporções devidas aos diferentes cenários tecnológicos das duas épocas. Ambas as mídias provocaram mudanças – de comportamento, de hábitos, de paradigmas - e, se a televisão, consolidada no Brasil em fins da década de 50, trouxe como resultado inerente o culto à imagem (os trejeitos de Elvis, a cabeleira dos Beatles, a minissaia de Wanderléa, só pra começar), a internet proporcionou interatividade e pulverização da informação.

Antes do surgimento da televisão, o maior apelo era a voz, o que talvez justifique, em parte, o excesso de impostação típico dos cantores da época. Os artistas eram contratados pelas rádios, onde se apresentavam e divulgavam seus trabalhos. Acesso a música e audiência concentrados em um único meio de comunicação justificaram o surgimento de títulos como rainha da voz - atribuído a Dalva de Oliveira - e concursos como rainha do rádio, que coroou, além de Dalva, intérpretes como Emilinha Borba, Marlene e Linda Batista. Além disso, havia uma profusão de grandes compositores, muitos deles oriundos das classes mais pobres, o que Chico Buarque descreveu como um tempo em que o cidadão, sobretudo o cantor, subia o morro para se abastecer de música.

Esse mundo curioso, de rica musicalidade e também inovador, conhecido como a era do rádio, serviu de pano de fundo para a minissérie Dalva e Herivelto – uma canção de amor, de Maria Adelaide Amaral, exibida, recentemente, pela Rede Globo, cujo tema foi a trajetória artística e amorosa do casal de músicos Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, companheiros por cerca de dez anos. O livro Minhas duas estrelas – uma vida com meus pais (Globo, 2009), de Ana Duarte e do cantor Pery Ribeiro, filho do casal, foi uma das fontes de pesquisa do trabalho.

Dores de amores sempre inspiraram compositores e deram o tom (o que talvez explique o fato de as notas musicais começarem em dó). Não foi diferente na era do rádio, época em que encontros e desencontros amorosos escaparam às quatro paredes (o peixe pro fundo do mar, não das redes) e, mais do que comentários no rádio e em revistas, renderam belas composições, como as de Herivelto Martins (Cabelos brancos, Caminhemos, Segredo), dedicadas, em boa parte (ou má, no caso dos desencontros), a Dalva de Oliveira, com quem formou o Trio de Ouro, junto com o cantor Nilo Chagas. O público acompanhava, atento e admirado, o surgimento dessas canções que retratavam o conturbado relacionamento do casal.

Dalva deu voz às canções de Herivelto e de outros compositores, alguns dos quais a ajudaram nas respostas às provocações musicadas do ex-amor. Com boa parte dos discos, à época, gravados no formato 78 rotações - que comportava poucas canções -, era comum os cantores lançarem vários trabalhos por ano, o que explica, em parte, o tamanho da discografia da rainha da voz (talento e popularidade, certamente, explicam a outra parte), composta por mais de setenta títulos e interpretações marcantes como Bandeira branca, Que será, Segredo, Ave Maria no morro que, mesmo bastante regravadas, são, ainda hoje, associadas à sua voz.

Maria Bethânia, cujos arroubos de interpretação sempre a aproximaram dos músicos de gerações anteriores, tinha Herivelto e Dalva como uns de seus compositores e intérpretes preferidos. Seus discos dos anos 70 incluíram, dele, as canções Bom dia*, Camisola do dia, Atiraste uma pedra e A Bahia te espera, esta última uma das mais belas exaltações àquela que ele chama de “cidade da tentação”, que mostrava a ligação do compositor com o candomblé. Sobre Dalva de Oliveira, Bethânia escreveu, em texto do disco Pássaro da manhã (1977): “... A Dalva tinha a coragem, o jeito de cantar no palco o que até então eu só tinha coragem e jeito de cantar dentro da minha casa”. A leitura do texto antecedia Há um Deus (Lupicínio Rodrigues), outrora gravada por Dalva.

Versos escritos na segunda pessoa gramatical (Rosa, Carinhoso, Orgulho) eram forte tendência entre os antigos compositores e Herivelto Martins foi um dos mestres dessa prática que, se por um lado denota aproximação e intimidade com o interlocutor, por outro rebusca os versos e distancia-os da linguagem coloquial, em que, na maior parte do país, o pronome tu é pouco utilizado. Ademais, “você atirou uma pedra no peito de quem só lhe fez tanto bem” não encerraria tanto sentimento numa mesma afirmação quanto os versos originais. O charme resultante, aliado a um certo ar romântico, poético, justifica essa tendência de uso da segunda pessoa ter perdurado até hoje, mesmo em menor frequência. “Tu não vales nada, mas eu gosto de ti”, por exemplo, ficaria mais suave, concordas?



* Bom dia (Herivelto Martins – Aldo Cabral)

Amanheceu, que surpresa
Me reservava a tristeza
Nessa manhã muito fria

Houve algo de anormal
Tua voz habitual
Não ouvi dizer bom dia

Teu travesseiro vazio
Provocou-me um arrepio
Levantei-me sem demora

E a ausência dos teus pertences
Me disse, não te convences
Paciência, ele foi embora

Nem sequer no apartamento
Deixaste um eco, um alento
Da tua voz tão querida

E eu concluí num repente
Que o amor é simplesmente
O ridículo da vida

Num recurso derradeiro
Corri até o banheiro
Pra te encontrar, que ironia

E que erro tu cometeste
Na toalha que esqueceste
Estava escrito bom dia

11.1.10

Orações descoordenadas e insubordinadas para todos os períodos

“Graças ao acordo ortográfico, agora você pode escrever tranquilo.”

“Em tempos de Berlusconi, quem tem boca vaia Roma.”

“Pane na rede mundial trava línguas: o hacker ruiu o hub da rede em Roma.”

“Se nascêssemos maduros e morrêssemos crianças, a vida teria um outro sentido.”

“O Senado mergulha no mar de lama e nada. Nada como um peixe atrás do outro.”

“Navegar é preciso. Voar é impreciso.” (lei de Belchior)

“Preconceito é conceito ultrapassado. Ultrapasse-o.”

“Inspira, expira. Inspira, expira. Inspira, expira... A inspiração cessa quando o poeta expira.”

“O cinema nacional virou universal e a arte ficou na promessa.”

“Aproveite seu dia, antes que seja tarde e a vida anoiteça.”

“Quanto mais convivemos com pessoas simples, mais percebemos que não há nada menos terno do que alguém de terno.”

“Um sorriso vale mais que mil palavras, um abraço vale mais que o dicionário inteiro.”

“Para os adúlteros, tudo é uma questão de manter a amante quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.”

“Françamente, a vaga na Copa é da Irlanda!”

"- Segura o Sean! Amarra o Sean!... Tanto carnaval pra um assunto tão sério.”

“Oração do pré-sal: Fazei crescer nossos royalties, sem nos deixar cair a arrecadação. Em nome de São Paulo, do Rio, do Espírito Santo, amém.”

19.12.09

Temporal

No meu tempo, tudo tinha seu tempo
Mais cedo ou mais tarde
Hoje, meu futuro se apresenta
Já era. E agora?
Tenho uma morte inteira pela frente

Ontem, serei feliz, ao menos um segundo
Quando? Faz tempo
Depois de amanhã já é noite
Luto contra o tempo
Antes que seja tarde
Horas a fio, dia após dia, amiúde, sempre
Não perco tempo. É urgente

Hoje, porém, eu me rendo e peço
Antes tarde do que nunca
Por um momento esquecer quanto tempo me resta
E cada instante, enfim, viver eternamente

(Temporal - Paulo Bap)


Tempo de reflexão. O novo milênio – futurista, cinematográfico, tão imaginado e esperado, decantado em músicas, citado em livros, tema de filmes - chegou e, num piscar de olhos, já se foi sua primeira década.

Tempo de relógio. O tempo é assim, absolutamente relativo. Devagar, quando o queremos rápido. Veloz, quando o queremos lento. Tempo integral, tempo instantâneo. Tão rápido que a unidade de tempo é segundo e não primeiro. Primeiro, o segundo, por fim, o infinito. Mas o que houve antes do primeiro segundo? Indefinitivamente, não sei.

Tempo de remediar. O tempo é remédio pra todos os males. Bem ou mal, tudo passa, é só dar tempo ao tempo. Certa pessoa, sempre que via alguém triste, costumava dizer: “não se preocupe, isso é só uma frase”, como quem diz “isso passa”. Queria dizer fase, mas, ao confundir, acertava (de fato, isso é só uma frase). O curioso é que se usasse o termo período, em vez de frase, o período – ou frase - manteria os dois sentidos – temporal e gramatical - e o equívoco passaria despercebido: “não se preocupe, isso é só um período”. Seja como for, uma fase, como uma frase, termina no ponto que a separa da seguinte.

Tempo de contradição. O tempo não para, é um paradoxo. O tempo não é temporário, mas passa. Pode ser passatempo, mas também contratempo. É passageiro, mas conduz. Expresso 2222 – “pra 2001 e 2 e tempo afora, até onde essa estrada do tempo vai dar”. Pra onde vamos e o que fazemos, nesse meio tempo entre o “há pouco” e o “a pouco”, depende de nós. Ainda está em tempo, sempre é tempo. Tempo é dinheiro, que se gasta, mas não se empresta. Tempo real. Não se compra nem se vende. Há tempo pra tudo, há tempo pra todos.

Tempo de mudar. O tempo de luta por igualdade deve ser, também, tempo de solidariedade. Todos iguais, mas não indiferentes. Individualidade não é individualismo. Ponha-se no seu lugar: ponha-se no meu lugar. O próximo sou eu, você é o próximo. Não perco meu tempo, eu acho. “Tempo rei, oh, tempo rei, transformai as velhas formas do viver”.

PS 1 - Citações musicais: Expresso 2222 e Tempo rei (Gilberto Gil)

PS 2 - Tempo de rir. Rir é contagiante, quer ver? (Destaque do portal Terra, como um dos melhores vídeos da década)



Oração ao Tempo (Caetano Veloso)

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo Tempo Tempo Tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo Tempo Tempo Tempo

Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Entro num acordo contigo
Tempo Tempo Tempo Tempo

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo Tempo Tempo Tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo Tempo Tempo Tempo

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo Tempo Tempo Tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo Tempo Tempo Tempo

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo Tempo Tempo Tempo
Quando o tempo for propício
Tempo Tempo Tempo Tempo

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo Tempo Tempo Tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo Tempo Tempo Tempo

O que usaremos pra isso
Fica guardado em sigilo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Apenas contigo e migo
Tempo Tempo Tempo Tempo

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Não serei nem terás sido
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo

Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo Tempo Tempo Tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo Tempo Tempo Tempo

29.11.09

Os noventistas (ou os últimos poetas musicais do século XX)

Depois de duas décadas de ouro para a música brasileira, período em que surgiu com força a chamada MPB, o pop-rock deu as cartas nos anos 80. Trouxe talentos e méritos, mas também coisas de menor qualidade, como tudo que vem em excesso. Conquistou a preferência do público e uma quase exclusividade dos meios de comunicação, necessariamente nessa desordem, o que diminuiu bastante o espaço para outras boas novidades. Tudo isso, aliado ao peso de suceder a uma penca de cantores e compositores magníficos, fez com que uma certa geração pós-ditadura da MPB demorasse mais a pôr as manguinhas de fora e mostrasse sua cara apenas na década seguinte.

Do meu lado, em parte por decorrência natural do amadurecimento (vá lá, da idade), em parte por ter tido o privilégio de acompanhar, em tempo real, grandes lançamentos da nossa música, de tão preenchido, passei a fechar mais os tímpanos para novidades e, em consequência, demorar mais a assimilá-las. Com atenções merecidamente voltadas a esse museu de grandes novidades, do qual os grandes compositores da primeira geração da MPB eram peças principais, não foi de imediato que passei a apreciar novos talentos que surgiam.

Falo da turma de Cássia Eller, Moska, Lenine, Chico César, Zeca Baleiro, Zélia Duncan e, não tão integrados a estes, mas contemporâneos e também desenvolvendo trabalhos de qualidade, Marisa Monte e Adriana Calcanhotto. Alguns deles foram bastante ligados à turma dos anos 80 e, de certa forma, supriram lacuna deixada por Cazuza e Renato Russo. Como Cássia Eller, que gravou várias canções de Nando Reis (ex-Titãs) e Cazuza – é dele e Frejat sua interpretação de maior sucesso, Malandragem – e Moska, que à época fez parte do grupo Inimigos do Rei. Marisa Monte, que tem parcerias com Nando Reis e Arnaldo Antunes, mereceu destaque imediato em parte por também – e tão bem - romper a barreira entre MPB e pop-rock, entre Rosa de Pixinguinha e Comida dos Titãs.

Uma característica frequente nas composições desses noventistas, sobretudo de sua ala masculina, é o uso criativo do jogo de palavras, do qual são exemplos os seguintes versos: “Ah, Caicó arcaico / Em meu peito catolaico / Tudo é descrença e fé”, “Respeitem meus cabelos, brancos” (atenção para a vírgula), “Lágrimas de diamantes / à noite, lágrimas de diamantes / de dia lágrimas, à noite amantes”, “Gastei minha sandália havaiana / andando atrás dessa baiana / mas a baiana me vaiou / … / eu disse que vim do Cabo Verde / mas ela me achou imaturo / … / mand'ela vir, mand'ela aqui, mand'ela cá”, “Minha diva, meu divã / Minha manha, meu amanhã / Meu lá, minha lã / Minha paga, minha pagã / Meu velar, meu avelã”*.

Vozes femininas costumam falar de sentimentos com propriedade e, na geração que aflorou nos anos 90, elas vieram de mulheres que eram, também, compositoras, as quais conquistaram importante espaço ao colocarem em versos tanta sensibilidade: “Meu coração toda vez que te vê / quer gritar, se arriscar, sair cantando / me delatando pra todo mundo / pensa que está fora do alcance / ... / mas fecho os olhos então / e ele fica mudo / meu escuro é meu escudo / e silencioso é meu coração”, “Entre por essa porta agora / e diga que me adora / você tem meia hora / pra mudar a minha vida”, “Deixa eu dizer que te amo / deixa eu pensar em você / isso me acalma / me acolhe a alma / isso me ajuda a viver”**.

Entre Cássia Eller, Zélia Duncan, Adriana Calcanhotto e Marisa Monte, apenas a primeira não compunha com assiduidade. Claro que as gerações anteriores, de época tão rica e fértil para a nossa música, já traziam um toque feminino nas composições (Rita Lee, Ângela Rô Rô, Marina Lima, Joyce, entre outras, para citar apenas as de duplo ofício), mas grandes cantoras, como Maria Bethânia, Elis Regina, Gal Costa, Elba Ramalho e Zizi Possi, eram, sobretudo, intérpretes.

Esta fusão de tendências das duas décadas anteriores representa bem o amadurecimento de uma geração que, nascida ou crescida durante a ditadura militar, desestimulada a pensar, expressar-se, a participar de movimentos e discussões por tantos anos, viu-se perdida quando, enfim, conquistou a liberdade, numa década que começou quando um sonho acabou – a morte de John Lennon - e acabou quando outro começou – a queda do muro de Berlim. Geração perdida e década perdida, por sinal, são designações recorrentes quando se fala dessa época, mas, parafraseando Gilberto Gil, uma semente de ilusão tem que morrer pra germinar. Estamos no tempo de colher os frutos.


* Trechos das canções: A prosa impúrpura do Caicó, Respeitem meus cabelos, brancos (Chico César), Lágrimas de diamantes (Moska), Mand'ela (Chico César e Zeca Baleiro) e Meu amanhã (Lenine).

** Trechos das canções: Toda vez (Zélia Duncan e Christian Oyens), Vambora (Adriana Calcanhotto) e Amor I love you (Marisa Monte e Carlinhos Brown)


Mais pérolas em vídeo: Zélia Duncan - Me revelar (Zélia Duncan e Christian Oyens), Chico César - À primeira vista (Chico César), Moska - Pensando em você (Moska), Adriana Calcanhotto - Mentiras (Adriana Calcanhotto), Marisa Monte - Paradeiro (Marisa Monte e Arnaldo Antunes), Cássia Eller - Por enquanto (Renato Russo), Zeca Baleiro - Quase nada (Zeca Baleiro e Alice Ruiz) e Lenine - Paciência (Lenine e Dudu Falcão).  

29.10.09

Sem perder a ternura



Nos anos 70, quando vários países latino-americanos viviam em regime de ditadura, artistas dessas nações decidiram enfrentar seus problemas comuns cantando e compondo canções de protesto e, principalmente, unindo esforços e promovendo uma integração da região através da música. Seguindo o estilo agridoce da chilena Violeta Parra, Pablo Milanéz e Mercedes Sosa foram alguns desses artistas e, no Brasil, Chico Buarque e Milton Nascimento.

O Brasil, devido a fatores como língua diferente e maior extensão territorial, além de uma rica cultura, sempre tendeu a isolar-se dos países vizinhos e esses cantores foram dos poucos que conseguiram quebrar essa barreira. No momento em que lamentamos a perda de um dos ícones dessa música latino-americana e uma de suas mais belas vozes - a cantora argentina Mercedes Sosa -, louvar o papel social que eles desempenharam por meio do canto, sem perder a ternura, faz-se mais do que necessário.

A integração de seus cantos refletia a certeza de que, em se tratando de respeito aos direitos humanos, solidariedade, tolerância, luta contra preconceitos e injustiças sociais, desmancham-se fronteiras e não existem pátrias, apenas pessoas. Todos irmãos, em busca de liberdade, como cantou Mercedes em Venas abiertas* (Mario Schajris/Leo Sujatovich) ou em Los hermanos (Atahualpa Yupanqui): "Yo tengo tantos hermanos / Que no los puedo contar / En el valle, la montaña, / En la pampa y en el mar / Cada cual con sus trabajos / Con sus sueños cada cual / Con la esperanza delante / Con los recuerdos detras / … / Yo tengo tantos hermanos / Que no los puedo contar / Y una hermana muy hermosa / Que se llama libertad".

Numa época em que a liberdade se fez restrita, a juventude, por natureza já identificada com o tema, sentiu-se ainda mais atraída por ele. Os jovens reconheciam-se como peças importantes da história, nos versos de Coração de estudante (Milton Nascimento / Wagner Tiso): "Já podaram seus momentos / desviaram seu destino / seu sorriso de menino / quantas vezes se escondeu / mas renova-se a esperança / nova aurora a cada dia / e há que se cuidar do broto / pra que a vida nos dê flor e fruto" ou Me gustan los estudiantes (Violeta Parra): "Que vivan los estudiantes / jardín de nuestra alegría / son aves que no se asustan / de animal ni policía / Y no le asustan las balas / ni el ladrar de la jauría".

A voz de Mercedes Sosa soava como um lamento triste, mas não resignado e com uma força que parecia apenas encontrar explicação no título de um de seus discos - Traigo un pueblo en mi voz -, tirado de canção de seu repertório. A luta contra um imperialismo que favorecia governos de exceção em nosso continente fez crescer em seu povo um forte sentimento de latinidade e busca das raízes, o que ia ao encontro do trabalho da cantora, já desde o início comprometido com o canto popular e a música de raiz. As canções de protesto justificaram-se por esse mesmo contexto, mas a música de Mercedes Sosa foi mais além e também cantou o amor, em suas várias fases.

O amor em plenitude, como em Volver a los 17 (Violeta Parra), com Milton Nascimento: "Volver a los diecisiete después de vivir un siglo / Es como descifrar signos sin ser sabio competente / Volver a ser de repente tan frágil como un segundo / Volver a sentir profundo como un niño frente a dios / Eso es lo que siento yo en este instante fecundo / … / El amor es torbellino de pureza original / Hasta el feroz animal susurra su dulce trino / Detiene a los peregrinos, libera a los prisioneros / El amor con sus esmeros al viejo lo vuelve niño / Y al malo sólo el cariño lo vuelve puro y sincero".

Ou o amor sereno, como em Años (Pablo Milanéz), com Fagner: "El tiempo pasa / Nos vamos poniendo viejos / Yo el amor no lo reflejo como ayer / En cada conversación / Cada beso cada abrazo / Se impone siempre un pedazo / De razón / … / A todo dices que sí / A nada digo que no / Para poder construir / Esta tremenda armonía / Que pone viejo los corazones".

Se a arte une os povos, a música, dentre todas as suas formas, é a mais propícia a sentimentos de irmandade e união. Onde há música, há harmonia. Enquanto num evento esportivo a plateia divide-se, na música há um despertar conjunto de sentimentos que, no caso dessas linhas tortas da nossa história, mais uma vez, se não pôde mudar o rumo dos acontecimentos, certamente eternizou lembranças, celebrou conquistas, registrou momentos, abrandou dores, aliviou pesares e contribuiu para que a definitiva noite não se instalasse em Latinoamérica.

Obs.: Cancioneros.com é uma página sobre cantores da América Latina de várias gerações, da chilena Violeta Parra ao uruguaio Jorge Drexler, com informações como discografia e letras de músicas, bem como artigos e livros ligados ao tema. 

Os vídeos de algumas das canções citadas neste texto podem ser assistidos em: http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL1328798-7085,00.html



* Venas abiertas (Mario Schajris-Leo Sujatovich)

America latina
Tiene que ir de la mano
Por un sendero distinto
Por un camino mas claro
Sus hijos ya no podremos
Olvidar nuestro pasado
Tenemos muchas heridas
Los latinoamericanos
  
Vivimos tantas pasiones
 Con el correr de los años
Somos de sangre caliente
Y de sueños postergados
Yo quiero que estemos juntos
Porque debemos cuidarnos
Quien nos lastima no sabe
Que somos todos hermanos
  
Y nadie va a quedarse a un lado
Nadie mirara al costado
Tiempo de vivir
Tiempo de vivir
Nada de morir
Vamos a buscar lo que deseamos
Nadie va a quedarse a un lado
Pronto ha de llegar
Tiempo de vivir
  
Nada nos regalaron
Hemos pagado muy caro
Quien se equivoca y no aprende
Vuelve a estar equivocado
Tenemos venas abiertas
Corazones castigados
Somos fervientemente
Latinoamericanos  
  
Y cuando vengan los dias
Que nosotros esperamos
Con todas las melodias
Haremos un solo canto
El cielo sera celeste
Los vientos habran cambiado
Y nacera un nuevo tiempo
Latinoamericano

2.10.09

Confidências mineiras


Enquanto no âmbito de nosso microuniverso - sobretudo nas grandes cidades - vivemos enclausurados, pouco interagindo com o próximo, no mundo globalizado rompemos barreiras e limitações de distância, num paradoxo que tem tornado o mundo cada vez mais uniforme e com menos peculiaridades regionais. Nesse cenário, recebemos mais influências de uma antena parabólica ou de um modem 3G do que de um vizinho de porta, um transeunte do bairro, um zé da praça ou um amigo da esquina.

As esquinas das cidades resgatam esse sentido de algo familiar, próximo, um ponto de encontro, ao mesmo tempo em que remetem a uma ideia de passagem, multiplicidade de caminhos, transitoriedade, alternativas, fim e começo, diferentes pontos de vista. Num lugar qualquer de Belo Horizonte, músicos criaram, na década de 70, o Clube da Esquina que, se não era um clube real, traduzia no nome todo esse espírito, bastante apropriado. O encontro desses jovens músicos resultou em dois discos, Clube da Esquina (1972) e Clube da Esquina 2 (1978).

Nesses trabalhos coletivos, Milton Nascimento, Lô Borges e Beto Guedes revezaram-se nos vocais e instrumentos, contando com a parceria de Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Márcio Borges na maioria das composições, com um excelente time de instrumentistas, entre eles Toninho Horta e, ainda, com arranjos de Wagner Tiso e Eumir Deodato.

As canções tinham forte apelo instrumental, marca registrada do grupo. Algumas tinham melodias iguais para letras diferentes, outras eram puramente instrumentais e duas delas - Cais e Um gosto de sol* – possuíam uma mesma passagem melódica, bem conhecida. Era como se a mensagem estivesse mais no som do que nas letras e aquele, disposto em linhas melódicas bem trabalhadas e não triviais, precisasse ser mais enfatizado.

De fato, as letras suscitavam reflexões (Maria, Maria e Nada será como antes são bons exemplos), mas, em boa parte, não continham mensagens lineares, diretas ou claras, o que, de certa forma, aproximava-os, ainda que por estilos bem diferentes, de seus contemporâneos Secos & Molhados, Raul Seixas e Novos Baianos. Ivan Vilela, músico e professor da USP, em artigo publicado no museu virtual Clube da Esquina, observa que, nas letras das canções, "pouco se encontra da estrutura de romance ou de narrativas, histórias ou situações das quais se pode tirar alguma moral ou mensagem".

A ideia de transitoriedade revela-se, nas canções, em temas como dia e noite, manhã e tarde, lua e estrela, sol e chuva, estrada e terra, vento e poeira, mar e rio, céu e chão. Luzes, paisagens, sonhos e cidades - saídas e bandeiras, sonho virando terra, pedra virando corpo, um girassol da cor do seu cabelo. Outra característica é a celebração ao amor e à amizade.

Crescia, à época, a ligação entre músicos da América Latina, e Milton foi personagem fundamental nesse processo. No primeiro Clube da Esquina, a canção Os povos, dele e de Márcio Borges, é dedicada à juventude consciente da Venezuela. No segundo disco, Chico Buarque divide os vocais com Milton, em uma adaptação sua a Canción por la unidad latinoamericana, de Pablo Milanés. O coração americano é exaltado, também, em San Vicente (Milton Nascimento / Fernando Brant). Havia, também, a influência dos Beatles.

Como os sonhos não envelhecem, vieram discípulos como Flávio Venturini (que também fez parte do Clube da Esquina 2) e Samuel Rosa (Skank), que, em parceria com Lô Borges, compôs, recentemente, a bela Dois Rios. Em 1996, Márcio Borges, um dos sócios do clube, escreveu o livro "Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina". Histórias de um grupo de jovens que fez a música brasileira renascer e dobrar a esquina, tendo à frente um cara que iniciou a trajetória com travessia, tem na voz um instrumento e no nome a palavra nascimento.

"Se Deus cantasse, cantaria com a voz de Milton Nascimento" (Elis Regina)



* Um gosto de sol (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos)

Alguém que vi de passagem
Numa cidade estrangeira
Lembrou os sonhos que eu tinha
E esqueci sobre a mesa
Como uma pêra se esquece
Dormindo numa fruteira
Como adormece o rio
Sonhando na carne da pêra
O sol na sombra se esquece
Dormindo numa cadeira

Alguém sorriu de passagem
Numa cidade estrangeira
Lembrou o riso que eu tinha
E esqueci entre os dentes
Como uma pêra se esquece
Sonhando numa fruteira

5.9.09

Baião de dois

Salve o compositor popular. Se aquele que se presta a esta ocupação e anima a festa imodesta da nossa música, como exaltado por Caetano Veloso, sempre foi um espécime pouco conhecido, com o advento do MP3 e a consequente desmaterialização do disco, tornou-se quase uma incógnita. A equação fica mais fácil quando as parcerias são constantes ou frequentes, como João Bosco e Aldir Blanc, Ivan Lins e Vítor Martins, Milton Nascimento e Fernando Brandt, Roberto e Erasmo Carlos, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Ainda assim, o destaque é maior para os também cantores.

Informações sobre esses ilustres desconhecidos - ou menos conhecidos -, os compositores, são sempre interessantes e bem-vindas e é a isso que se propõe o documentário O homem que engarrafava nuvens, de Lírio Ferreira (Baile perfumado, Cartola - música para os olhos), sobre o compositor, deputado federal (!) e advogado cearense Humberto Teixeira, parceiro de Gonzagão. A produção é da atriz carioca Denise Dummont, conhecida de quem já passou dos 30 anos, por já ter feito parte do elenco da Rede Globo de Televisão, em tempos idos.

O título poético vem de depoimento de Teixeira, em que ele dizia gostar de ficar em casa, engarrafando nuvens. O filme foi lançado em meio às homenagens em memória dos 30 anos – completados em 2009 -, da morte do compositor, conhecido como o doutor do baião, referência ao estilo que criou junto com Luiz Gonzaga, o rei do baião. Este, por sua vez, também vem recebendo homenagens, em memória dos 20 anos de sua morte. A dupla compôs grandes clássicos do nosso cancioneiro, músicas belíssimas como Assum preto*, Qui nem jiló, Estrada de Canindé, Juazeiro e Asa branca, o hino do nordeste independente imaginado pelos compositores Bráulio Tavares e Ivanildo Vilanova.

Ainda que tenha como motivação maior e principal mérito mostrar a importância do doutor do baião para a música brasileira, o filme aborda, também, aspectos pessoais de sua vida, centrados no relacionamento entre ele e Denise Dummont, pai e filha. Quando se separou de Teixeira, a mãe de Denise foi morar nos Estados Unidos e a atriz ficou morando com o pai que, contrário a sua carreira artística, não permitiu que ela usasse seu sobrenome. Diferenças de ideias e valores provocaram um certo distanciamento entre eles, superado ao longo do tempo de convivência. Além do estigma do nordestino, de ter costumes conservadores, o pai levava para casa, também, o estigma do compositor, de ser sujeito pouco conhecido.

Relações humanas conflituosas costumam render bons enredos de filmes, sejam eles de ficção ou baseados em fatos reais. Expõem-se os dramas e, ao apagar das luzes, o público, paciente, transforma sessão de cinema em sessão de análise. Quando uma das partes envolvidas nesse conflito participa da criação da obra, os efeitos terapêuticos especiais transpõem a tela e a projeção cinematográfica serve de expurgo às projeções psicanalíticas de seus próprios criadores, em suas relações. Quando tais relações envolvem, do outro lado, artistas ou pessoas públicas em geral, aumentam o interesse e a curiosidade. Exemplo recente foi Maysa – Quando fala o coração, série televisual dirigida por Jayme Monjardim, filho da cantora.


Para o público, O homem que engarrafava nuvens também é uma terapia no aspecto musical. Uma análise poético-musical coletiva, com apresentação de canções e depoimentos que ressaltam a importância do baião para a música popular brasileira, confirmando a versão de Gilberto Gil, de que ele vem de baixo do barro do chão, e mostrando onde chegou, do outro lado do mundo, graças a Gonzaga e Teixeira. Gil, como tantos outros, é admirador e seguidor do trabalho da dupla, responsável, segundo ele, por uma revolução em sua vida: “Quando ouvi essas coisas fiquei louco, estou louco até hoje”. “São as grandes famílias reais musicais brasileiras, duas dinastias, a do samba e a do baião”, afirma ele, também, em depoimento ao filme.

Caetano, outro admirador da dupla, homenageou Humberto Teixeira, o saudoso poeta, em sua canção Terra, do disco Muito, de 1978: “mando um abraço pra ti, pequenina, como se eu fosse o saudoso poeta e fosses a Paraíba”, em que faz referência ao trecho “hoje eu mando um abraço pra ti, pequenina”, da canção Paraíba, dos criadores do baião.

Tocando fundo e descrevendo tão bem a alma do brasileiro nordestino, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira sempre fizeram valer a máxima, criada por eles, de que “se o baião é bom sozinho, que dirá baião de dois”. E que dois. Ou, como diria uma saudosa tia, que ambos!



* Assum preto (Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira)

Tudo em vorta é só beleza
Sol de abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor

Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mió

Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá

Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus

13.8.09

Poesia e música - relações íntimas de um par perfeito

A canção está chegando ao fim? Letra de música é poesia? Qualquer amante dessas duas formas de expressão – canção e poesia - já se deparou com tais questionamentos, cuja melhor resposta é não haver resposta. Trata-se do tipo de discussão clássica em que a conclusão é o que menos importa. Uma nova oportunidade de discussão – sem conclusão - desses temas foi criada por meio do documentário Palavra Encantada, de Helena Solberg e Márcio Debellian, que analisa a relação entre poesia e música, por meio de depoimentos de Adriana Calcanhoto, Chico Buarque, Maria Bethânia, Lenine, Martinho da Vila, Luiz Tatit, José Miguel Wisnik, Zélia Duncan, Tom Zé, entre outros.

Pra começo de conversa, o compositor Paulo César Pinheiro, um dos grandes poetas do nosso cancioneiro que, em Poder da criação, descreve a arte de compor ("Não, ninguém faz samba só porque prefere. Força nenhuma no mundo interfere sobre o poder da criação. Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito. Nem se refugiar em lugar mais bonito, em busca da inspiração"), afirma, no filme, que não há como negar que Chico Buarque é poeta.

O próprio Chico, por sua vez, afirma que não (ou nega que sim) e não é por modéstia. Diz que escreve letras direcionadas para a música, palavras que só estão ali por causa dela, que dançam conforme a música e cita como exemplo a letra da canção Uma palavra, de sua autoria, em que a palavra palavra repete-se, ao final de vários versos, por exigência da melodia ("Palavra prima / Uma palavra só, a crua palavra / Que quer dizer tudo / Anterior ao entendimento, palavra / Palavra viva, palavra com temperatura, palavra / Que se produz muda / Feita de luz mais que de vento, palavra").

Esse fenômeno pelo qual passa o letrista - e não o poeta – tem outro exemplo claro, que ora me vem à mente: o caso Romaria, de Renato Teixeira. Um dos melhores versos dessa canção, imortalizada por Elis Regina, foi feito por exigência da melodia. O compositor não conseguia concluir uma estrofe e só após um longo tempo chegou à solução, ao repetir três vezes a expressão final, encaixando letra e música: "como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar". Pura poesia, não poderia ter ficado melhor.

Ao falar da repercussão da Bossa Nova em sua geração, Chico afirma que, ao conversar com pessoas de gerações posteriores, costuma constatar que elas não sofreram tamanho impacto, por já terem pegado o bonde andando e estarem acostumados com aquele tipo de som, não mais uma novidade. É como penso, sempre que me vejo dividido entre a admiração por esse estilo e uma certa frustração por não sentir todo seu impacto, representado, sobretudo, pela bela canção Chega de saudade, pela voz dos intérpretes e pela batida de violão de João Gilberto. O maior mérito estava nas mudanças de padrões, coisas que só quem escutou no rádio Sílvio Caldas ou Orlando Silva seguidos de João Gilberto ou Tom Jobim pôde entender.

Poesia agrada a alguns, música instrumental, a outros, mas ambas estão longe de serem unanimidade. É na canção popular que essas duas partes - representadas por letra e melodia -, juntam-se e atingem seu maior público. Alguns poetas até enveredam para esse ramo - como Vinícius de Moraes – ou são tragados por ele, em parcerias como Chico e João Cabral (que não gostava de música); Fagner e Ferreira Gullar ou Cecília Meireles. Maria Bethânia recita poesias antes de canções - momentos sublimes, como Soneto de fidelidade seguido de Céu de Santo Amaro - e Lirinha (Cordel do Fogo Encantado) aproxima a poesia de João Cabral de um público mais jovem, que costuma recitar de cor, junto com ele, versos do poeta.

Por outro lado, ao juntar-se letra e música, a mensagem contida naquela, muitas vezes, passa despercebida. É o caso, por exemplo, de uma poesia que Antônio Cícero recita no filme, feita por ele para seu pai, que se transformou numa canção gravada por sua irmã Marina Lima, na década de 90: Eu vi o rei *. Poeta de uma geração mais nova, Cícero nunca imaginou que suas poesias se prestariam para compor uma canção - nem as escrevia com essa intenção - até ser estimulado por Marina, sua parceira em várias músicas.

Além de imagens históricas - como uma impagável entrevista com Caetano Veloso, após sua interpretação de Alegria, alegria, num dos festivais da TV Record -, os depoimentos enriquecem o filme. Lenine atribui à miscigenação o fato de estarmos à frente dos europeus na música popular. Ferréz comenta a forte ligação entre rap e repente (até fonética, como acabo de perceber) ou cordel, estes, por sua vez, reverenciados por Arnaldo Antunes, mestre das meias palavras, não as que dissimulam, mas as que bastam ao bom entendedor. Tom Zé exalta o rico e singular jeito de falar do sertanejo, sobretudo o iletrado, que faz da audição sua antena parabólica. Fala, ainda, das deliciosas ousadias de Dorival Caymmi em suas canções.

Jovens baixam músicas pela internet, lojas de disco rareiam: mudaram os paradigmas. Completa o quadro a natural diminuição das possibilidades de músicas – indutora da idéia de que "no meu tempo elas eram melhores" - o que, como diz José Miguel Wisnik, não significa que a canção esteja chegando ao fim, muito menos no Brasil, onde, segundo ele, criou-se uma música popular forte que, ao unir a leveza das canções a poesia de qualidade, conquistou um público cativo. O tema dá margem a vários filmes e Palavra (En)cantada poderia ser como Sexta-feira 13, que chega à parte 12 em 2009. Afinal, a canção é como Jason, personagem principal deste filme: quando se supõe seu desaparecimento, ela ressurge, com força.



* Eu vi o rei (Marina Lima /Antônio Cícero)
Eu vi o rei chegar

Um rei assim
Que não escuta bem
Que adora luz
Mas não vê ninguém
Prefere olhar
O horizonte, o céu
Longe daqui
é tudo seu

Seu sangue azul
Ninguém diz de onde vem
De que sertão
De que mar, que além
E para nós
Ele jamais se abriu
Só uma vez
Quando partiu

Um rei assim
Cultiva solidão
Sombria flor
No coração
E claro é
Que o pêndulo do amor
Às vezes vai
Até a dor

Devo dizer
Que eu não sofri demais
Mas devo dizer
Que acordei
Mesmo sem ser
Tudo que eu imaginei
Devo dizer
Que eu o amei

Eu vi o rei chegar

16.7.09

Conversa com verso - 2009.1

Primeiro, vamos dar vivas a um caboclo brasileiro, figura simples e bacana, que faria noventa anos daqui a algumas semanas. É Jackson do Pandeiro, coqueiro das terras paraibanas, gênio do cancioneiro brasileiro, ritmista inovador e ligeiro, que pôs pra cantar o país inteiro e eternizou uma porção de música bacana, como Sebastiana e o sambinha Chiclete com banana*, que ironiza a invasão americana em nosso terreiro.

Outro Jackson, este não do pandeiro nem brasileiro, nascido em Indiana, em terra norte-americana, sucesso aqui e no estrangeiro, deixou seus fãs em desespero, ao perder a vida tão ligeiro. Michael parecia um doidivanas, mas era figura humana, mesmo com uma ou outra atitude leviana, como o caso derradeiro do abacaxi que quis deixar pra Diana, de tomar conta de seus herdeiros.

Os dois Jackson, o segundo e o primeiro, podem agora compartilhar o tal batuque brasileiro, como decantado pelo primeiro, no tal sambinha que deu ibope, do Chuí ao Oiapoque. É o rei do coco e o rei do pop, num tiru-riru-bop-bip-bop, misturando samba com rock, Paraíba com Nova York, rala-bucho com moonwalk, cantando Ben ligeiro, no compasso do pandeiro.

Com tudo a Temer na Câmara e procurando Sarney pra se coçar no Senado, o negócio ficou complicado. Passagem aérea pra deputado e apadrinhado, excesso de empregado no Senado, tudo com cargo comissionado, bem remunerado, tratando o público como privado. O ardil é completo e a parente. É decreto discreto, descrédito consignado, ato secreto beneficiando filho e neto, namorado, cunhado, afilhado. Aparentado pra todo lado, todo o mundo quieto, com bico calado, feito menino levado quando faz algo errado.

O prejuízo é concreto, não pode ser desprezado e a gente deve ficar ligado em qualquer ato abjeto, que possa ser objeto de questionamento direto ou investigado por ser incorreto. Com ou sem foro privilegiado, se o culpado não é cassado, se Agaciel é agraciado, o país fica desmoralizado e o Senado taxado de casa dos horrores é o resultado.

O vírus H1N1, ao que parece, não é pior que o da gripe comum, cujo mal é quase nenhum e não merece a alcunha de espanhola do século XXI, já que a proporção entre quem padece e quem falece é de duzentos pra um. Mas o cidadão comum não esquece que o vírus virou pandemia pra OMS e faz prece pra que ela diminua o stress e confesse que o risco do H1N1 é nenhum, ou quase nenhum, se não o pânico cresce e o pandemônio recrudesce, enquanto a pandemia permanece.

Fernando Lugo, vulgo super-pai, entrou nos anais da sociedade do Paraguai e de lá não sai mais. Com tantos DNA’s iguais, virou pai de aluguel e convocou nos jornais: criancinhas a Lugo. Não o julgo, mas daqui a um pouco mais, todo meu Paraguai vai chamá-lo de papai, e ele, como bispo e político, vai ficar sob o jugo de episco-pais que substituem votos de castidade por votos eleitorais.

Enquanto isso, na desunião européia, dividido em suas relações exteriores, Sarkozy levou Berlusconi na Bruni e foi mandado à Merkel por um Zapatero que nunca viu mais Gordon.



* Chiclete com banana (Gordurinha)

Eu só ponho bip-bop no meu samba
Quando o Tio Sam pegar o tamborim
Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba
Quando ele aprender que o samba não é rumba

Aí eu vou misturar
Miami com Copacabana
Chiclete eu misturo com banana
E o meu samba vai ficar assim

Turiru-riru-riru bop-bip-bop-bip-bop
Quero ver a grande confusão
Turiru-riru-riru bop-bip-bop-bip-bop
É o samba-rock meu irmão

Mas em compensação
Eu quero ver um boogie-woogie
De pandeiro e violão
Eu quero ver o Tio Sam de frigideira
Numa batucada brasileira

3.7.09

É isso...

“Cure o mundo, faça dele um lugar melhor pra você, pra mim e pra toda a raça humana” (Michael Jackson)

É fácil externar apreço por um artista depois que ele morre. Em tais situações, é comum até o surgimento de admiradores de última hora. A relação das pessoas da minha faixa etária com Michael Jackson, porém, é antiga ou de primeira hora, algo que quem nos é contemporâneo pode entender melhor. Os pouco mais novos só acompanharam sua trajetória a partir da fase de super-mega astro pop dos anos 80. Os muito mais novos, nem isso, conheceram apenas suas excentricidades, transformações visuais e escândalos que mudaram as folhas em que costumava aparecer nos jornais, de cultura e entretenimento para páginas policiais e de fofocas.

Na década de 60, sobretudo nos Estados Unidos, os negros começaram a conquistar importantes direitos, em boa parte graças ao ativista político Marthin Luther King. Crescia, entre eles, um orgulho racial que os permitia valorizar suas características e sua cultura. Eles saíam às ruas com roupas e ornamentos típicos e exibiam toda a beleza de seus cabelos em cortes (ou falta deles) à época chamados de black power. Foi nesse cenário – ou por causa dele, ou ainda, junto com ele - que surgiu, naquele país, uma gravadora – a Motown Records -, que contratava apenas músicos negros para o seu elenco, entre eles Diana Ross, Marvin Gaye, Stevie Wonder e um grupo de cinco irmãos, que formavam o conjunto Jackson Five, do qual fazia parte Michael Jackson.

No início dos anos 70, vivia-se ainda os efeitos, embora já mais rarefeitos, da beatlemania e do movimento hippie. Eu e meus irmãos, ainda crianças e de idades próximas um do outro, éramos, como os rapazes de Liverpool, em número de quatro e usávamos seus mesmos cortes de cabelo (ou falta deles). Mas os Beatles não eram, exatamente, da nossa geração, tanto que só me dei conta da importância deles para a música mundial quando John Lennon faleceu, em 1980. Pouco antes, em 1977, tinha-se ido, também, Elvis Presley, este ainda mais distante de nós, que o conhecíamos apenas dos - à época já antigos - filmes que protagonizara, exibidos em sessões da tarde da TV.

Os jovens de Indiana, por sua vez, eram ídolos contemporâneos nossos, nós crianças, eles adolescentes. Os Jackson Five eram tão famosos que inspiraram um desenho animado na TV, em que os garotos viviam aventuras, entre um e outro número musical a que assistíamos vidrados. Não podíamos ter seus cabelos black power, mas os admirávamos, sobretudo o caçula Michael, simpático e de bela voz, que logo se destacou e passou a seguir carreira solo.

Ben (tema de filme homônimo sobre um garoto solitário que não recebe atenção dos pais e torna-se amigo de um rato a quem chamava Ben), Music and me, Happy e One day in your life foram grandes sucessos da década de 70, quando cinco dos dez discos dessa fase de sua carreira foram lançados. Em Off the wall (1979), já maior de idade, o cantor captou um pouco da onda “disco” do momento e começou a se transformar num grande astro.

Já na década de 80, Michael Jackson lançou o álbum mais vendido de todos os tempos – Thriller, de 1982. Tudo o que fez nessa década obteve êxito, como as parcerias com Paul McCartney (The girl is mine e Say, say, say) e Lionel Richie (We are the world), esta última gravada por um grupo de cantores, num projeto de autoria dos dois compositores, denominado USA for Africa, que tinha como objetivo ajudar as vítimas da fome naquele continente e chamar atenção para o problema.

Graças a sua performance nos palcos, virou febre, também, o passo batizado de moonwalk, que considero, até hoje, uma das coisas mais impressionantes feitas em termos de coreografia e dança, sobretudo por parecer desafiar as leis da física. Michael inovou, também, na linguagem dos videoclipes, transformando-os em bem produzidos filmes de micro-metragem.

Após o sucesso estrondoso de Thriller, alguns fãs de primeira hora passaram a esconder a admiração pelo cantor, que passou a ser visto por muitos como representante de uma cultura consumista que nos queria ser imposta pelos Estados Unidos, entre McDonald’s e Coca-Colas. Ao mesmo tempo, eu e meus irmãos recebíamos, em casa, influências positivas de nosso pai, que não era comedor de criancinhas (Michael também não), mas possuía idéias progressistas. Diante disso, depois que um de meus irmãos comprou esse disco, passei a ameaçá-lo com um “vou dizer a papai”, numa brincadeira em que punha como inconciliável sua admiração por um e outro.

Há dois meses, portanto antes da morte do cantor, dei-lhe a oportunidade de acertar contas com o passado ao presenteá-lo com edição comemorativa dos 25 anos de lançamento de Thriller, quando ele pôde, enfim, revelar minha chantagem e seu pecado a nosso pai, que nos “perdoou” e achou muita graça.

A figura frágil que queria ser eternamente criança se foi, antes de iniciar sua nova turnê, “This is it”. É isso. Seus traumas de infância, aliados à tentativa frustrada de ser o que se esperava dele – e por esse aspecto, todos nós matamos Michael Jackson -, levaram-no à negação ou tentativas de desconstrução da própria imagem, o que culminou com a destruição de sua própria vida. Cada um sabe de seus motivos e, como já foi dito, de perto, ninguém é normal. É a natureza humana, assim que ela nos faz.